O Literário em Alceu Valença
Romildo Gouveia Pinto
As letras que Alceu Valença compõe para suas músicas têm vida própria,
quando
simplesmente lidas? Ou somente adquirem significado se acompanhadas de sua música?
Noutras palavras: quem faz letra de música faz literatura?
Muito já se escreveu
sobre esse tema e não quero dar sequência à polêmica. Quem tiver alguma dúvida, basta
percorrer sua poesia ou, noutras palavras e para fugir da peleja, as letras de suas
canções. E tirar suas próprias conclusões.
Na realidade, quero
tratar o tema através de uma outra abordagem. A presença da literatura em sua obra,
presença essa farta e visível.
Ao longo dos seus
discos, a marca constante: a presença de autores populares e eruditos, citados em suas
canções ou homenageados nas dedicatórias. O interessante é destacar que Alceu venera e
homenageia desde os poetas populares, aqueles que percorriam as ruas de sua infância com
seu canto de improviso, aos intelectuais mais reconhecidos.
De
Buñuel a Mocinha de Passira
Ora é um cineasta,
como Luis Buñuel (in La Belle de Jour e in Maracajá), ou um naturalista, como Augusto
Ruschi (in Espelho Cristalino), ora um companheiro de ofício, como Raul Seixas (in Bicho
Maluco Beleza), João do Vale (in Cabelo no Pente), Luiz Vieira e seu menino passarinho
(in Eu Te Amo), Jackson do Pandeiro e Ari Lobo (in Fé na Perua) e Luiz Melodia (in Maria
Sente).
Essa reverência passa
pelos cantadores populares, tais como Dimas, Vitorino, Pinto do Monteiro, Lourival - o
Louro do Pajeú -, Oliveira, Castanha, Beija-Flor e Mocinha de Passira (in Martelo
Agalopado), cada um deles o "cantador do inconsciente coletivo, canta a força do
povo e o desengano", no dizer de Alceu, pois têm "os pés calejados dos ciganos
e (são) poetas perfeitos e soberanos", levando sua arte do verso improvisado à
praça.
Noutros instantes Alceu
se volta para o elogio aos animadores da cultura popular como Bajardo, "o pintor de
Olinda" (in Bicho Maluco Beleza), Cacho-de-Coco (in Sou Eu Teu Amor), Mãe Nina (in
Ciranda da Mãe Nina) e Dona Santa do maracatu (in De Onde Vem?). Percorre as canções de
autoria do povo nordestino, incluindo-as em sua música, e busca a inspiração em
personagens que povoam a cultura popular, sejam reais como o Capitão Corisco, anônimos
como o "velho safado" do Pastoril, ou fictícios, tais como Viramundo, Pedro
Malazartes, João Grilo, Cancão de Fogo...
Às vezes, como um Zé
Limeira redivivo, semeia citações de pessoas que marcaram o seu mundo - quem sabe, o
mundo de todos nós: Neil Armstrong e sua caminhada na lua (in Seixo Miúdo), os
apóstolos Pedro e Paulo (in Pontos Cardeais), Guevara, Camilo e Sandino, com seu
"sonho libertário" (in Romance da Bela Inês) e Luiz Carlos Prestes, o velho
cavaleiro montado em sua utopia (in Pra Clarear), Maurício de Nassau (in O Carnaval
de Minha Janela), Calabar, John Lennon, Charles Chaplin, Tiradentes, Frei Caneca e
Virgulino, o Lampião (in Maria Sente).
Parceria Com Poetas
Mas Alceu também
passeia pelo erudito e são muitos os intelectuais, aqueles dos livros - além dos da rua
e do imaginário - que perpassam sua obra. Seja quando Alceu faz poesia com os nomes das
ruas do Recife e de Olinda, que são as ruas da infância do poeta Manuel Bandeira, seja
quando se declara um Dom Quixote liberto de Cervantes (in Agalopado).
São muitos os autores
e várias as citações: João Cabral de Mello Neto (in Cana Caiana), Carlos Drummond de
Andrade (in Pra Clarear e in Maracajá), Camões (in Romance da Bela Inês e in
Maracajá), Fernando Pessoa (in Maracajá), Mário Quintana (in Senhora Dona), Jorge Amado
(in Chuva de Cajus), Ulisses (in Anjo de Fogo) e Mário de Andrade e seu delicioso
Macunaíma (in Que Grilo Que Dá - Rock de Repente).
Mas dois poetas têm um
espaço privilegiado na obra de Alceu Valença. Transformaram-se, embora ja mortos, em
parceiros preferidos. Um é Ascenso Ferreira, que proporcionou a Alceu o seu
primeiro sucesso nacional, ainda nos primórdios da carreira (1972) e que teve outro
poema seu musicado (Vou Danado Pra Catende e Maracatu). Outro é Carlos Penna Filho, cujos
poemas inspiraram também duas canções a Alceu: Solibar, que transportou para a canção
versos que todos os boêmios pernambucanos sabem de cór e Sino de Ouro.
Assim, discutir
literatura na obra de Alceu Valença é, acima de tudo, registrar o profundo amor que ele
demonstra pela cultura popular e erudita e o quanto ele coloca a sua música a serviço de
artistas e intelectuais, como uma homenagem que, ao mesmo tempo, valoriza e enriquece a
sua própria obra.
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