Trajetória
(Este texto foi
reproduzido no site oficial de Alceu com nossa autorização.)
50 Anos - A Maturidade do Talento
O ano de 1996 marcou a passagem dos 50 anos de Alceu Valença, um dos mais vigorosos e
criativos artistas da música brasileira. Compositor instigante, intérprete que molda em
sua voz os sentimentos que suas canções abrigam e, dono de forte presença cênica,
transforma seus shows em espetáculos inesquecíveis. Conhecer e compreender sua
trajetória, neste instante emblemático, pode ajudar a conhecer um pedaço
significativo da história da música brasileira.
O
Talento
Nascido
no dia 1° de julho de 1946 em uma pequena cidade do agreste pernambucano, São Bento do
Una, de uma família de empresários e políticos, Alceu Paiva Valença cresceu ouvindo
Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro, mas também Nelson Gonçalves, Ângela Maria e Cauby
Peixoto. Quando se mudou para a capital, passando a morar num bairro de classe média
alta, tomou conhecimento de Elvis Presley, a quem imitava, emitindo sons ininteligíveis
para substituir o inglês que ainda não compreendia.
Seus pais queriam mais um doutor na família e Alceu formou-se em Direito, mas não chegou
a ser advogado. Trabalhou algum tempo como jornalista. Até fez um curso de verão em
Harvard. Mas era a música que o atraía e que aos poucos foi dominando sua vida. Tentou a
sorte em Recife, através de um show (O Ovo e a Galinha), sem qualquer sucesso. Então
mudou-se para o Rio onde participou, em 1970, do Festival Universitário da TV Tupi, com
três músicas, uma delas em parceria com o seu amigo pernambucano Geraldo Azevedo.
Dessa convivência nasceu seu primeiro disco, Alceu Valença & Geraldo Azevedo,
lançado pela Copacabana, em 1972, com arranjos do maestro Rogério Duprat. Dessa época
ficou a música Talismã, em parceria com Geraldo Azevedo, ainda hoje presente no
repertório dos dois artistas. Nesse mesmo ano ambos foram convidados pelo compositor e
cineasta Sérgio Ricardo para fazerem, como atores, um curioso e belo filme chamado A
Noite do Espantalho, que chegou a ser exibido em várias mostras internacionais, mas de
pouco sucesso no Brasil.
Em 1974, pela Continental, saiu a trilha sonora do filme, em que Alceu interpreta oito de
suas faixas. Mas aquele ano marca a sua carreira principalmente pelo lançamento do
primeiro disco individual, pela Som Livre, Molhado de Suor. Este trabalho chamou
imediatamente a atenção da crítica e marcou de forma inegável o estilo Alceu Valença
de fazer música. Algumas faixas, como Punhal de Prata e Papagaio do Futuro voltaram
em futuros discos seus, mas o repertório todo fazia prenunciar que ele ocuparia a partir
daquele momento um lugar de destaque. Na época escrevi que "sua força criativa o
transforma, sem qualquer exagero, em um dos melhores compositores e intérpretes que
existem por esse Brasil afora. Podem anotar, se duvidam, e cobrar futuramente"
(Jornal da Cidade, 04.05.75, Recife-PE). Profecia que se realizou, facilmente, em função
do extraordinário talento de Alceu. O sucesso ainda não chegara, mas estava próximo.
O
Sucesso
Ainda em 1975 recebeu um prêmio no Abertura - Festival da Nova MPB, promovido pela Globo
e, sem dúvida, o último grande espetáculo do gênero no país (o disco do festival
sairia em 1976, pela Som Livre). Com a música Vou Danado Pra Catende, inspirada no poema
O Trem das Alagoas, de Ascenso Ferreira (1895-1965), provocou um choque na música
brasileira, misturando toda a sua influência num produto final cujo gênero os críticos
não conseguiam definir.
Aproveitando o momento favorável produziu, no Rio de Janeiro, o show Vou Danado Pra
Catende, no Teatro Tereza Rachel, ainda em 1975. Os primeiros dias foram um fracasso.
Então Alceu foi à luta. Montado em pernas-de-pau, caracterizado como o bobo-da-corte,
seguido em cortejo pelos músicos do espetáculo, começou a fazer, ele próprio, a
propaganda do seu show, percorrendo as praias e bares da cidade. A imprensa, que até
então ignorava o espetáculo, apareceu e a explosão aconteceu. Todos os principais
críticos musicais do Rio começaram a falar daquele inusitado artista e se instalou mesmo
uma disputa do tipo "fui-eu-quem-descobriu-o-Alceu-Valença". A consagração
veio com a capa e a entrevista do Pasquim, que na época era tudo que alguém poderia
desejar para alcançar o sucesso. A partir deste show foi lançado o disco Alceu
Valença-Vivo, em 1976, um ótimo exemplo de sua primeira fase de trabalho.
A Consolidação
O sucesso popular havia chegado, aos trinta anos, precedido do reconhecimento da crítica
e aí se seguiram vários discos e shows, inclusive uma bem sucedida excursão pela
Europa, onde gravou na França um disco ainda inédito no Brasil.
Seguiram-se, na década seguinte, vários discos, como Espelho Cristalino (1977);
Coração Bobo (1980), que trouxe o sucesso Na Primeira Manhã; Cavalo de Pau (1982), em
que se destacaram Tropicana e Como Dois Animais; Anjo Avesso (1983), com a música
Anunciação; Brazil Nigth - Ao Vivo em Montreux (1983); Mágico (1984), com o sucesso
Solidão e Estação da Luz (1985).
Diversas músicas suas foram incluídas em trilhas sonoras de novelas, algumas coletâneas
foram lançadas, consolidando o sucesso. Esta segunda fase serviu também para marcar
definitivamente o lado de carnavalesco de Alceu Valença. Embora sempre ligado ao carnaval
de Pernambuco, somente na segunda metade dos anos 70 começou a gravar frevos, às vezes
em seus próprios discos, mas principalmente através da série de discos Asas da
América, iniciada em 1979, e que, além de Alceu, já trouxe dezenas de outros
intérpretes cantando músicas do compositor Carlos Fernando, um assíduo parceiro de
Geraldo Azevedo.
O Asas da América e Alceu Valença tornaram o carnaval de Olinda conhecido nacionalmente,
introduzindo uma outra linguagem, contemporânea, mantendo a mesma qualidade da música
produzida por carnavalescos de Pernambuco, a exemplo de Nelson Ferreira e Capiba. E hoje,
em Olinda, Alceu é sinônimo do carnaval, inclusive liderando um bloco que, às vezes,
sai nas quartas-feiras de Cinza, chamado Maluco Beleza.
A Maturidade
Os últimos dez anos da sua obra se caracterizam pela maturidade do compositor e do
intérprete. Ele funde ritmos tipicamente nordestinos caminho da roça, baião,
frevo, toada, côco, xaxado, embolada, xote, maracatu com sons universais, como
fado, rock e mesmo música oriental, às vezes até mesmo satiricamente, mas numa
perspectiva pessoal e intransferível. Não há como rotulá-lo. Já se disse que Alceu
faz forrock ou rockatende, no dizer do maestro Júlio Medaglia mas a
sua é uma música brasileira, sem dúvida, com um sabor reconhecidamente nordestino, de
São Bento do Una ou da feira de Caruaru.
Suas letras têm a envergadura da produção de um poeta maior. Uma viagem pelo lirismo
seria repassar sua obra, desde os primeiros discos. Mas não precisa tanto. Basta ouvir
discos mais recentes, como 7 Desejos (1992), que contém pérolas como Tesoura do Desejo
ou Maracatus, Batuques e Ladeiras (1994), com obras como Pétalas, em parceria com
Herbert Azul, que recebeu o prêmio Sharp como a canção do ano ("As flores voam e
voltam na outra estação/Só serei flor quando tu flores no verão").
O amadurecimento aparece também em sua voz, pois alcançou o equilíbrio entre seu
extraordinário vigor e a correta técnica. Dominando com precisão os seus instrumentos
de cantor a voz, o violão e o corpo usa-os em primorosa harmonia. A voz
bonita já não é a pedra bruta dos anos 70, mas a jóia lapidada que passa dos mais
incríveis agudos aos graves com a suavidade de vôo de um pássaro. É fascinante seu
poder de comunicação com a platéia.
Destaque-se que Alceu sempre se cercou de músicos competentes, que conseguem entender e
transmitir sua música. No início, fazia-se acompanhar pelos músicos que formavam no
Recife o conjunto underground Tamarineira Village, depois transformado em Ave Sangria. E
foi sempre incorporando outros bons músicos, alguns dos quais seguiram carreira solo de
sucesso. Exemplo disso é Zé Ramalho, que tocava viola em sua banda, ou Elba Ramalho, que
fazia coro em suas gravações.
E desde essa época do Tamarineira há um instrumentista que o acompanha e certamente já
faz parte de sua música, que é o guitarrista e violonista Paulo Rafael, parceiro
inclusive na produção de muitos shows e discos. Essa parceria dura mais de 20 anos
(apesar de o Paulo Rafael também fazer carreira solo em discos), pouco menos que a idade
do Ceceu, o filho de Alceu, que o hoje é o baterista da banda.
Em suas primeiras músicas, Alceu Valença se dizia "o porta-voz da
incoerência" e afirmava que "já perdeu o medo da força do vento que
sopra e não uiva, em água da chuva que cai e não molha, já perdeu o medo de
escorregar". Melhor para a música brasileira, pois a coragem do Alceu e sua
incoerência semearam o nosso panorama musical com um trabalho vigoroso, belíssimo e
criador de novos caminhos. Parabéns à música brasileira pelos 50 anos de Alceu
Valença.
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