FERNANDO OLIVA
Especial para o Estado
Apesar
das águas turbulentas enfrentadas pela recém-inaugurada Bienal Ceará América - De
Ponta-Cabeça em sua fase de organização e produção, já começam a despontar os
primeiros fatos positivos para o circuito artístico do País, que acaba de ganhar mais
uma exposição periódica, de grande porte, que se vem juntar à cinqüentenária Bienal
de São Paulo e à jovem Bienal do Mercosul. Uma das conquistas da Bienal cearense é a
permanência definitiva, em Fortaleza, do curador belga Philippe van Cauteren, braço
direito de seu célebre compatriota Jan Hoet (curador da histórica Documenta IX, em 1992,
na cidade alemã de Kassel) e que vestiu a camisa da mostra nordestina.
Entre os projetos de Cauteren para o biênio
2003-2004 em terras cearenses - um total de oito exposições até a abertura da 2.ª
Bienal Ceará América - está Beuys-Barrio, que vai reunir desenhos do artista alemão
Joseph Beuys (1921-1986) e do brasileiro de origem portuguesa Artur Barrio, um dos
homenageados desta Bienal. Mais uma dose dupla, Serra-Amilcar, pretende contrapor vídeos
criados nos anos 60 pelo americano Richard Serra e desenhos do brasileiro Amilcar de
Castro (1920-2002).
O curador belga planeja ainda ocupar todas
as salas do Museu de Arte Contemporânea do Ceará com uma grande instalação de Ilya
Kabakov, artista russo de grande destaque no cenário artístico internacional e famoso
por suas impactantes instalações de forte cunho político. Além de mostras individuais
do belga Marcel Broodthaers (1924-1976), do americano de origem holandesa Bas Jan Ader
(1942-1975) e do americano Matthew Barney e toda sua aclamada série de filmes Cremaster.
Tudo isso é coisa fina, mas cuja
realização depende exclusivamente de investimento governamental, ao mesmo tempo
sinônimo de dificuldade e solução no contexto da Bienal Ceará América - que a exemplo
de São Paulo e Porto Alegre pretende se transformar em fundação, a Estação Bienal, na
tentativa de adquirir maior autonomia em relação ao dinheiro público.
Agora ou nunca - Esta primeira
edição do evento, que pode ser vista até 28 de fevereiro, foi organizada às pressas,
justamente porque a atual gestão de Nilton Almeida à frente da Secretaria de Cultura e
Desporto do Estado do Ceará (Secult), aproxima-se do fim, e continuidade não é um
substantivo que costuma freqüentar a política cultural brasileira. Por conta disso, a
1.ª Bienal Ceará América não foi adiada para 2003, como devia, e os artistas foram
obrigados a correr contra o tempo. Alguns trabalharam em espaços expositivos inacabados,
caso dos centenários galpões ferroviários da RFFSA. Também aconteceu de obras não
chegarem a tempo para a abertura, como as dos mexicanos Gustavo Artigas e Francis Alys e
do americano de origem alemã Hans Haacke.
"Era agora ou nunca (realizar a
Bienal). Se no ano que vem a Secult for dirigida por alguém que só tenha olhos para o
passado e não simpatize com a produção contemporânea, todo o nosso projeto poderia ir
por água abaixo", afirma José Guedes, diretor do Museu de Arte Contemporânea do
Ceará, que integra o Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, complexo cultural que ocupa
mais de 30 mil metros quadrados próximo à Praia de Iracema. Foi Guedes quem idealizou a
Bienal Ceará América, há cinco anos, e quem convidou Jan Hoet para ser seu curador. O
belga, que se encontra adoentado há meses, manteve-se ausente do projeto e nem sequer
pôde vir a Fortaleza.
O jovem curador Philippe van Cauteren, de 33
anos, foi quem pôs a mão na massa e empreendeu um corpo-a-corpo com artistas, curadores
e críticos, em verdadeiro périplo pelas Américas, dos EUA ao Uruguai, em visita a mais
de dez países durante um ano. Ele escolheu mais de 40 nomes, a maioria jovens emergentes
como Narda Alvarado (Bolívia), Erick Beltran (México), Francisca Garcia (Chile),
Jonathan Harker (Panamá), Paola Parcerisa, Luis Insfran e Bettina Brizuela (Paraguai),
Esteban Alvarez e Tamara Stuby (Argentina). Há gente de toda a parte, mas o maior grupo
é formado por brasileiros, com Odires Mlászho, Waléria Américo, Mauricio Coutinho,
Rogério Canella, Paulo Climachauska, Gaio, Juliano de Moraes, Felipe Barbosa, Rosana
Ricalde, Adrianne Gallinari, Jared Domício e o Grupo Transição Listrada (Vitor Cesar,
Rodrigo e Renan Costa Lima). Barrio e Haacke foram convidados especiais, escolhidos pela
contundência política de suas trajetórias. O mote desta Bienal é uma obra engajada
feita nos anos 40 pelo uruguaio Joaquín Torres-García, o desenho O Norte É o Sul, que
subverte a configuração geográfica e o jogo de forças da América do Sul ao
representá-la de ponta-cabeça.
Ocupando a cidade - A exposição
ocupa três lugares distintos: o Museu de Arte Contemporânea do Ceará, espaço
museológico clássico; a impressionante Casa Boris, antigo prédio da marinha mercante
fundado em 1869; e os dois galpões ferroviários da RFFSA, de 1880.
Uma das opções a serem destacadas em
benefício desta Bienal é que ela não impõe um tema monolítico, decisão que muitas
vezes se revela uma referência enganosa para o público. No lugar de lançar conceitos
postiços ao meio cultural de Fortaleza, a curadoria buscou caminhar no sentido
contrário, a fim de que a própria cidade indicasse os percursos a serem pavimentados
pelos artistas.
A linha mestra de Cauteren foi trabalhar com
a oposição entre litoral e interior, e o universo ligado a cada um desses espaços
antagônicos do tecido urbano, que segundo ele possuiriam "acelerações"
distintas. A dicotomia estaria de tal maneira arraigada na alma de Fortaleza que
influenciaria seus fluxos urbanos, suas relações político-econômicas e as relações
pessoais entre seus habitantes. No contexto da Bienal Ceará América, o litoral se
relaciona à utopia, ao olhar fixo, ao panorama, à distância, ao lazer, ao desejo, ao
ideal, à meditação. O interior, por outro lado, se liga ao pragmatismo, ao foco, ao
trabalho, à sobrevivência, à interação e ao diálogo.
"A Bienal deve ser vista como uma
exposição que se encaixa nas características de Fortaleza, na sua epiderme. A mostra
será então a segunda pele desta cidade, um órgão inerente a ela", afirma
Cauteren.
Nesse sentido, a noção de precariedade e
despojamento presente em alguns trabalhos (Adrianne Gallinari, Jared Domício e Jonathan
Harker, por exemplo) pode ser referida à própria instabilidade, caos urbano e pobreza de
Fortaleza - situação comum à maioria das metrópoles brasileiras. Justamente nesse
ponto - nesta zona de tensão, real e imaginária, entre a exposição e o tecido urbano -
reside a força e a originalidade desta 1.ª Bienal Ceará América.
Quem fisgou como ninguém as iscas lançadas
pela curadoria foi o Coletivo Cambalache, dupla de jovens artistas colombianas, que
decidiram trocar os espaços convencionais da mostra por um contato direto com as ruas de
Fortaleza. Elas alugaram um carrinho de madeira com alto-falantes, usado para todo o tipo
de propaganda sonora pela cidade, e abriram o microfone para a população cantar,
improvisar e se expor. A dupla percorreu as quebradas da capital por vários dias,
resultando em um vídeo (em exibição na Casa Boris) e na série de quatro CDs Fortaleza
Mix, com cópias à disposição do público.
Improviso - Contudo, esse conceito de
precariedade que muitos artistas souberam usar em benefício de sua obra, não deve se
confundir com as situações de improviso, um dos pontos fracos do evento. Diferentemente
do que costuma acontecer no Brasil, os problemas dessa primeira edição da Bienal
cearense, orçada em R$ 2 milhões, não passaram pela falta de verba, mas foram
provocados pelo apertado cronograma dentro do qual a exposição foi produzida e montada -
causando alguns atropelos.
A americana de origem chinesa Shirley Tse,
que trabalha com estruturas porosas de poliestireno em diálogo com arquiteturas urbanas,
recebeu o convite para participar pouco menos de dois meses antes da inauguração, tempo
considerado escasso para a produção e transporte das obras desde Los Angeles, onde ela
mora. No domingo seguinte à abertura, ainda havia instalações sem identificação (como
a do brasileiro Jared Domício, na Casa Boris) e algumas creditadas de forma errônea (a
obra do panamenho Jonathan Harker, por exemplo, levava etiqueta com o nome do brasileiro
Odires Mlászho).
A tentativa de improvisar também prejudicou
algumas boas idéias, caso da paraguaia Paola Parcerisa, que se vem destacando em seu
país, mas não conseguiu realizar em Fortaleza uma obra de peso. Suas fotografias foram
feitas em locais abandonados da periferia de Fortaleza, mostrando um personagem que segura
um grande espelho e, desta forma, traz um insólito pedaço de mar para dentro daquelas
áridas cenas. Uma proposta interessante que não se concretizou, pois para garantir seu
impacto as imagens mereciam ampliações mais caprichadas e maiores.
Entretanto, uma iniciativa como essa,
produzir uma Bienal de arte fora dos eixos dominantes - de Rio e São Paulo, no Sudeste, e
Recife, no Nordeste -, sempre carrega altas injeções de alento. O trânsito
internacional de Cauteren pode desaguar em maior projeção dos artistas brasileiros no
exterior. Novos espaços expositivos foram conquistados em Fortaleza, caso dos poderosos
galpões ferroviários (que vão ser sede da Estação Bienal e parte das mostras
planejadas pelo belga) e da charmosa Casa Boris. Com a anunciada continuidade do evento,
vai aumentar o público interessado em arte contemporânea no Nordeste, abrindo caminho
para o surgimento de mais um pólo cultural no País.