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11/03/2003
MARCADA PELO PESSIMISMO, OBRA FICCIONAL E MEMORIALÍSTICA DE GRACILIANO RAMOS TEMATIZA A VIOLÊNCIA EM TODAS AS SUAS FORMAS, CONTRAPONDO-LHE UMA BUSCA OBSTINADA POR CLAREZA E ORDENAÇÃO SINTÁTICA O MESTRE DA SUSPEITA Maurício Santana Dias Graciliano Ramos de Oliveira morreu em 20 de março de 1953 achando que todos os livros que havia escrito eram "chinfrins". A auto-avaliação pode parecer descabida a alguém que deixou algumas das melhores obras da moderna literatura brasileira, como "São Bernardo" e "Vidas Secas". Mas também é verdade que todo grande autor sempre teve alguma desconfiança de sua própria obra -em dois casos extremos, Franz Kafka pediu ao amigo que destruísse seus escritos, e Nicolai Gogol jogou no fogo a segunda parte de seu romance "Almas Mortas". No entanto poucos expressaram esse desconforto com tanta insistência e raiva quanto Mestre Graça, como era chamado pelos amigos. Nascido em 27 de outubro de 1892, na cidadezinha de Quebrangulo, encravada no sertão de Alagoas, Graciliano cresceu sob o regime das secas e das surras paternas, formando desde cedo a idéia de que todas as relações humanas são regidas pela violência: violência psicológica, física, de classe. Esse é o grande tema que atravessa a sua obra, ponto cego contra o qual o escritor opôs uma busca obstinada por clareza e ordenação sintática. A necessidade de ver de perto os aspectos menos "nobres" da vida social e afetiva fez com que Graciliano pintasse, por exemplo, o seguinte quadro dos pais, no livro autobiográfico "Infância" (1945): "Um homem sério, de testa larga (...), dentes fortes, queixo rijo, fala tremenda; uma senhora enfezada, agressiva, ranzinza (...), olhos maus que em momentos de cólera se inflamavam com um brilho de loucura". O pessimismo, presente já no romance de estréia, "Caetés" (1933), foi-se acentuando nos livros seguintes: "São Bernardo" (1934) e "Angústia" (1936). "Os heróis de Graciliano são seres (...) que se devoram por dentro; não têm outro objetivo que não o de se destruírem lentamente, completamente", observou Roger Bastide num artigo de 1947. À análise do meio social, com suas figuras derrotadas, se superpõe a auto-análise obsessiva, que em "Angústia" atinge o ponto máximo, chegando ao delírio da linguagem. "Romance desagradável, abafado, ambiente sujo (...) Solilóquio doido, enervante. E mal escrito", disse Graciliano a respeito do livro em suas "Memórias do Cárcere" (1953, póstumo). A esperança, quando aparece -como no final de "Vidas Secas" (1938)-, é apenas uma possibilidade remota. Única obra narrada na terceira pessoa, "Vidas Secas", seu último e mais famoso romance, expõe a existência quase impossível de uma família de retirantes. Sua força, magnificamente transposta para o cinema por Nelson Pereira dos Santos em 1963, deriva sobretudo do distanciamento do narrador, do uso das pausas e silêncios, recursos que amplificam a miséria material e simbólica de suas personagens e parecem incluir, nessa mesma condição, todos os leitores. No cinquentenário da morte de Graciliano Ramos, o Mais! decidiu contrariar a desconfiança do autor -"o maior pessimista desta literatura de pessimistas que é a brasileira" (Otto Maria Carpeaux)- e lhe dedicar este número especial. Afinal a literatura do Velho Graça é boa "como o diabo", para usar uma de suas expressões. Em investigação inédita, feita no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, o repórter Mário Magalhães reconstitui a militância do escritor no Partido Comunista Brasileiro. Benedito Nunes fala em entrevista sobre o sentimento de absurdo em Graciliano, e Silviano Santiago escreve um diário ficcional dos últimos dias do autor. Finalmente Ferreira Gullar, Luiz Costa Lima, Luis Bueno, Beatriz Resende e João Cezar de Castro Rocha comentam suas principais obras. (© MAIS! Folha de S. Paulo) Documentos preservados
no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro mostram a confiança que o escritor
depositava no socialismo e escancaram a intensa perseguição política de que foi vítima Menos de uma semana após desembarcar preso do navio "Manaus", que o levara de Recife para o Rio de Janeiro, Graciliano Ramos foi obrigado a "tocar piano", como define o jargão policial. Recolhido à Casa de Detenção, imprimiu as dez digitais na ficha da Delegacia Especial de Segurança Política e Social, o coração da então temida Polícia Civil do Distrito Federal. Anotou a profissão, funcionário público, e o endereço, rua da Caridade, 167, na capital alagoana. Era o dia 20 de março de 1936. Treze anos depois, em 16 de abril de 1949, Graciliano teve novamente de besuntar os dedos na tinta e teclar mais uma ficha. Desta feita, a iniciativa de procurar a polícia fora sua: a lei exigia atestado de ("bons") antecedentes para a emissão de passaporte. Haviam mudado a ocupação, agora escritor e jornalista, e o local de moradia, rua Belisário Távora, 480, bairro carioca de Laranjeiras. Como antes, recusou-se a declarar a religião (não tinha) e deixou em branco os espaços destinados a informações sobre apego à bebida e ao jogo. Deve ter sido uma provação. Desde a viagem compulsória
no porão do "Manaus", passando pelo Pavilhão dos Primários da Casa de
Detenção, pela Colônia Correcional de Dois Rios (na Ilha Grande), de volta à Casa de
Detenção e, por fim, pela Sala da Capela de Correção, Graciliano adquirira ojeriza ao
"piano". Os dez meses em cana (março de 1936 a janeiro de 37) renderiam a obra
póstuma "Memórias do Cárcere", que o autor começou a escrever em 1946 e
deixou inconclusa, sem o capítulo derradeiro. "No dia seguinte, depois do café,
vieram buscar-nos e ainda uma vez nos catalogaram", contou no livro. "Novas
fotografias, novas impressões digitais em fichas. Estupidez. Imaginariam que as nossas
caras eram outras, que os nossos dedos se transformavam, deixavam no papel marcas
diferentes das primeiras?" Não se sabe se foi coincidência ou se um agente da polícia política, humilhado pela eloquência da lógica de Graciliano, caiu em si e limpou os fichários da repartição, mas sobrou uma única ficha dos tempos de prisão do escritor alagoano. Além da de março de 1936, preservou-se a de abril de 1949. As duas fazem parte do prontuário 11.473, instaurado em 1936 e alimentado por espiões e burocratas até depois da morte de Graciliano Ramos. O prontuário, uma pasta feita em cartolina, amarrada por dois cordões e recheada de documentos, integra o acervo das extintas polícias políticas do antigo Distrito Federal, do extinto Estado da Guanabara e do Estado do Rio (até 1983, quando a seção dedicada à vigilância dos adversários políticos dos governos de plantão foi fechada). O material, mais conhecido como "o arquivo do Dops" -das iniciais de Departamento de Ordem Política e Social, o principal órgão estadual de repressão aos oposicionistas durante a ditadura militar (1964-85)-, está sob guarda do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro. Foi para lá na primeira metade dos anos 1990, quando os documentos secretos, mantidos em sigilo por décadas, passaram a ter o acesso legalmente permitido. Parte do baú de Graciliano foi exposta em 1992 na Biblioteca Nacional. Parte permanecia desconhecida. O Mais! consultou-o ao longo de três semanas. O prontuário 11.473, seu
anexo com uma alentada coleção de recortes de jornal com artigos de autoria e a respeito
de Graciliano, a pasta do fundo documental DPS com a notação D. 1.667 e relatórios
avulsos em outras 25 pastas dissecam, meio século após o autor de "São
Bernardo" (1934) morrer abatido pelo câncer, uma das facetas essenciais da sua
trajetória: a de fidelíssimo membro do PCB (Partido Comunista Brasileiro), que ocupou
seus últimos dez anos de vida num disciplinado ativismo sob monitoramento das rédeas
curtas do aparelho partidário. No pós-guerra, vivia o auge do prestígio entre seus
pares o tirano soviético Josef Stálin (1879-1953), tido por fiéis mundo afora, no
Brasil associados ao PCB, como "guia genial dos povos". A reconstituição do itinerário stalinista de Graciliano Ramos, proporcionada pela garimpagem de registros históricos no Arquivo Público do Rio de Janeiro, não surpreende pela filiação partidária, jamais ocultada, mas pela abnegação da militância de quem manteve sua literatura a salvo das imposições do PCB. Graciliano era, nesse aspecto, o reverso do seu correligionário Jorge Amado (1912-2001). O escritor baiano não teve pudor em fazer de sua arte instrumento de mitificação, ao biografar o dirigente comunista Luiz Carlos Prestes ("O Cavaleiro da Esperança", 1942) ou tratar da refrega política intestina da esquerda, em "Os Subterrâneos da Liberdade" (1954). O alagoano, no que parece um exercício rigoroso de separação da personalidade artística da personalidade política, à medida que elas eventualmente possam não se confundir, logrou resguardar a independência criativa. "Memórias do
Cárcere" é um exemplo vigoroso. Ao ser detido em 1936 sob a infundada acusação
-nunca formalizada- de ter conspirado no malsucedido levante comunista de novembro do ano
anterior, Graciliano Ramos ainda não formava nas fileiras do PCB. A despeito de minúcias
na descrição de numerosos episódios, o arquivo dos arapongas não esclarece a data da
adesão. Formalmente, estabelece a filiação em 1945, ano em que o partido retornou ao
soluço histórico de legalidade que se estenderia somente até 1947. Quando se põe a
redigir as lembranças da cadeia, Graciliano já era comunista no mínimo desde um ano
antes, quando perfilava na célula (unidade de base do partido) batizada Raimundo
Rodrigues -passaria depois pela Abelardo Nogueira e a Teodoro Dreisser, conforme a
espionagem policial. A narrativa típica de militantes da época cumpriria a cartilha do realismo socialista, suposta escola estética que asfixiou a arte na União Soviética na era de Stálin (1924-53) ao subordiná-la à política. Não foi o que Graciliano fez em "Memórias do Cárcere", que por pouco não recebeu o título de "Cadeia". O que na pena de outro militante poderia ter sido um amontoado de glorificações de comunistas encarcerados do primeiro governo (1930-45) de Getúlio Vargas (1882-1954), em Graciliano foi revivido com honestidade intelectual. Há no livro palavras generosas sobre aqueles que penavam nas celas, muitos submetidos às torturas mais desumanas. Contudo o autor não se propôs a promover personagens ao gosto da conveniência política. Alguns militares presos, co-partícipes da chamada Intentona Comunista, foram vistos com desprezo. Graciliano dispensou eufemismos para amenizar a indigência dos escritos de companheiros de infortúnio que lhe eram dados para comentar. A má vontade dos prisioneiros com os discursos em portunhol do argentino Rodolfo Ghioldi, integrante da direção da Internacional Comunista, era consequência de "patriotismo idiota". E o nacionalismo exacerbado era um dos pilares da orientação pecebista -isso o escritor não disse, nem precisava, de tão ululante. O mesmo Ghioldi, herói comunista de projeção mundial, acarinhado com palavras simpáticas, não era um super-homem. Chegou a "andar mal, silencioso, sem apetite". Até os dentes caíam. O que certas memórias seletivas apresentavam como inquebrantável aliança solidária dos internos se tratava de ambiente tenso, com altercações resolvidas a tapa. Um revolucionário trotskista, militante tão ou mais asqueroso que os fascistas, segundo a doutrina stalinista, convivia fraternalmente com Graciliano. "Esses desacordos me
deixavam perplexo", recordou. Não é à toa que foi de perplexidade a reação de
setores do PCB a "Memórias do Cárcere". Há testemunhos sobre militantes de
base que escondiam os volumes da estante diante de chefes do partido. Provavelmente não
foi coincidência a edição póstuma -Graciliano interrompeu a redação das memórias
incômodas para muitos camaradas e não a retomou a tempo. Escapou de presenciar as
reações contrariadas. Em vez de concluir o livro, escreveu "Viagem", crônicas
sobre sua passagem pela União Soviética e outros países. É a maior concessão ao
stalinismo em sua obra, embora tenha se acautelado, assegurando que o seu papel não seria
o de divulgador. Seus romances ("Caetés", "São Bernardo",
"Angústia" e "Vidas Secas") foram editados de 1933 a 1938. No
período intenso de militância não escreveu mais nenhum. A ficção minguou. Mesmo
assim, resguardou a liberdade artística e evitou que seus contos, crônicas e memórias
se degradassem como peças de apologia do partido. É por isso que seus anos finais,
recuperados no Arquivo do Rio, impressionam. A começar por alguns artigos. "O Partido Comunista e a Criação Literária" saiu num periódico comunista em maio de 1946. Um agente do setor de informações recortou-o e colou-o numa folha-padrão da Divisão de Polícia Política e Social. Graciliano negava existir ingerência da agremiação a que pertencia na elaboração artística de seus filiados: "É necessário asseverarmos que o Partido Comunista nenhum dano causa à produção literária. (...) Tolice imaginar que lhes vão torcer idéias, impor o trabalho desta ou daquela maneira. (...) E é claro que não haveria conveniência em fabricar normas estéticas, conceber receitas para a obra de arte (...)". A ata de uma reunião comunista de 22 de outubro de 1945, apreendida pela arapongagem, mostra como, na realidade, o partido concebia o lugar das artes. O encontro juntara os secretários (coordenadores) de três células do setor cultural. Planejou-se um concurso de esquetes. "Esses trabalhos deverão ter caráter doutrinário político. Por esse meio a massa será esclarecida ou politizada divertindo-se", assinalou a ata. Sugeria-se uma comissão julgadora com quatro pessoas, incluindo Graciliano. O realismo socialista impregna um bilhete datilografado que foi enviado de Moscou em julho de 1952 por um provável russo de nome Boris. O signatário comemora o que afirma ter sido a boa receptividade de um "trecho do vosso romance" (capítulo de "Vidas Secas") publicado na revista "Ogoniok". Em seguida, pede: "Ficarei agradecido se nos enviardes um conto dedicado à vida atual dos trabalhadores brasileiros". A polícia se apropriou do bilhete, mas não apurou se a encomenda foi atendida. Meses antes, Graciliano participara do desfile de 1º de maio em Moscou, com a presença de Stálin, para quem em 1949 despachara uma mensagem de parabéns pelos 70 anos de idade. Na mesma viagem, foi
recebido pela União dos Escritores Soviéticos, conforme boletim do Dops. A mesma
entidade (organização do poder stalinista para reprimir manifestações artísticas
julgadas daninhas ao Estado), bem como a congênere polonesa, enviaria saudações nos 60
anos de Graciliano, festejados numa cerimônia no Rio. Na ocasião, o secretariado do
partido saudou o escritor que combatia "ao lado das forças que em nosso país lutam
pela paz e a independência nacional". O "camarada Graciliano Ramos", que
honrava "as melhores tradições democráticas da nossa intelectualidade", de
acordo com a nota do PCB, fora uma das estrelas da "Comissão Promotora dos Festejos
do Cinquentenário de Prestes", o secretário-geral do partido. O que torna o acervo do Rio ainda mais valioso é a sua composição conjugada: foi guardado tanto o que o Estado produziu sobre Graciliano como o que era da lavra dos próprios comunistas e foi apreendido por espiões ou em batidas policiais. A ficha do escritor não conta nem o local do seu nascimento em Alagoas (Quebrangulo, um paroxítono que se costuma adornar erradamente com um acento circunflexo) nem sua passagem pela Prefeitura de Palmeira dos Índios (AL). Diz que foi demitido da direção da Instrução Pública de Alagoas, em 1936, "em virtude de atividades subversivas". Entregue em 14 de março daquele ano às autoridades no Rio, foi libertado em 13 de janeiro de 1937. No princípio da década de 1940, sua frequência à sede da revista "Diretrizes", junto de Álvaro Moreira, Joel Silveira, José Lins do Rego e outros "conhecidos comunistas e elementos de esquerda", não passou despercebida a um agente infiltrado. O olhar da polícia política sobre Graciliano e os outros comunistas cresceu a partir de 1945, quando Getúlio Vargas, o ex-ditador convertido pelo PCB em aliado, foi apeado da Presidência. A candidatura a deputado constituinte pelo partido em Alagoas mereceu referência marginal. Em 139 registros acumulados em seu fichário, cada um correspondente a um documento, o grosso se detém na mais importante tarefa que o PCB destinou ao escritor: a animação da "campanha pela paz", iniciativa mundial conjunta, no contexto da Guerra Fria, de todos os partidos ligados ao Kremlin. Graciliano foi legalmente
dono e editor do jornal "Partidários da Paz", jurado dos "Prêmios da
Paz", fundador e conselheiro do "Movimento Brasileiro dos Partidários da
Paz", diretor da "Organização Nacional de Defesa da Paz e da Cultura",
participante do Congresso dos Partidários da Paz, em São Paulo, e delegado eleito para o
2º Congresso Mundial dos Partidários da Paz. Presidente da Associação Brasileira de
Escritores, fez dela uma das entidades mais empenhadas no "combate pela paz". Em
todas as frentes, graças ao prestígio como escritor e à missão determinada pelo PCB,
ocupou lugar de destaque. Por causa da campanha, o Dops de São Paulo abriu inquérito em
1949 para investigar "signatários de documentos relacionados a atividades comunistas
rotuladas de paz". Entre os alvos da perseguição, Graciliano, o também escritor
Orígenes Lessa e o arquiteto Oscar Niemeyer. Ao se descobrir ostensivamente seguido pela polícia política, enviou protesto ao Ministério da Justiça. Não diminuiu o ritmo militante, em companhia da segunda mulher, Heloísa Ramos, que viveria até 1999. Em 4 de setembro de 1952, ela proferiu a palestra "Impressões de uma Viagem à Europa". Um "observador" da polícia escreveu que havia 11 assistentes. "A conferência se transformou em conversa em família, sobre as maravilhas da União Soviética", relatou. Já doente e internado numa casa de saúde do Rio, Graciliano, com um cigarro entre os dedos, deu entrevista ao jornal "Imprensa Popular", órgão extra-oficial do PCB. Desmentia notícia de um livro editado em Portugal sobre mudança de suas convicções. "Quando passei por Lisboa eu ia a caminho de Moscou, da União Soviética, realizar um velho sonho. Tudo o que vi reforçou a minha confiança no socialismo, na causa da paz", disse. No mesmo dia em que a entrevista foi publicada, 5 de março de 1953, Stálin morreu. Graciliano morreria duas semanas depois, dia 20, aos 60 anos. Em 1956, o congresso do PC soviético denunciaria formalmente ao mundo os crimes de Stálin, que a rigor já eram sabidos por quem queria saber. Cinquenta anos após o desaparecimento de um dos maiores talentos da literatura brasileira, o mestre do texto enxuto como seu próprio corpo, sobraram ainda outras preciosidades da sua história. Como a mensagem enviada por rádio de Maceió e recebida no Rio em 12 de janeiro de 1937, na qual o secretário do Interior de Alagoas informou não ver "inconveniente" na "liberdade [de" Graciliano Ramos". Restaram três fotografias: uma do escritor preso; uma dele taciturno, dedicada a Ruy Santos, fotógrafo oficial do PCB na década de 1940 e provável autor da imagem; e uma terceira, sem crédito, do alagoano escrevendo à mão. No balanço geral, o inventário político de quem, ao refletir sobre a liberdade, escreveu: "Começamos oprimidos pela sintaxe e acabamos às voltas com a Delegacia de Ordem Política e Social, mas, nos estreitos limites a que nos coagem a gramática e a lei, ainda nos podemos mexer". © MAIS! Folha de S. Paulo) O crítico Benedito
Nunes fala da experiência subjetiva na obra de Graciliano e o aproxima de Guimarães Rosa
e Camus da Redação "Graciliano é um
escritor atualíssimo, porque está muito afinado com a tônica do pensamento
contemporâneo, que não vê saídas e experimenta o vivido cada vez mais como
absurdo", diz Benedito Nunes nesta entrevista feita por telefone, de sua casa em
Belém (PA). (MAURÍCIO SANTANA DIAS) (© MAIS! Folha de S. Paulo) O CRÍTICO E ESCRITOR
CRIA UM DIÁRIO FICCIONAL INSPIRADO NOS ÚLTIMOS DIAS DE VIDA DO AUTOR DE "MEMÓRIAS
DO CÁRCERE" Transfixão de Silviano Santiago Já a morfina embaralha os passos da escrita. Entontece-os, literalmente. Entorpece a imaginação. Parece que entro num museu de bricabraque, onde a cada objeto e ao conjunto deles falta sentido. Busco a palavra e não comparece. Aparece a correspondente em uma das duas línguas estrangeiras que domino. Busco o final da frase e já não me ocorrem as palavras iniciais. Morfina não é para artista-criador. É para artista-intérprete. Aquele que já conhece de cor e salteado a partitura. Decididamente, não nasci para ser concertista no piano das letras. Tenho um importante livro
para terminar -minhas memórias na cadeia. Deixo-o incompleto. Tenho um outro livro para
terminar -de viagens. Tenho certeza de que o estou abandonando neste capítulo 34, a que
ora ponho o ponto final. Dois livros incompletos e póstumos -seria irônico, se não
fosse também grotesco. E o cigarro? Continuo a comer o pão que o diabo amassou. Não conversa comigo, está rezando. Sem Deus, será que continuaria a me visitar e a dizer o que diz? Não ama o semelhante, ama a Deus sobre todas as coisas. Na certa também calça os
olhos com luva antes de ler as safadezas do Velho Testamento.
(© MAIS! Folha de S. Paulo) O COTIDIANO MENOR DE ANGÚSTIA por Ferreira Gullar Li o romance
"Angústia", de Graciliano Ramos, aos 20 anos e quando ainda vivia em São
Luís. Estava descobrindo a literatura e buscava conhecer tudo o que me diziam ser
importante. Já havia lido alguns romances de Machado de Assis e de Aluísio Azevedo, meu
conterrâneo. A leitura de "Angústia" causou-me um impacto. Hoje, 50 anos
depois, tento entender as razões daquele impacto e percebo que a primeira delas foi o
estilo, áspero e rude, do escritor. A cada frase, o narrador-protagonista ia se revelando
uma personalidade ácida, que desconsiderava os ditos valores sociais, os quais não
passavam, para ele, de mera hipocrisia. Hipócritas eram todos, inclusive ele mesmo, que
ganhava a vida alugando sua pena para redigir artigos venais. Um pobre diabo, que morava
mal, numa casa que ele dividia com ratazanas e uma empregada surda. Mas eis que vem morar
na casa ao lado um casal de velhos com uma filha muito jovem e tentadora. Os risinhos
dela, suas coxas, seus cabelos louros, suas frases provocativas viraram a cabeça daquele
homem casmurro e lhe acenderam uma esperança de vida. Esperança que durou pouco, é
verdade, porque a jovem sedutora, mais interessada em meias de seda e sapatos da moda,
logo o trocaria por outro, com mais grana e menos caráter. Reli o romance, agora. A força do estilo se mantém e a narrativa na primeira pessoa, entre sarcasmos e resmungos, nos arrasta inapelavelmente até o desfecho brutal. Verifico então: uma das coisas que mais me fascinaram na primeira leitura, e se confirmou agora, foi a presença viva, no romance, do cotidiano menor daquelas pessoas anônimas, vivendo em fundos de quintal, a lavar e a estender roupas, a encher dornas de vinho, como a empregada que escondia moedas na terra do quintal. E os banhos de Marina, a mocinha sedutora, que ele acompanhava de seu banheiro pegado ao dela, ouvindo-a cantarolar, ensaboar-se e lavar-se com a água que escorria cantando por seu corpo e sumia no ralo. É nestes e em outros detalhes, nestas e em outras particularidades, que reside o caráter brasileiro, permanente, deste romance que se incorporou de vez à nossa literatura. Não menos irresistível é a parte do livro que narra a frustração do personagem e sua revolta diante da traição que sofrera. A partir daí, suas lucubrações se misturam a alusões aos ratos que infestam a casa e que se infiltram por toda parte, no guarda-comida, no quarto de dormir, na estante de livros ("eles mijam na literatura"), e tudo roem, antes de morrerem em meio aos papéis, às roupas, aos mantimentos. A presença desses animais repugnantes, que lhe fogem ao controle, parece penetrar a própria alma do personagem, misturar-se ao seu ódio e à sua obsessão homicida. A releitura serviu para convencer-me de que o romance nada perdeu com o passar dos anos. O estilo, o modo de narrar, de construir os personagens e fazer caminhar a ação dramática (que esse é o caso, em "Angústia"), são plenamente atuais e sem dúvida mais eficazes e intensos que o de muitos romances de agora. E talvez essa atualidade resida no fato de que Graciliano, na sua aparente rudeza, comovia-se com o desamparo de seus personagens, nos quais identificava o seu próprio desamparo e de todo ser humano, "este bicho da terra tão pequeno". Ferreira Gullar é poeta e ensaísta, autor de, entre outros, "Toda Poesia" (ed. José Olympio) e "Argumentação contra a Morte da Arte" (ed. Revan). (© MAIS! Folha de S. Paulo) A LIBIDO DA ESCRITA NAS MEMÓRIAS DO CÁRCERE por Luiz Costa Lima O fracasso do levante comunista de fins de 1935, com as sublevações em Natal, no Recife e no Rio, justificara a repressão movida por um governo Vargas então inclinado aos fascistas. Em março de 1936, o diretor da Imprensa Pública de Alagoas é demitido e, logo depois, preso. Inicia-se um período doloroso, incerto e decisivo na vida, até então mediocremente normal, de Graciliano Ramos. Que envolvimento teria ele com os perseguidos? Não era membro do Partido Comunista (a que só se filiaria em 1945); embora admirasse Prestes, dele pouco sabia, e sua conduta na cadeia o mostrava reticente quanto às decisões dos coletivos ou suspeitoso da maneira como eram elas alcançadas e logo desfeitas. Talvez o motivo de sua
prisão tenham sido, como diria seu futuro advogado Sobral Pinto, seus romances; por
certo, a denúncia, nestes momentos particularmente bem-vinda, de alguém que se julgara
desfavorecido. Apanhado em casa, é levado, ainda com certa cerimônia, em carro oficial,
para a estação de trem que o conduzirá a Recife. O encontro com sua mulher já diz
muito daquele ser aparentemente e tão-só secarrão. Pois é sob palavras ásperas que se
oculta o afeto de Graciliano. No Recife, a situação começa a se complicar. Em vez de curta, como a princípio supusera, a cadeia se prolonga e culmina no embarque em um velho navio, que tem o Rio por destino. Misturado a centenas de outros -participantes, já torturados, da insurreição de Natal, inocentes, vagabundos, ladrões, até um fanático religioso, delatores e acusados de delação-, ele é lançado na "furna medonha", o porão do "Manaus". "Rostos esmaecidos", "prostrações dolorosas", ali, Graciliano, com 43 anos, desajeitado, autocrítico, saído havia pouco de uma operação não de todo cicatrizada, conhece "o máximo requinte de perversidade". Em certo momento, crê que a loucura dele se apodera. Vence-a, contudo. Mais forte
que sua denúncia da estupidez do "fascismo tupiniquim", só a acidez do juízo
que tem de si próprio: "Eu vivera numa sombra razoável, quase anônimo: dois livros
de fôlego curto haviam despertado fraco interesse e alguma condescendência desdenhosa.
Era um rabiscador provinciano detestado na província, ignorado na metrópole". Seu
juízo sobre o valor literário de seu terceiro livro, "Angústia", publicado
enquanto esteve preso, não é diverso; muito menos sobre sua postura política:
"Achava-me fora das classes, num grupo vacilante e sem caráter (...). Repelido em
cima e em baixo". Aprende contudo a se virar; com a ajuda dos que por ele interferem
e um tanto de sorte, sobrevive. Sua principal ligação com a vida era a escrita. A
escrita é sua libido -aquela que o anafrodisíaco a ser misturado ao café, no
"pavilhão dos primários", não inibirá. Tão logo começa a terrível
travessia, se põe a tomar notas, na expectativa de um dia formular o que presenciava. A
prisão lhe abria uma experiência inaudita -nenhum de seus romances conterá algo
semelhante. Duas serão suas consequências: a incomparável ampliação da variedade de
tipos que encontra na espécie humana, e a sensível diminuição de seu tempo de vida
-morrerá aos 60 anos. Na furna do porão, sob o calor semelhante ao de uma caldeira, sem escolha ante alimentos contra os quais sua garganta se estreita, pisando em um chão imundo pelo mijo que se espalha com os balanços do barco, Graciliano mantém, mesmo tendo de se desfazer de suas notas, a lucidez com que recordará o que viveu. São situações não só macabras, mas também de inesperada solidariedade humana. Esta já o impressionara no quartel de Recife, onde um capitão, seu carcereiro, sabendo o que o espera, lhe oferece uma parte de sua poupança, como empréstimo a ser resgatado algum dia. Comparar o que ali se passa com o "Inferno" dantesco só não será repugnante se acrescentarmos que os castigos não se respaldam por nenhuma espécie de justiça, por mesquinha que fosse. Ainda que trôpego e há vários dias sem alimento, ao chegar ao Rio o preso é transferido para o "pavilhão dos primários". O leitor que, 30 anos depois, tenha tido experiência comparável, poderá se dizer que a repressão ainda tinha muito a aprender. De fato, o "pavilhão", comparado à travessia no "Manaus", pareceria uma colônia de férias. Mas não era bem assim. Os percevejos e os delatores substituíam sem desdouro o esmero da técnica repressiva. De qualquer modo, seria inútil tentar descobrir uma lógica entre o primeiro transporte, o estágio entre os primários, onde estão figuras como Olga Prestes, o argentino Rodolfo Ghioldi, Agildo Barata e a experiência horripilante da "colônia correcional". Nada de tão pavoroso se escreveu entre nós. A polícia de Felinto
Müller podia não ter requintes, mas sabia explorar sua bestialidade. A maneira mais
incisiva de defini-la está nas palavras do guarda que recebe a leva em que Graciliano é
trazido: "Aqui não há direito. Escutem. Quem foi grande esqueça-se disto. Aqui
não há grandes. Tudo igual. Os que têm protetores ficam lá fora. Atenção. Vocês
não vêm corrigir-se, estão ouvindo? Não vêm corrigir-se: vêm morrer". Mas,
embora outra vez não consiga tragar o alimento distribuído, as pernas entorpeçam e o
talho da operação doa no baixo ventre, Graciliano sobrevive. Outra vez, tomara notas e,
ao sair, terá de desfazer-se delas. Mas a perda não importará ante a força do que
presencia e fixa. Força até do que pareceria insignificante: "(...) A violência
organizada era bem precária: os agentes dela se bandeavam, nos momentos difíceis vinham
cochichar-nos informações e conselhos". O que muito menos impede que recorde a crueldade absurda, a pusilanimidade bestial, bem como a inesperada grandeza de sentenciados e ladrões comuns. Em sua frase seca, Graciliano tem na escrita o meio de formular a variedade do homem. Algozes, vagabundos ou pessoas que perderam o que tinham em defesa de suas convicções podem ser de igual dignos ou falastrões. Quanto tempo teria Graciliano passado na "colônia correcional"? Pelo que a leitura deixa presumir, pouco mais de uma quinzena. É pelo esforço de sua mulher, Heloísa, e pelo empenho do amigo José Lins do Rego que consegue outra transferência. A "casa da correção", em que completará 11 meses de prisão sem julgamento, é comparável ao "pavilhão dos primários". Em troca, é aí que presenciará um dos fatos mais ignóbeis do governo Vargas: malgrado o protesto indignado dos presos, a entrega de Olga Prestes e Elisa Berger aos agentes da Gestapo [a polícia secreta nazista". Pouco depois, Sobral Pinto,
que já defendera Olga e Elisa, o tirará da prisão. Graciliano, conforme declara no
início da obra, redigirá as "Memórias do Cárcere" dez anos depois de ser
libertado. Luiz Costa Lima é ensaísta, crítico e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ). É autor de "Intervenções" (Edusp) e "Mímesis - Desafio ao Pensamento" (ed. Civilização Brasileira), entre outros. Escreve regularmente na seção "Brasil 503 d.C.". (© MAIS! Folha de S. Paulo) O HERÓI POR CONTRASTE DE CAETÉS por Luis Bueno A história da publicação de "Caetés", romance de estréia de Graciliano Ramos, é uma passagem curiosa da história da literatura brasileira. Em 1929 o escritor alagoano se tornara conhecido nos meios literários do Rio de Janeiro pela divulgação dos famosos relatórios que escreveu dando contas de sua atuação como prefeito de Palmeira dos Índios. Em 1931 o poeta Augusto Frederico Schmidt fundou uma editora e, já na contracapa de seu primeiro lançamento -"Oscarina", de Marques Rebelo-, anunciava a publicação de "Os Caetés", romance de Graciliano Ramos. No entanto o público teve que esperar até a segunda quinzena de dezembro de 1933 para poder lê-lo. Alguns acusaram Schmidt, que
estava em terreno político oposto ao de Graciliano, de retardar sua publicação. Outros
dizem que, na desorganização que era a Schmidt Editora, os originais ficaram
desaparecidos por mais de um ano. Seja qual tenha sido a causa do atraso na publicação,
no final de 1933, depois dos lançamentos de "Cacau", de Jorge Amado, e "Os
Corumbas", de Amando Fontes, o público e a crítica esperavam outra coisa de um
homem de esquerda como Graciliano Ramos. O crítico pernambucano Aderbal Jurema sintetizou
bem a decepção causada por "Caetés", considerando-o "um livro somente
humano", "completamente alheio à desigualdade de classes na sociedade e fora da
órbita da literatura revolucionária do momento". É claro que isso não significa que o romance tenha sido considerado ruim, e Jorge Amado, no auge de seu prestígio literário, chegou a dizer que considerava "Caetés" a melhor de todas as estréias daquele início de década. Mas se percebe uma tendência de "Caetés" ter sido subvalorizado desde seu lançamento, o que depois se intensificou, à medida que Graciliano foi lançando livros fantásticos, que acabaram fazendo sombra àquele romance de estréia. E "Caetés" é um livro admirável e merecedor de leitura por mais de um motivo. Em primeiro lugar porque o
texto único de Graciliano Ramos já está lá -aliás, já estava em alguns artigos que,
ainda adolescente, o escritor publicara. Em segundo lugar, pela apurada técnica
narrativa. Antonio Candido notou o quanto "Caetés" ainda se liga ao
pós-naturalismo, àquela altura bastante decadente. Mas Graciliano faz desvios em
relação ao modelo naturalista que dão a seu romance um feitio especial. O mais evidente
desses desvios é a opção pelo narrador em primeira pessoa, que o naturalismo evitava.
Com esse deslocamento, o romance se constrói com um olho no espaço coletivo da pequena
Palmeira dos Índios, com sua galeria de tipos curiosos, e outro no caso individual de
João Valério, o protagonista da história, visto, por assim dizer, de dentro. Em terceiro lugar, porque essa constituição narrativa permite a "Caetés" ter uma riqueza temática que poucos romances brasileiros de seu tempo tinham. Note-se, nesse sentido, que a figura de João Valério representa a problematização, em alto grau de complexidade, do ambíguo papel do intelectual naquele momento em que o país passava por fortes transformações. Alguns críticos viram um sinal de grandeza de caráter nas inclinações intelectuais desse medíocre guarda-livros que colabora no jornal editado pelo padre da cidade e que durante cinco anos luta para concluir um romance sobre os índios caetés sem nunca conseguir sair do segundo capítulo. Mas é possível ver muito
menos do que isso. João Valério, que numa rápida passagem nos informa ter tido algumas
posses, sente-se inferiorizado na posição subalterna que ocupa -ainda que participe da
vida social da cidade. Não tendo mais nada, nem dinheiro nem talento, qual o caminho que
lhe resta para buscar algum tipo de prestígio social? Tornar-se respeitável pela
atividade intelectual. Assim, quando pensa no livro, tudo o que lhe vem à mente é a
imagem de sua exposição nas livrarias e as palavras que se diriam a seu respeito. Diante
das dificuldades que tem pela completa ignorância sobre o assunto que escolheu,
facilmente desiste, adiando seu trabalho e, portanto, sua glória. Não é à toa que sua
vocação literária desaparece sem deixar vestígios assim que, por um golpe do destino,
acaba se tornando sócio da casa comercial em que trabalhava. O prestígio social chegou e
basta: não é preciso buscar derivativos na literatura. Nem mesmo Luísa, a mulher do
patrão, por quem se apaixonara, desperta-lhe interesse. Dessa forma, João Valério completa, por contraste, a trajetória de fracasso dos heróis posteriores de Graciliano, Paulo Honório, Luís da Silva e Fabiano. Afinal ele é o único que consegue o que deseja -que vence. Mas essa vitória só é possível porque, no fundo, nada o separa dos valores da comunidade em que vive. Na dupla estreiteza -pessoal e do meio-, tornar-se proprietário compensa a queda social anterior e ponto final. Haverá mesmo vitória nisso? "Caetés" tem importância no conjunto da ficção de Graciliano Ramos também como demonstração do beco sem saída que a ação isolada representa nos livros desse grande romancista. Luis Bueno é professor de literatura brasileira na Universidade Federal do Paraná. (© MAIS! Folha de S. Paulo) A NARRATIVA EM NEGATIVO DE SÃO BERNARDO por Beatriz Resende Partindo da estratégia
narrativa do romance dentro do romance, Graciliano exercita a realização da negatividade
retirando do autor ficcional todos os predicados necessários à escritura romanesca:
imaginação, sensibilidade, prazer, amor, habilidade no uso da língua, vocabulário
erudito, gosto pela literatura. Sem metáforas, mas dispondo da diversidade da fala local
e dos ditados de gente do campo, esse homem de dedos excessivamente grossos, cuja razão
de viver foi apossar-se das terras de S. Bernardo, precisa escrever a sua história para
sobreviver à tragédia por ele mesmo causada. E aí está o primeiro grande desafio que o
romance propõe. O pacto que estabelece com o leitor implica a negação de qualquer
simpatia por aquele que conduz a narrativa. Paulo Honório é o homem a quem a vida agreste tornou agreste. Às vésperas da Segunda República, ele é senhor de terras reacionário, autoritário, interessado apenas em transformar em lucro a propriedade, os animais e as pessoas que o cercam. No exercício da construção pelo avesso, esse homem incapaz de paixão enlouquece de ciúme pouco após o casamento com Madalena, ela sim capaz de domar a escrita, de apreciar um livro, de buscar a justiça, de respeitar o outro. Porém também ela incapaz de amor, pelo marido ou pelo filho. Ou quem sabe não, já que é vista pelo narrador, o marido cego pela desconfiança, incapaz de vislumbrar ternuras. O ciúme e a violência vão trazendo de volta o assassino de outrora. O arbítrio e a dominação encontram na paranóia pasto fácil onde o desejo de crime pode crescer. Mas na escritura do homem sem letras, "grosseiro, monstruosamente grosseiro", o esperado em um universo romanesco não pode ter lugar, e a cena de Otelo pertence aos clássicos. Na construção por inversos, Madalena vai conseguir a liberdade, vai escapar ao domínio insano, não pela vida, e sim pela morte. O que a condena é a folha perdida de carta endereçada a homem e lida pelo marido em quem "ferviam (...) violências desmedidas", tornando-o incapaz de enxergar palavras. O suicídio da vítima
garante-lhe o escape, a livra das noites de choro, é a única forma de liberdade
possível, é liberdade que nenhum déspota lhe pode tirar. O envenenamento a liberta e
decreta o sofrimento perene de seu algoz. Todo suicídio é um enigma, e a maldição que
lega aos sobreviventes é a necessidade de esclarecer suas razões. A carta deixada é o
texto onde Madalena, a que sabe da escrita -"Literatura, política, artes,
religião... Uma senhora inteligente, a d. Madalena. E instruída. É uma
biblioteca"-, poderá mostrar ao leitor por que preferira abrir mão da vida; é a
informação decisiva que cabe ao narrador do romance partilhar com o seu leitor. O ficcional criador do texto, no entanto, ainda uma vez repele aquele mesmo destinatário para quem escreve. Como os sentimentos e os propósitos da loura senhora esbarraram na brutalidade e egoísmo de Paulo Honório, a curiosidade do leitor se defrontará com a mesquinhez de quem conta a história. "Era uma carta extensa em que se despedia de mim. Li-a saltando pedaços e naturalmente compreendendo pela metade, porque topava a cada passo aqueles palavrões que a minha ignorância evita." Essa subtração da
narrativa será transformada por Leon Hirszman, no filme "São Bernardo", de
1971, em um dos grandes planos do cinema brasileiro. Paulo Honório dentro da casa, o
espectador fora. Tomado por fome e sede de
emoções, cenários, diálogos que lhe foram negados e diante da impossibilidade de
qualquer simpatia pelo narrador, o leitor chega ao fim do romance. Beatriz Resende é professora da UniRio e pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É autora de "Apontamentos de Crítica Cultural" (DNL/Aeroplano), entre outros. (© MAIS! Folha de S. Paulo) VIDAS SECAS OU A ATROFIA DA PALAVRA por João Cezar de Castro Rocha Num ensaio de 1943, Otto
Maria Carpeaux propôs uma leitura surpreendente do livro publicado apenas cinco anos
antes: "Não é o sertão o culpado; "Vidas Secas" é o seu romance
relativamente mais sereno, relativamente mais otimista. O culpado é -superficialmente
visto, numa primeira aproximação- a cidade". A oposição entre meio rural e meio
urbano nada tem de nova. E parece mais interessante pensar que a cidade surge como a
reserva de utopia em "Vidas Secas". Na projeção de Sinha Vitória e Fabiano,
no parágrafo que encerra o romance, "andavam para o Sul, metidos naquele sonho. Uma
cidade grande, cheia de pessoas fortes. Os meninos em escolas, aprendendo coisas difíceis
e necessárias". Entretanto caracterizar "Vidas Secas" pela serenidade e pelo otimismo constitui um achado que merece ser desenvolvido. Afinal, superficialmente visto, o romance começa com uma "mudança" (título do primeiro capítulo) e termina numa "fuga" (título do último capítulo). Nomes diversos para o mesmo destino de retirantes em busca da sobrevivência. Os 13 capítulos do livro emolduram as ações transcorridas entre duas secas, ou seja, o termômetro das vidas severinas de Fabiano, Sinha Vitória, os dois filhos, a cachorra Baleia e o papagaio -"mudo e inútil. Não podia deixar de ser mudo. Ordinariamente a família falava pouco". Otimismo e serenidade? A observação de Carpeaux exige que se recupere a dimensão utópica disseminada por Graciliano Ramos em pequenos gestos de seus personagens. "Utopia" pode ser uma palavra excessiva para o estilo só-lâmina de Graciliano. Mas o princípio esperança, esse não foi abandonado por Fabiano, até diante da iminência de nova estiagem: "Seria necessário mudar-se? Apesar de saber que era necessário, agarrou-se a esperanças frágeis. Talvez a seca não viesse, talvez chovesse". Sinha Vitória aprendeu a lição e, outra vez na estrada, resolveu acreditar que "talvez esse lugar para onde iam fosse melhor do que os outros onde tinham estado". Embora infundada, a esperança retorna nos momentos mais adversos, alimentando uma crença relativamente serena que não se confunde com fatalismo, pois a esperança surge no fim do romance na possibilidade de superação de limites. Uma possibilidade frágil, já se viu. Mas muito distante da leitura consagrada, sintetizada por Álvaro Lins: "O final do livro é uma retirada, como o princípio fora uma chegada, dentro de uma fatalidade que o romance sugere (...)". Porém, como descobrir em "Vidas Secas" um texto em alguma medida otimista? De um lado, a resposta se encontra no princípio esperança. De outro, na extraordinária investigação linguística e epistemológica que confere unidade ao romance. Esse é um ponto fundamental. A interpretação dominante estabeleceu padrão oposto, mais uma vez expresso por Álvaro Lins: "(...) a novela, tendo sido articulada em quadros, os seus capítulos, assim independentes, não se articulam formalmente com bastante firmeza e segurança". Ora, Graciliano não pretendia representar pobres retirantes; o que, numa abordagem tradicional, demandaria uma narrativa estruturada através de ações continuadas dos personagens. Pelo contrário, Graciliano esforçou-se por apresentar a pobreza em suas consequências mais graves: a atrofia da linguagem e a anemia do pensamento. A dificuldade no controle da linguagem e o consequente embaraço na ordenação do pensamento são os verdadeiros protagonistas de "Vidas Secas". No primeiro capítulo, a sobrevivência da família é assegurada com a morte do papagaio: "A fome apertara demais os retirantes e por ali não existia sinal de comida". Os sinais de diálogo eram igualmente escassos: "Depois daquele desastre viviam todos calados, raramente soltavam palavras curtas". Em todos os capítulos, observações semelhantes retornam obsessivamente, estruturando a narrativa em torno da relação entre palavras raras e pensamento inarticulado. O menino mais velho ficara intrigado com a palavra "inferno", o que irritara sua mãe. Depois de um castigo que considerou injusto, buscou aconselhar-se com Baleia: "Tinha um vocabulário quase tão minguado como o do papagaio que morrera no tempo da seca. Valia-se, pois, de exclamações e de gestos, e Baleia respondia com o rabo, com a língua". O filho mais velho aprendera com o pai, que "às vezes utilizava nas relações com as pessoas a mesma língua com que se dirigia aos brutos -exclamações, onomatopéias". Com tais recursos linguísticos, o pensamento pode se tornar tão hostil quanto o clima. O menino mais novo queria impressionar seu irmão e a cachorra. Fracassou, "fez tenção de entender-se com alguém, mas ignorava o que pretendia dizer. A égua alazã e o bode misturavam-se, ele e o pai misturavam-se também". O filho mais novo aprendera com a mãe, que enfrentava idêntica dificuldade para expressar o desejo por uma cama de gente como a de Seu Tomás da bolandeira: "Isto lhe sugeriu duas imagens quase simultâneas, que se confundiram e neutralizaram". A arquitetura de "Vidas Secas" revela-se toda no capítulo "Inverno", sétimo do conjunto de 13 capítulos. Reunida a família em torno do fogo, palavras atravessavam o ambiente. Tratava-se da "conversa dos pais. Não era propriamente conversa: eram frases soltas, espaçadas, com repetições e incongruências". Ora, essa arquitetura sutil se completa no último capítulo, "Fuga", simétrico invertido do primeiro, "Mudança". Nesse, os retirantes mudavam-se de uma fazenda a outra, mas em nada alteravam sua condição de "quase uma rês na fazenda alheia". Rês, res: coisa, apenas. Naquele, ao contrário, os viventes buscavam fugir do círculo perverso, imaginando um lugar, "uma terra desconhecida", a cidade grande. E como fazê-lo? Através do controle inesperado da linguagem. Nesse capítulo, "Fuga", os personagens deixam de trocar palavras: eles realmente dialogam. "Sinha Vitória precisava falar. (...) Chegou-se a Fabiano, amparou-o e amparou-se". Nas páginas finais, Graciliano semeia diversas vezes a palavra decisiva: conversa. É através da linguagem que os viventes se fortalecem. E, pela primeira vez no romance, Fabiano "mostrou os dentes sujos num riso infantil". Riso de quem era in-fans, de quem pouco falava e quase nada escutava. Agora, "as palavras de Sinha Vitória encantavam-no. Iriam para diante (...)". A linguagem transformou "quatro sombras" numa família. E quem sabe no capítulo que não foi escrito os dois meninos recebessem nomes próprios. João Cezar de Castro Rocha é professor de literatura comparada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É autor de "Literatura e Cordialidade" (Eduerj). (© MAIS! Folha de S. Paulo) + Cronologia (© MAIS! Folha de S. Paulo) Com relação a este tema, saiba mais (arquivo NordesteWeb)
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