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Os 50 anos da morte de Graciliano Ramos

11/03/2003

O escritor Graciliano Ramos com a neta em foto de março de 1953

Graciliano Ramos em sua casa


MARCADA PELO PESSIMISMO, OBRA FICCIONAL E MEMORIALÍSTICA DE GRACILIANO RAMOS TEMATIZA A VIOLÊNCIA EM TODAS AS SUAS FORMAS, CONTRAPONDO-LHE UMA BUSCA OBSTINADA POR CLAREZA E ORDENAÇÃO SINTÁTICA

O MESTRE DA SUSPEITA

Maurício Santana Dias
da Redação

   Graciliano Ramos de Oliveira morreu em 20 de março de 1953 achando que todos os livros que havia escrito eram "chinfrins". A auto-avaliação pode parecer descabida a alguém que deixou algumas das melhores obras da moderna literatura brasileira, como "São Bernardo" e "Vidas Secas". Mas também é verdade que todo grande autor sempre teve alguma desconfiança de sua própria obra -em dois casos extremos, Franz Kafka pediu ao amigo que destruísse seus escritos, e Nicolai Gogol jogou no fogo a segunda parte de seu romance "Almas Mortas". No entanto poucos expressaram esse desconforto com tanta insistência e raiva quanto Mestre Graça, como era chamado pelos amigos.

   Nascido em 27 de outubro de 1892, na cidadezinha de Quebrangulo, encravada no sertão de Alagoas, Graciliano cresceu sob o regime das secas e das surras paternas, formando desde cedo a idéia de que todas as relações humanas são regidas pela violência: violência psicológica, física, de classe. Esse é o grande tema que atravessa a sua obra, ponto cego contra o qual o escritor opôs uma busca obstinada por clareza e ordenação sintática.

   A necessidade de ver de perto os aspectos menos "nobres" da vida social e afetiva fez com que Graciliano pintasse, por exemplo, o seguinte quadro dos pais, no livro autobiográfico "Infância" (1945): "Um homem sério, de testa larga (...), dentes fortes, queixo rijo, fala tremenda; uma senhora enfezada, agressiva, ranzinza (...), olhos maus que em momentos de cólera se inflamavam com um brilho de loucura". O pessimismo, presente já no romance de estréia, "Caetés" (1933), foi-se acentuando nos livros seguintes: "São Bernardo" (1934) e "Angústia" (1936). "Os heróis de Graciliano são seres (...) que se devoram por dentro; não têm outro objetivo que não o de se destruírem lentamente, completamente", observou Roger Bastide num artigo de 1947.

   À análise do meio social, com suas figuras derrotadas, se superpõe a auto-análise obsessiva, que em "Angústia" atinge o ponto máximo, chegando ao delírio da linguagem. "Romance desagradável, abafado, ambiente sujo (...) Solilóquio doido, enervante. E mal escrito", disse Graciliano a respeito do livro em suas "Memórias do Cárcere" (1953, póstumo). A esperança, quando aparece -como no final de "Vidas Secas" (1938)-, é apenas uma possibilidade remota.

   Única obra narrada na terceira pessoa, "Vidas Secas", seu último e mais famoso romance, expõe a existência quase impossível de uma família de retirantes. Sua força, magnificamente transposta para o cinema por Nelson Pereira dos Santos em 1963, deriva sobretudo do distanciamento do narrador, do uso das pausas e silêncios, recursos que amplificam a miséria material e simbólica de suas personagens e parecem incluir, nessa mesma condição, todos os leitores.

   No cinquentenário da morte de Graciliano Ramos, o Mais! decidiu contrariar a desconfiança do autor -"o maior pessimista desta literatura de pessimistas que é a brasileira" (Otto Maria Carpeaux)- e lhe dedicar este número especial. Afinal a literatura do Velho Graça é boa "como o diabo", para usar uma de suas expressões.

   Em investigação inédita, feita no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, o repórter Mário Magalhães reconstitui a militância do escritor no Partido Comunista Brasileiro. Benedito Nunes fala em entrevista sobre o sentimento de absurdo em Graciliano, e Silviano Santiago escreve um diário ficcional dos últimos dias do autor. Finalmente Ferreira Gullar, Luiz Costa Lima, Luis Bueno, Beatriz Resende e João Cezar de Castro Rocha comentam suas principais obras.

(© MAIS! Folha de S. Paulo)


Documentos preservados no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro mostram a confiança que o escritor depositava no socialismo e escancaram a intensa perseguição política de que foi vítima

MEMÓRIAS DE UM MILITANTE STALINISTA

   Menos de uma semana após desembarcar preso do navio "Manaus", que o levara de Recife para o Rio de Janeiro, Graciliano Ramos foi obrigado a "tocar piano", como define o jargão policial. Recolhido à Casa de Detenção, imprimiu as dez digitais na ficha da Delegacia Especial de Segurança Política e Social, o coração da então temida Polícia Civil do Distrito Federal. Anotou a profissão, funcionário público, e o endereço, rua da Caridade, 167, na capital alagoana. Era o dia 20 de março de 1936.

   Treze anos depois, em 16 de abril de 1949, Graciliano teve novamente de besuntar os dedos na tinta e teclar mais uma ficha. Desta feita, a iniciativa de procurar a polícia fora sua: a lei exigia atestado de ("bons") antecedentes para a emissão de passaporte. Haviam mudado a ocupação, agora escritor e jornalista, e o local de moradia, rua Belisário Távora, 480, bairro carioca de Laranjeiras. Como antes, recusou-se a declarar a religião (não tinha) e deixou em branco os espaços destinados a informações sobre apego à bebida e ao jogo. Deve ter sido uma provação.

   Desde a viagem compulsória no porão do "Manaus", passando pelo Pavilhão dos Primários da Casa de Detenção, pela Colônia Correcional de Dois Rios (na Ilha Grande), de volta à Casa de Detenção e, por fim, pela Sala da Capela de Correção, Graciliano adquirira ojeriza ao "piano". Os dez meses em cana (março de 1936 a janeiro de 37) renderiam a obra póstuma "Memórias do Cárcere", que o autor começou a escrever em 1946 e deixou inconclusa, sem o capítulo derradeiro. "No dia seguinte, depois do café, vieram buscar-nos e ainda uma vez nos catalogaram", contou no livro. "Novas fotografias, novas impressões digitais em fichas. Estupidez. Imaginariam que as nossas caras eram outras, que os nossos dedos se transformavam, deixavam no papel marcas diferentes das primeiras?"

Prontuário 11.473

   Não se sabe se foi coincidência ou se um agente da polícia política, humilhado pela eloquência da lógica de Graciliano, caiu em si e limpou os fichários da repartição, mas sobrou uma única ficha dos tempos de prisão do escritor alagoano. Além da de março de 1936, preservou-se a de abril de 1949. As duas fazem parte do prontuário 11.473, instaurado em 1936 e alimentado por espiões e burocratas até depois da morte de Graciliano Ramos. O prontuário, uma pasta feita em cartolina, amarrada por dois cordões e recheada de documentos, integra o acervo das extintas polícias políticas do antigo Distrito Federal, do extinto Estado da Guanabara e do Estado do Rio (até 1983, quando a seção dedicada à vigilância dos adversários políticos dos governos de plantão foi fechada).

   O material, mais conhecido como "o arquivo do Dops" -das iniciais de Departamento de Ordem Política e Social, o principal órgão estadual de repressão aos oposicionistas durante a ditadura militar (1964-85)-, está sob guarda do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro. Foi para lá na primeira metade dos anos 1990, quando os documentos secretos, mantidos em sigilo por décadas, passaram a ter o acesso legalmente permitido. Parte do baú de Graciliano foi exposta em 1992 na Biblioteca Nacional. Parte permanecia desconhecida. O Mais! consultou-o ao longo de três semanas.

   O prontuário 11.473, seu anexo com uma alentada coleção de recortes de jornal com artigos de autoria e a respeito de Graciliano, a pasta do fundo documental DPS com a notação D. 1.667 e relatórios avulsos em outras 25 pastas dissecam, meio século após o autor de "São Bernardo" (1934) morrer abatido pelo câncer, uma das facetas essenciais da sua trajetória: a de fidelíssimo membro do PCB (Partido Comunista Brasileiro), que ocupou seus últimos dez anos de vida num disciplinado ativismo sob monitoramento das rédeas curtas do aparelho partidário. No pós-guerra, vivia o auge do prestígio entre seus pares o tirano soviético Josef Stálin (1879-1953), tido por fiéis mundo afora, no Brasil associados ao PCB, como "guia genial dos povos".

O escritor e o militante

   A reconstituição do itinerário stalinista de Graciliano Ramos, proporcionada pela garimpagem de registros históricos no Arquivo Público do Rio de Janeiro, não surpreende pela filiação partidária, jamais ocultada, mas pela abnegação da militância de quem manteve sua literatura a salvo das imposições do PCB.

   Graciliano era, nesse aspecto, o reverso do seu correligionário Jorge Amado (1912-2001). O escritor baiano não teve pudor em fazer de sua arte instrumento de mitificação, ao biografar o dirigente comunista Luiz Carlos Prestes ("O Cavaleiro da Esperança", 1942) ou tratar da refrega política intestina da esquerda, em "Os Subterrâneos da Liberdade" (1954). O alagoano, no que parece um exercício rigoroso de separação da personalidade artística da personalidade política, à medida que elas eventualmente possam não se confundir, logrou resguardar a independência criativa.

   "Memórias do Cárcere" é um exemplo vigoroso. Ao ser detido em 1936 sob a infundada acusação -nunca formalizada- de ter conspirado no malsucedido levante comunista de novembro do ano anterior, Graciliano Ramos ainda não formava nas fileiras do PCB. A despeito de minúcias na descrição de numerosos episódios, o arquivo dos arapongas não esclarece a data da adesão. Formalmente, estabelece a filiação em 1945, ano em que o partido retornou ao soluço histórico de legalidade que se estenderia somente até 1947. Quando se põe a redigir as lembranças da cadeia, Graciliano já era comunista no mínimo desde um ano antes, quando perfilava na célula (unidade de base do partido) batizada Raimundo Rodrigues -passaria depois pela Abelardo Nogueira e a Teodoro Dreisser, conforme a espionagem policial.

Honestidade intelectual

   A narrativa típica de militantes da época cumpriria a cartilha do realismo socialista, suposta escola estética que asfixiou a arte na União Soviética na era de Stálin (1924-53) ao subordiná-la à política. Não foi o que Graciliano fez em "Memórias do Cárcere", que por pouco não recebeu o título de "Cadeia". O que na pena de outro militante poderia ter sido um amontoado de glorificações de comunistas encarcerados do primeiro governo (1930-45) de Getúlio Vargas (1882-1954), em Graciliano foi revivido com honestidade intelectual. Há no livro palavras generosas sobre aqueles que penavam nas celas, muitos submetidos às torturas mais desumanas.

   Contudo o autor não se propôs a promover personagens ao gosto da conveniência política. Alguns militares presos, co-partícipes da chamada Intentona Comunista, foram vistos com desprezo. Graciliano dispensou eufemismos para amenizar a indigência dos escritos de companheiros de infortúnio que lhe eram dados para comentar. A má vontade dos prisioneiros com os discursos em portunhol do argentino Rodolfo Ghioldi, integrante da direção da Internacional Comunista, era consequência de "patriotismo idiota". E o nacionalismo exacerbado era um dos pilares da orientação pecebista -isso o escritor não disse, nem precisava, de tão ululante. O mesmo Ghioldi, herói comunista de projeção mundial, acarinhado com palavras simpáticas, não era um super-homem. Chegou a "andar mal, silencioso, sem apetite". Até os dentes caíam. O que certas memórias seletivas apresentavam como inquebrantável aliança solidária dos internos se tratava de ambiente tenso, com altercações resolvidas a tapa. Um revolucionário trotskista, militante tão ou mais asqueroso que os fascistas, segundo a doutrina stalinista, convivia fraternalmente com Graciliano.

   "Esses desacordos me deixavam perplexo", recordou. Não é à toa que foi de perplexidade a reação de setores do PCB a "Memórias do Cárcere". Há testemunhos sobre militantes de base que escondiam os volumes da estante diante de chefes do partido. Provavelmente não foi coincidência a edição póstuma -Graciliano interrompeu a redação das memórias incômodas para muitos camaradas e não a retomou a tempo. Escapou de presenciar as reações contrariadas. Em vez de concluir o livro, escreveu "Viagem", crônicas sobre sua passagem pela União Soviética e outros países. É a maior concessão ao stalinismo em sua obra, embora tenha se acautelado, assegurando que o seu papel não seria o de divulgador. Seus romances ("Caetés", "São Bernardo", "Angústia" e "Vidas Secas") foram editados de 1933 a 1938. No período intenso de militância não escreveu mais nenhum. A ficção minguou. Mesmo assim, resguardou a liberdade artística e evitou que seus contos, crônicas e memórias se degradassem como peças de apologia do partido. É por isso que seus anos finais, recuperados no Arquivo do Rio, impressionam. A começar por alguns artigos.

Esclarecer divertindo

   "O Partido Comunista e a Criação Literária" saiu num periódico comunista em maio de 1946. Um agente do setor de informações recortou-o e colou-o numa folha-padrão da Divisão de Polícia Política e Social. Graciliano negava existir ingerência da agremiação a que pertencia na elaboração artística de seus filiados: "É necessário asseverarmos que o Partido Comunista nenhum dano causa à produção literária. (...) Tolice imaginar que lhes vão torcer idéias, impor o trabalho desta ou daquela maneira. (...) E é claro que não haveria conveniência em fabricar normas estéticas, conceber receitas para a obra de arte (...)".

   A ata de uma reunião comunista de 22 de outubro de 1945, apreendida pela arapongagem, mostra como, na realidade, o partido concebia o lugar das artes.

   O encontro juntara os secretários (coordenadores) de três células do setor cultural. Planejou-se um concurso de esquetes. "Esses trabalhos deverão ter caráter doutrinário político. Por esse meio a massa será esclarecida ou politizada divertindo-se", assinalou a ata. Sugeria-se uma comissão julgadora com quatro pessoas, incluindo Graciliano.

   O realismo socialista impregna um bilhete datilografado que foi enviado de Moscou em julho de 1952 por um provável russo de nome Boris. O signatário comemora o que afirma ter sido a boa receptividade de um "trecho do vosso romance" (capítulo de "Vidas Secas") publicado na revista "Ogoniok". Em seguida, pede: "Ficarei agradecido se nos enviardes um conto dedicado à vida atual dos trabalhadores brasileiros". A polícia se apropriou do bilhete, mas não apurou se a encomenda foi atendida.

   Meses antes, Graciliano participara do desfile de 1º de maio em Moscou, com a presença de Stálin, para quem em 1949 despachara uma mensagem de parabéns pelos 70 anos de idade.

   Na mesma viagem, foi recebido pela União dos Escritores Soviéticos, conforme boletim do Dops. A mesma entidade (organização do poder stalinista para reprimir manifestações artísticas julgadas daninhas ao Estado), bem como a congênere polonesa, enviaria saudações nos 60 anos de Graciliano, festejados numa cerimônia no Rio. Na ocasião, o secretariado do partido saudou o escritor que combatia "ao lado das forças que em nosso país lutam pela paz e a independência nacional". O "camarada Graciliano Ramos", que honrava "as melhores tradições democráticas da nossa intelectualidade", de acordo com a nota do PCB, fora uma das estrelas da "Comissão Promotora dos Festejos do Cinquentenário de Prestes", o secretário-geral do partido.

O grupo da "Diretrizes"

   O que torna o acervo do Rio ainda mais valioso é a sua composição conjugada: foi guardado tanto o que o Estado produziu sobre Graciliano como o que era da lavra dos próprios comunistas e foi apreendido por espiões ou em batidas policiais. A ficha do escritor não conta nem o local do seu nascimento em Alagoas (Quebrangulo, um paroxítono que se costuma adornar erradamente com um acento circunflexo) nem sua passagem pela Prefeitura de Palmeira dos Índios (AL).

   Diz que foi demitido da direção da Instrução Pública de Alagoas, em 1936, "em virtude de atividades subversivas". Entregue em 14 de março daquele ano às autoridades no Rio, foi libertado em 13 de janeiro de 1937. No princípio da década de 1940, sua frequência à sede da revista "Diretrizes", junto de Álvaro Moreira, Joel Silveira, José Lins do Rego e outros "conhecidos comunistas e elementos de esquerda", não passou despercebida a um agente infiltrado. O olhar da polícia política sobre Graciliano e os outros comunistas cresceu a partir de 1945, quando Getúlio Vargas, o ex-ditador convertido pelo PCB em aliado, foi apeado da Presidência. A candidatura a deputado constituinte pelo partido em Alagoas mereceu referência marginal. Em 139 registros acumulados em seu fichário, cada um correspondente a um documento, o grosso se detém na mais importante tarefa que o PCB destinou ao escritor: a animação da "campanha pela paz", iniciativa mundial conjunta, no contexto da Guerra Fria, de todos os partidos ligados ao Kremlin.

   Graciliano foi legalmente dono e editor do jornal "Partidários da Paz", jurado dos "Prêmios da Paz", fundador e conselheiro do "Movimento Brasileiro dos Partidários da Paz", diretor da "Organização Nacional de Defesa da Paz e da Cultura", participante do Congresso dos Partidários da Paz, em São Paulo, e delegado eleito para o 2º Congresso Mundial dos Partidários da Paz. Presidente da Associação Brasileira de Escritores, fez dela uma das entidades mais empenhadas no "combate pela paz". Em todas as frentes, graças ao prestígio como escritor e à missão determinada pelo PCB, ocupou lugar de destaque. Por causa da campanha, o Dops de São Paulo abriu inquérito em 1949 para investigar "signatários de documentos relacionados a atividades comunistas rotuladas de paz". Entre os alvos da perseguição, Graciliano, o também escritor Orígenes Lessa e o arquiteto Oscar Niemeyer.

Maravilhas da URSS

   Ao se descobrir ostensivamente seguido pela polícia política, enviou protesto ao Ministério da Justiça. Não diminuiu o ritmo militante, em companhia da segunda mulher, Heloísa Ramos, que viveria até 1999. Em 4 de setembro de 1952, ela proferiu a palestra "Impressões de uma Viagem à Europa". Um "observador" da polícia escreveu que havia 11 assistentes. "A conferência se transformou em conversa em família, sobre as maravilhas da União Soviética", relatou.

   Já doente e internado numa casa de saúde do Rio, Graciliano, com um cigarro entre os dedos, deu entrevista ao jornal "Imprensa Popular", órgão extra-oficial do PCB. Desmentia notícia de um livro editado em Portugal sobre mudança de suas convicções. "Quando passei por Lisboa eu ia a caminho de Moscou, da União Soviética, realizar um velho sonho. Tudo o que vi reforçou a minha confiança no socialismo, na causa da paz", disse. No mesmo dia em que a entrevista foi publicada, 5 de março de 1953, Stálin morreu. Graciliano morreria duas semanas depois, dia 20, aos 60 anos. Em 1956, o congresso do PC soviético denunciaria formalmente ao mundo os crimes de Stálin, que a rigor já eram sabidos por quem queria saber.

   Cinquenta anos após o desaparecimento de um dos maiores talentos da literatura brasileira, o mestre do texto enxuto como seu próprio corpo, sobraram ainda outras preciosidades da sua história. Como a mensagem enviada por rádio de Maceió e recebida no Rio em 12 de janeiro de 1937, na qual o secretário do Interior de Alagoas informou não ver "inconveniente" na "liberdade [de" Graciliano Ramos". Restaram três fotografias: uma do escritor preso; uma dele taciturno, dedicada a Ruy Santos, fotógrafo oficial do PCB na década de 1940 e provável autor da imagem; e uma terceira, sem crédito, do alagoano escrevendo à mão. No balanço geral, o inventário político de quem, ao refletir sobre a liberdade, escreveu: "Começamos oprimidos pela sintaxe e acabamos às voltas com a Delegacia de Ordem Política e Social, mas, nos estreitos limites a que nos coagem a gramática e a lei, ainda nos podemos mexer". © MAIS! Folha de S. Paulo)


O crítico Benedito Nunes fala da experiência subjetiva na obra de Graciliano e o aproxima de Guimarães Rosa e Camus

NO LIMITE DA TRANSCENDÊNCIA

da Redação

   Embora nunca tenha dedicado um estudo específico à obra de Graciliano Ramos, como o fez por exemplo com Clarice Lispector, o crítico Benedito Nunes, 74, vem há décadas cultivando uma reflexão relativamente secreta sobre o autor de "Infância". Suas idéias devem em breve se transformar em livro, cujo foco central seria o aspecto autobiográfico e a "linguagem em estado nascente", que, segundo Nunes, são a substância da literatura do escritor alagoano.

   "Graciliano é um escritor atualíssimo, porque está muito afinado com a tônica do pensamento contemporâneo, que não vê saídas e experimenta o vivido cada vez mais como absurdo", diz Benedito Nunes nesta entrevista feita por telefone, de sua casa em Belém (PA). (MAURÍCIO SANTANA DIAS)

O sr. disse que considera "Infância" talvez a melhor obra de Graciliano. Gostaria de saber por quê.

Esse livro tem uma saudável mistura de ficção com rememoração, em que é difícil distinguir uma da outra. A aliança que se forma entre esses dois registros é excelente. Quando você lê "Memórias do Cárcere", já sabe de antemão que se trata de um livro memorialístico. Em "Infância" as coisas se fundem tão fortemente que se trata de uma reinvenção da memória. Acho isso estupendo.

Em que esse livro se distingue do outros, em termos de linguagem?
Essa é uma questão fundamental em Graciliano. Ele mesmo, comentando certos livros seus, como "Angústia", achava-os ruins por serem "mal escritos". A desconfiança com a própria obra fez com que ele se aprofundasse cada vez mais na depuração da linguagem, sobretudo sintática. Esse franciscanismo voluntário da escrita, quando se encontra com a memória, se expande para o mundo.
Se a gente fosse comparar Graciliano com o outro grande autor do século 20, Guimarães Rosa, poderíamos dizer que este está muito mais para o mito, e aquele, para o mundo secularizado.

Uma literatura sem transcendência?
Talvez uma transcendência por outros caminhos, pelo humano mesmo. Como no caso de Fabiano e da cachorra Baleia [personagens de "Vidas Secas"", um dos poucos exemplos da literatura -junto com Tolstói- que põem o animal em primeiro plano. O olhar de Baleia é compassivo, cheio de humanidade. Aí há uma visão transcendente, mítica. Pouquíssimos escritores conseguiram alcançar isso. Enfim, Graciliano é um daqueles raríssimos autores que ficam no limite da transcendência, sem chegar a entrar no sobrenatural. Eu diria que essa é a dimensão filosófica de sua obra.

Como o sr. vê o pessimismo na obra dele?
Acho que o pessimismo se manifesta mais claramente em "São Bernardo", naquele personagem terrível que é Paulo Honório, e em Madalena, que termina se matando. O pessimismo aí se expressa como niilismo, experiência do nada.

Em "Memórias do Cárcere" o narrador chega muitas vezes à abjeção completa, que lembra o "homem do subsolo" de Dostoiévski.
É o "homem do subterrâneo" e é também o "Sísifo" de Camus, o homem do absurdo. Nesse sentido Graciliano é um escritor atualíssimo, porque está muito afinado com a tônica do pensamento contemporâneo, que não vê saídas e experimenta o vivido cada vez mais como absurdo. Acho que Camus, Sartre, Heidegger continuam sendo nossos "maîtres à penser". Hoje é difícil encontrar pensadores desse porte -ou talvez estejam aparecendo e a gente não os conheça ainda.

Outro aspecto forte em Graciliano é que, apesar do pessimismo, ele de alguma forma sempre acenava com a possibilidade de uma utopia social, embora a negasse todo o tempo. Como o sr. vê esse duplo movimento?
Essa é a marca do escritor autêntico, admirável. Mesmo filiado ao Partido Comunista, ele nunca aceitou as regras do realismo socialista nem as imposições do zdanovismo [doutrina de Andrei Zdanov, ministro da Cultura da URSS que pregava o realismo socialista". O escritor autêntico nunca pode ser um ideólogo, a ideologia morre na pena dele. Quando escreve, ele faz um aprofundamento de si mesmo, numa experiência que está sempre aquém de ideologias. Isso se vê bem em todos os grandes, Graciliano, Guimarães Rosa, Clarice Lispector.

A chamada "geração de 30", ou do "romance nordestino", empacotou muitos escritores sob o rótulo de "regionalistas". Em que medida se poderia falar de Graciliano como autor regionalista?
Há uma coisa muito marcante na literatura brasileira que não vemos nas outras: o uso de geração como critério literário (os homens de 30, de 45 etc.). Assim o conceito de geração serve não só de bitola periodológica, mas também para definir um aspecto da visão do mundo, da forma romanesca, de modo que se colocam no mesmo saco o José Lins do Rego, a Rachel de Queirós, o Graciliano Ramos, Jorge Amado, Amando Fontes e outros. Mas mesmo José Lins, que é o mais regionalista de todos esses, tem suas exceções -"Fogo Morto", por exemplo, é um grande romance. Graciliano foi mais regionalista -ou provincianista- naquele primeiro romance, "Caetés".
No entanto é preciso distinguir entre região e regionalismo. Há certos romances que são profundamente ligados ao solo e à terra e nem por isso são regionalistas. É o caso de "Vidas Secas", em que a região está lá, mas não há regionalismo.

O sr. já disse certa vez que Graciliano e João Cabral deram o golpe mais duro no regionalismo.
É verdade. Aliás, o João Cabral percebeu essa afinidade e a expressou naquele belo poema ao Graciliano. Os dois têm essa linguagem seca, espinhosa, que fere. São ambos ferinos.

O que mudou na linguagem literária desde Graciliano? O sr. acha que a "tendência Graciliano", de escassez, predominou sobre a "tendência Guimarães Rosa", de excesso? Essas duas linhas de força tiveram continuidade?
Eles ainda são certamente dois modelos fortes na nossa literatura, que se alternam e entremesclam. Em primeiro lugar, ambos são inimitáveis. Quem tentou imitar um ou outro caiu na caricatura ou no ridículo. Embora os estilos sejam muito diferentes, um mais para fora, outro mais para dentro, os dois são autênticas forças-linguagem. O Guimarães é excepcional pelo trançado do dentro e do fora, pela dimensão mítica etc. O Graciliano também tem isso, mas de maneira muito contida, sem o arroubo de tomar o idioma nas mãos e revirá-lo do avesso. A obsessão de Graciliano era pelo corte. Cortar, cortar, cortar. Essa economia verbal, o desejo de extirpar a "matéria gordurosa", como ele mesmo dizia, era a meu ver também uma precaução que ele tinha diante do naturalismo e do romantismo das gerações anteriores, que carregavam em descrições e adjetivos.

Por outro lado ele adorava Eça de Queirós, que era de um excesso verbal impressionante.
Mas o Eça também tinha aquele aspecto ferino, satírico, que encantava o Graciliano. O Eça era tão satírico que até hoje os portugueses não o engolem. O retrato que ele fez de Portugal é uma coisa arrasadora, com as suas figuras acacianas. Por outro lado o Graciliano tem momentos de grande compunção, de pausas contemplativas. Nisso "Vidas Secas" também é uma obra extraordinária: na contenção da linguagem, sem mudanças estruturais, com a mesma sintaxe da língua portuguesa comum, porém depurada, o livro chega a provocar no leitor uma empatia e uma introjeção magníficas. É o que Rosa também faz, especialmente naqueles contos do "Corpo de Baile", sobretudo no primeiro, "Campos Gerais". Aí se poderia dizer que os dois trabalham com a linguagem em estado nascente.

E Graciliano atinge esse efeito em "Infância"?
Em "Infância" também há isso, na inter-relação entre o ficcional e o não-ficcional que se transforma numa escrita poética. Aí também você vê a linguagem em estado nascente. Ainda bem que nós temos esses escritores, o que é um certo consolo diante da atual vulgaridade. Mas a verdade é que os bons escritores sempre foram poucos, de contar nos dedos.

(© MAIS! Folha de S. Paulo)


O CRÍTICO E ESCRITOR CRIA UM DIÁRIO FICCIONAL INSPIRADO NOS ÚLTIMOS DIAS DE VIDA DO AUTOR DE "MEMÓRIAS DO CÁRCERE"

TODAS AS COISAS À SUA VEZ [Abecedário]

Transfixão de Silviano Santiago

   Não há escuridão que alimente. Não há calor (humano?) que aqueça. Não há lágrima que esmoreça. Há a doença. Mortal. Haver (verbo impessoal e inativo, segundo a gramática).

   Deduzo, logo não concluo.

   Tão doente quanto flores mal cheirosas.

   Na hora em que podia prestar socorro à vida, a beleza feminina não tem argumentos. Já serviu -não serve mais- de recurso retórico para expressar o desejo carnal. Não vira bóia, que se atira ao náufrago. Hoje é foice imantada pelo diabo e afiada pelo espectro da morte. Deixo-me seduzir pelo fio da sua navalha, como quem solta um grito. De redenção.

   A mulher se esconde na sombra. Por que evita a luz? Por que não se desnuda? Por que nunca se dá a conhecer? Por que é segredo? Por que é verdade? A mulher é Maia. Sua arma mortífera -o pudor. Machado de Assis desvendou o mistério -o segredo da mulher. Só que não passou a fórmula a nós, homens. Matou (simbolicamente) a esposa, o amante e o filho. Todos viram testemunha de acusação. Como todo pai d'égua, Machado age em causa própria. Não busca a mulher, quer o harém. Atenção! Homem de harém nada tem a ver com homem de bordel. Para este a nudez da mulher é premissa do gozo. Nesse caso, a nudez feminina tem preço. Custa muito barato. Baratíssimo. Homem de harém é descendente de Don Juan. O de Molière, é claro. "... tudo pelo amor da humanidade".

   E falam de monogamia. Coisa de padre e puto enrustido. S abe, aqueles ambulantes que saem empurrando a carrocinha pela cidade, a afiar facas. Gostava do assovio estridente, que anunciava a sua presença, das chispas de fogo fabricadas pelo metal contra metal, dos olhos infantis que admiravam o relampejar, das cozinheiras e arrumadeiras que, da janela, piscavam para o portuga, padroeiro dos degoladores de galinha. O afiador de facas, o pipoqueiro, o sorveteiro, o baleeiro, o leiteiro... Profissões populares que se vão com a rapidez que trouxe o automóvel e traz o avião, esses aparelhos assassinos. Século assassino. Fui reler o poema de Carlos: "Que século, meu Deus! Diziam os ratos/ E começavam a roer o edifício".

   O pavio curto da dinamite revolucionária (...) faltou um palito de fósforo à minha geração. Somos delicados os marxistas ocidentais.

   Onde se lê: um palito de fósforo, leia-se: tutano. Onde se lê: delicados, leia-se: covardes.

   Seringaita é a seringa que injeta parlapatices na minha imaginação.

   A cachaça incita as palavras do dicionário, que se tornam velocistas de maratona. Na folha de papel em branco, dão passadas rápidas, medidas e coesas. Uma frase, mais uma, e já são três. Economizam o entusiasmo para a arrancada final. Alcançada a vitória do parágrafo ou do capítulo, desce a sensação de repouso.

   Já a morfina embaralha os passos da escrita. Entontece-os, literalmente. Entorpece a imaginação. Parece que entro num museu de bricabraque, onde a cada objeto e ao conjunto deles falta sentido. Busco a palavra e não comparece. Aparece a correspondente em uma das duas línguas estrangeiras que domino. Busco o final da frase e já não me ocorrem as palavras iniciais.

   Morfina não é para artista-criador. É para artista-intérprete. Aquele que já conhece de cor e salteado a partitura. Decididamente, não nasci para ser concertista no piano das letras.

   Tenho um importante livro para terminar -minhas memórias na cadeia. Deixo-o incompleto. Tenho um outro livro para terminar -de viagens. Tenho certeza de que o estou abandonando neste capítulo 34, a que ora ponho o ponto final. Dois livros incompletos e póstumos -seria irônico, se não fosse também grotesco. E o cigarro? Continuo a comer o pão que o diabo amassou.

   Cada coisa à sua vez. Não aguento mais a implicância. Todas as coisas à sua vez.

   As palavras chegam à beira do precipício e saltam desesperadas. Recolho os cacos. Se ao menos eu tivesse a coragem de roubar-lhes algumas vertigens. Não tenho. Nas minhas mãos a sintaxe virou cola-tudo.

   Não sei se distribuí, se contribuí, se restituí. Nem sei se estou resistindo.

   Daqui a 50 anos, minha prosa será execrada pela falta de humor. Restam-me dois consolos. Canarinho canta porque não sabe rir. Palhaço ri porque não sabe falar.

   Dou-me de presente todas as idéias. Só não me dou de presente a idéia de infinito. Não me acostumaram (não me acostumei) a justificar qualquer hierarquia, a pensar a desigualdade. A relação do homem com o infinito não se passa no campo do saber. O infinito é um desejo que se nutre da própria fome. Ele cresce, mais se sacia. Eu, um metafísico? De jeito nenhum. Encantam-me os paradoxos. Ou melhor: sou vítima dos paradoxos. Se levanto o punhal para assassiná-los, zombam de mim. Quanto mais zombam, mais os admiro pela inconsistência sedutora. Gosto de corrigir. Ossos do ofício de revisor no jornal.

   Dizem-me um escritor difícil. Analfabetos!

   O silêncio faz barulho. A música ambiente ainda não terminou. O saxofonista é o tuberculoso que se vê no espelho? É o vizinho do apartamento ao lado que desafina no violino? Ou é o cantor das multidões -Francisco Alves-, que me puxa o pé lá do cemitério onde acaba de ser enterrado?

   Mais aguda é a dor, mais agudo é o sentido da vida. Certo? Falso. Mais aguda é a dor, mais inevitável é o precipício. Tibum!

   Corrijo-me. Aiiiii! tão intensa a dor. Oooooh! tão intenso o alívio.

   Não sei por que busco o dicionário "Littré" na estante. Copio do nosso "Aurélio" a definição do vocábulo que buscava. "Intermitência: Interrupção momentânea, intervalo." Insatisfeito com o resultado, volto ao "Littré". "Intermittent, -e. Qui discontinue et reprend par intervalles. Fièvre intermittente, qui cesse et qui reprend à des intervalles réglés. Pouls intermittent, pouls dont les battements cessent par des intervalles inégaux" (1). Fiz uma boa compra na passagem por Paris.

   Camuflo o tatibitate durante a conversa, como menino que comete má ação. À noite, escrevo pouco. Meço milímetros. Remendo menos. Estou me exercitando no avaro e lucrativo estilo milimétrico. E, no entanto, tudo é iminente. Reclama a pressa. E adianta correr? Uma língua de consoantes grunhe, espantando o vernáculo. Medo de perder as vogais.

   Mentira: medo de perder a palavra.

   O tempo presente é um terrível hiato. As macieiras cobriam-se de flores. Lá no horizonte vicejará a terra desconhecida e civilizada.

   A solidariedade não é suficiente. De que servem irmãos e irmãs na dor? Busco alguém que seja superior ao comum dos mortais. Só ele poderá-. Procurá-lo-ei onde estiver. Aquém e além-mar.

   Resignado ao ônibus e ao bonde, será que viajei alguma vez pelo prazer de viajar? A viagem (a Buenos Aires) está sendo locomoção do corpo pelos meandros do sofrimento, que aumenta e quer explodir. Minha pele é a porta que demarca o prazo do suportável. Meu reino por uma janela!

   Meu reino por uma seringa hipodérmica! Assinado, o Caveirinha.

   Para ser suicida, é preciso primeiro ter sido otimista. Não é o meu caso. O movimento do meu pensamento sempre foi ascendente. Sonda o pior em busca do melhor, para poder elevar o subjugado. Tenho horror ao agreste das profundezas*. Sinto-me melhor na pele de astrônomo do que de mergulhador. Ah, esse ranço de cristianismo, que me achata no equador e dilata nos pólos.
* Quis construir um mundo ficcional desprovido de profundidade. À merda com a psicologia e a psicanálise!

   Posso me substituir por qualquer um que me visita. Ninguém que me visita pode me substituir. Obsessão de réptil, em especial daquele chamado camaleão.

   A glória. A varejo e no atacado. Aceitar o elogio dos amigos de cambulhada com o dos inimigos? À beira da cama, não. Pelas ondas hertzianas, punge o coração. À beira da cova? (...) se o futuro nem a Deus pertence, muito menos pertencerá a mim.

   Minha filha não entende. Este robe de chambre cor de vinho, que me recobre, é a lembrança que guardo da vida saudável. Meu robe, minha memória. Deixo-me ser envolvido por ele como uma serpente que não quer mudar de casca. E mudou, contra a sua vontade. O robe vinho esconde das visitas essa nova casca amarelada que se cola à pele da serpente alagoana.

   Sei que minha filha guardará o robe, como guarda tudo o que me pertence. Depois da minha morte, imaginará que estarei dentro do robe, como o meu corpo está no íntimo de todos os meus escritos? que estarei dependurado no cabide do armário? Será que algum dia vai querer cheirá-lo? Minha memória, sua posse.

   Ouço outra voz -adivinhem de quem?: "Para que deixar o robe aí dependurado no armário? Está lavado e passado, novinho em folha, pode ir para uma instituição de caridade". Meu patrimônio, seu legado.

   Teriam a coragem de me enterrar vestido nesse robe cor de vinho?

   Uma frase incompleta me vem ao espírito com insistência. Ninguém pode saber o que é a sensibilidade da pele até-

   Quatro horas e vinte e três minutos da madrugada. Que espécie de heroísmo é esse?

   Viro para o lençol e lhe digo: "Tu quoque, Brute...". Para a colcha, para o travesseiro e para tudo o mais que me toca e repito: "Tu quoque, Brute...". Por onde andará o tribuno Marco Antônio? Não me faltarão oradores à beira do túmulo.

   Afagar é uma coisa. Conhecer é outra bem diferente.

   Será que não desconfiam que eu desconfio? Falta-lhes o desconfiômetro que me sobra.

   Tanto lá como cá. Os médicos recobrem a mentira com a capa da piedade. São todos impostores e católicos convictos. Vou mandar fumigar o formigueiro desses jesuítas com formicida Nietzsche. Palavras do anticristo de plantão.

   Tantos anos levei para me descristianizar, e agora vivo da caridade que o bom sentimento alheio esbanja. Devo continuar mal-agradecido?

   Todo Rimbaud tem a irmã ao pé do leito no hospital. Tem seu Paul Claudel de plantão na hora da morte. O defunto não controla o amplificador da solidariedade.

   Aviso aos redatores de obituário. Se tivesse de escrever um resumo de toda a minha vida, teria vergonha.

   Aceito sugestões. Uma lauda no máximo. Em eunuco e moribundo os olhos compensam as perdas.

   Leio em Karl Marx: "Ontem penhorei um casaco que remontava a meus dias de Liverpool, a fim de comprar papel para escrever". Em 27 de fevereiro de 1850, em pleno inverno londrino, escreve a Engels: "Há uma semana cheguei ao agradável ponto no qual não posso sair por causa dos casacos que tive que penhorar". Sem o casaco de inverno não podia ir ao Museu Britânico, onde fazia as leituras indispensáveis para a obra-prima que estava escrevendo.

   Estou sendo simplório? Estou (confesso). Por que não me fazem coro? Neste quatro por seis, chamado sala de visitas, estamos sendo simplórios. Como pensa -se é que pensa -um ditador deposto? Como age -se é que age- um presidente cassado? Como pensa e age um corpo possuído pela morte? Tenho horror dos sentimentos que me alucinam. Posso comunicá-los. (Em troca recebo palavras sentimentais. Saio no prejuízo.) Não posso compartilhá-los. (Mais aguda é a presença da solidão. O dividendo da doença fatal.) Sem portas. Sem janelas. Vou me recolher ao quarto de dormir. Lá estarei literalmente sozinho. De que valem essas anotações?

   A autenticidade. Ela me espreita. Lá do fundo do desfiladeiro, onde já estão depositados os cacos das palavras. Diálogo canhestro entre a autenticidade e as palavras. Evito-o.

   O que é, o que é? Somos dois (bem diferentes), que formam um (os dois bem juntinhos), que acabam como três (um terceiro que se desgarra e tem vida própria). Resposta 1: a paternidade. Estou no filho, ele estará em mim? Resposta 2: a imortalidade. Deixo os meus livros. A quem?

Poema
   Não me interessam mais as coisas que não me interessam.

   Na sala de visitas. Antes de enunciar a frase, ele calça a boca com luva. Desce a cortina dos olhos, cruza os dedos. Depois de proferir a frase, descruza-os.

   Não conversa comigo, está rezando.

   Sem Deus, será que continuaria a me visitar e a dizer o que diz? Não ama o semelhante, ama a Deus sobre todas as coisas.

   Na certa também calça os olhos com luva antes de ler as safadezas do Velho Testamento.

   Minha rosa-dos-ventos. Cansaço ao norte. Preguiça ao sul. Esforço a leste. Desinteresse a oeste.

   Anticigarra. Amealho forças para mais um verão carioca, como formigas amealham provisões para o inverno. Formigas são más conselheiras: Eh bien, chantez maintenant!

   O corpo -diz o Bhagavad-Gita-, "chaga de nove aberturas". A cada buraco, maior a humilhação.

   Peço a palavra. Declaro solenemente que moribundo caga e mija. Por favor, retirem-se da sala de visitas. Ou eu me retiro.

   Aconteceu comigo o que nunca deveria ter acontecido em vida. Virei um velho caduco.

   Sei que é dezembro, não sei é se tenho cara de presépio. Hoje vieram visitar-me os três reis magos da literatura brasileira. Pela tristeza no olhar, suavidade na voz e delicadeza na escolha das palavras, exercitavam um ato de contrição diante da manjedoura. À saída, dei-lhes a bênção.

   Paródia dos pampas argentinos. Mi casa no es tu casa.

   Tenho as mãos de assassino e o corpo de ditador. Tenho os pés de fanático e a alma de torturador. Sai da frente! Amanheci hoje puro ódio.

   Alguém -que seja Deus ou não- tenha piedade de mim! Não consigo ser mais forte do que a minha incredulidade.

   Descoberta. Ele ataca até a imaginação. O câncer na palavra.

   Ansiedade, teu nome é morte.

   Na cama. Cinco membros inúteis. Os dois superiores, os dois inferiores. Também o do centro, chamado viril. Este gostava de rodopiar como pião. Gostava.

   Releio minhas anotações. Recuso usar mais uma palavra que termine em -ade. Principalmente aquela.

   Entro como saí. Envelopado. Tudo é uma questão de bolsa: a d'água e a de madeira. Bem-vinda, ó morte!

   "Feito pó, feito pólen, feito fibra, Feito pedra, feito o que é morto e vibra."
Vinícius de Moraes.

Nota


1.Intermitente. Que descontinua e volta a intervalos. Febre wintermitente. Que pára e que volta a intervalos regulares. Pulso intermitente. Pulso cujas batidas param em intervalos desiguais.

   Crítico, poeta e romancista, Silviano Santiago publicou no início dos anos 80 o livro "Em Liberdade", uma abordagem ficcional da vida e obra de Graciliano Ramos. "Imaginei um diário íntimo (falso, é claro), que ele teria escrito ao sair da cadeia em 1937. A melhor etiqueta para "Em Liberdade" seria a de prosa-limite. É a biografia de um momento crucial da vida de Graciliano, e não o é", disse Silviano a respeito do livro, ganhador do prêmio Jabuti em 1982. Nesta edição do Mais!, o crítico e romancista volta ao tema e escreve o diário -falso, é claro- dos últimos dias da vida do escritor alagoano. Nascido em Formiga (MG), em 1936, Silviano Santiago tem uma obra numerosa, em que se destacam "Nas Malhas da Letra", "Uma Literatura nos Trópicos", "Vale Quanto Pesa", "Stella Manhattan" e "Cheiro Forte".

(© MAIS! Folha de S. Paulo)


O COTIDIANO MENOR DE ANGÚSTIA

por Ferreira Gullar

   Li o romance "Angústia", de Graciliano Ramos, aos 20 anos e quando ainda vivia em São Luís. Estava descobrindo a literatura e buscava conhecer tudo o que me diziam ser importante. Já havia lido alguns romances de Machado de Assis e de Aluísio Azevedo, meu conterrâneo. A leitura de "Angústia" causou-me um impacto. Hoje, 50 anos depois, tento entender as razões daquele impacto e percebo que a primeira delas foi o estilo, áspero e rude, do escritor. A cada frase, o narrador-protagonista ia se revelando uma personalidade ácida, que desconsiderava os ditos valores sociais, os quais não passavam, para ele, de mera hipocrisia. Hipócritas eram todos, inclusive ele mesmo, que ganhava a vida alugando sua pena para redigir artigos venais. Um pobre diabo, que morava mal, numa casa que ele dividia com ratazanas e uma empregada surda. Mas eis que vem morar na casa ao lado um casal de velhos com uma filha muito jovem e tentadora. Os risinhos dela, suas coxas, seus cabelos louros, suas frases provocativas viraram a cabeça daquele homem casmurro e lhe acenderam uma esperança de vida. Esperança que durou pouco, é verdade, porque a jovem sedutora, mais interessada em meias de seda e sapatos da moda, logo o trocaria por outro, com mais grana e menos caráter.

Banhos de Marina

   Reli o romance, agora. A força do estilo se mantém e a narrativa na primeira pessoa, entre sarcasmos e resmungos, nos arrasta inapelavelmente até o desfecho brutal.

   Verifico então: uma das coisas que mais me fascinaram na primeira leitura, e se confirmou agora, foi a presença viva, no romance, do cotidiano menor daquelas pessoas anônimas, vivendo em fundos de quintal, a lavar e a estender roupas, a encher dornas de vinho, como a empregada que escondia moedas na terra do quintal. E os banhos de Marina, a mocinha sedutora, que ele acompanhava de seu banheiro pegado ao dela, ouvindo-a cantarolar, ensaboar-se e lavar-se com a água que escorria cantando por seu corpo e sumia no ralo. É nestes e em outros detalhes, nestas e em outras particularidades, que reside o caráter brasileiro, permanente, deste romance que se incorporou de vez à nossa literatura.

   Não menos irresistível é a parte do livro que narra a frustração do personagem e sua revolta diante da traição que sofrera. A partir daí, suas lucubrações se misturam a alusões aos ratos que infestam a casa e que se infiltram por toda parte, no guarda-comida, no quarto de dormir, na estante de livros ("eles mijam na literatura"), e tudo roem, antes de morrerem em meio aos papéis, às roupas, aos mantimentos. A presença desses animais repugnantes, que lhe fogem ao controle, parece penetrar a própria alma do personagem, misturar-se ao seu ódio e à sua obsessão homicida.

   A releitura serviu para convencer-me de que o romance nada perdeu com o passar dos anos. O estilo, o modo de narrar, de construir os personagens e fazer caminhar a ação dramática (que esse é o caso, em "Angústia"), são plenamente atuais e sem dúvida mais eficazes e intensos que o de muitos romances de agora.

   E talvez essa atualidade resida no fato de que Graciliano, na sua aparente rudeza, comovia-se com o desamparo de seus personagens, nos quais identificava o seu próprio desamparo e de todo ser humano, "este bicho da terra tão pequeno".

Ferreira Gullar é poeta e ensaísta, autor de, entre outros, "Toda Poesia" (ed. José Olympio) e "Argumentação contra a Morte da Arte" (ed. Revan).

(© MAIS! Folha de S. Paulo)


A LIBIDO DA ESCRITA NAS MEMÓRIAS DO CÁRCERE

por Luiz Costa Lima

   O fracasso do levante comunista de fins de 1935, com as sublevações em Natal, no Recife e no Rio, justificara a repressão movida por um governo Vargas então inclinado aos fascistas. Em março de 1936, o diretor da Imprensa Pública de Alagoas é demitido e, logo depois, preso. Inicia-se um período doloroso, incerto e decisivo na vida, até então mediocremente normal, de Graciliano Ramos. Que envolvimento teria ele com os perseguidos? Não era membro do Partido Comunista (a que só se filiaria em 1945); embora admirasse Prestes, dele pouco sabia, e sua conduta na cadeia o mostrava reticente quanto às decisões dos coletivos ou suspeitoso da maneira como eram elas alcançadas e logo desfeitas.

   Talvez o motivo de sua prisão tenham sido, como diria seu futuro advogado Sobral Pinto, seus romances; por certo, a denúncia, nestes momentos particularmente bem-vinda, de alguém que se julgara desfavorecido. Apanhado em casa, é levado, ainda com certa cerimônia, em carro oficial, para a estação de trem que o conduzirá a Recife. O encontro com sua mulher já diz muito daquele ser aparentemente e tão-só secarrão. Pois é sob palavras ásperas que se oculta o afeto de Graciliano.

Complicações

   No Recife, a situação começa a se complicar. Em vez de curta, como a princípio supusera, a cadeia se prolonga e culmina no embarque em um velho navio, que tem o Rio por destino. Misturado a centenas de outros -participantes, já torturados, da insurreição de Natal, inocentes, vagabundos, ladrões, até um fanático religioso, delatores e acusados de delação-, ele é lançado na "furna medonha", o porão do "Manaus". "Rostos esmaecidos", "prostrações dolorosas", ali, Graciliano, com 43 anos, desajeitado, autocrítico, saído havia pouco de uma operação não de todo cicatrizada, conhece "o máximo requinte de perversidade". Em certo momento, crê que a loucura dele se apodera.

   Vence-a, contudo. Mais forte que sua denúncia da estupidez do "fascismo tupiniquim", só a acidez do juízo que tem de si próprio: "Eu vivera numa sombra razoável, quase anônimo: dois livros de fôlego curto haviam despertado fraco interesse e alguma condescendência desdenhosa. Era um rabiscador provinciano detestado na província, ignorado na metrópole". Seu juízo sobre o valor literário de seu terceiro livro, "Angústia", publicado enquanto esteve preso, não é diverso; muito menos sobre sua postura política: "Achava-me fora das classes, num grupo vacilante e sem caráter (...). Repelido em cima e em baixo". Aprende contudo a se virar; com a ajuda dos que por ele interferem e um tanto de sorte, sobrevive. Sua principal ligação com a vida era a escrita. A escrita é sua libido -aquela que o anafrodisíaco a ser misturado ao café, no "pavilhão dos primários", não inibirá. Tão logo começa a terrível travessia, se põe a tomar notas, na expectativa de um dia formular o que presenciava. A prisão lhe abria uma experiência inaudita -nenhum de seus romances conterá algo semelhante. Duas serão suas consequências: a incomparável ampliação da variedade de tipos que encontra na espécie humana, e a sensível diminuição de seu tempo de vida -morrerá aos 60 anos.

Inesperada solidariedade

   Na furna do porão, sob o calor semelhante ao de uma caldeira, sem escolha ante alimentos contra os quais sua garganta se estreita, pisando em um chão imundo pelo mijo que se espalha com os balanços do barco, Graciliano mantém, mesmo tendo de se desfazer de suas notas, a lucidez com que recordará o que viveu. São situações não só macabras, mas também de inesperada solidariedade humana. Esta já o impressionara no quartel de Recife, onde um capitão, seu carcereiro, sabendo o que o espera, lhe oferece uma parte de sua poupança, como empréstimo a ser resgatado algum dia.

   Comparar o que ali se passa com o "Inferno" dantesco só não será repugnante se acrescentarmos que os castigos não se respaldam por nenhuma espécie de justiça, por mesquinha que fosse. Ainda que trôpego e há vários dias sem alimento, ao chegar ao Rio o preso é transferido para o "pavilhão dos primários". O leitor que, 30 anos depois, tenha tido experiência comparável, poderá se dizer que a repressão ainda tinha muito a aprender. De fato, o "pavilhão", comparado à travessia no "Manaus", pareceria uma colônia de férias. Mas não era bem assim. Os percevejos e os delatores substituíam sem desdouro o esmero da técnica repressiva. De qualquer modo, seria inútil tentar descobrir uma lógica entre o primeiro transporte, o estágio entre os primários, onde estão figuras como Olga Prestes, o argentino Rodolfo Ghioldi, Agildo Barata e a experiência horripilante da "colônia correcional". Nada de tão pavoroso se escreveu entre nós.

   A polícia de Felinto Müller podia não ter requintes, mas sabia explorar sua bestialidade. A maneira mais incisiva de defini-la está nas palavras do guarda que recebe a leva em que Graciliano é trazido: "Aqui não há direito. Escutem. Quem foi grande esqueça-se disto. Aqui não há grandes. Tudo igual. Os que têm protetores ficam lá fora. Atenção. Vocês não vêm corrigir-se, estão ouvindo? Não vêm corrigir-se: vêm morrer". Mas, embora outra vez não consiga tragar o alimento distribuído, as pernas entorpeçam e o talho da operação doa no baixo ventre, Graciliano sobrevive. Outra vez, tomara notas e, ao sair, terá de desfazer-se delas. Mas a perda não importará ante a força do que presencia e fixa. Força até do que pareceria insignificante: "(...) A violência organizada era bem precária: os agentes dela se bandeavam, nos momentos difíceis vinham cochichar-nos informações e conselhos".

Dignos ou falastrões

   O que muito menos impede que recorde a crueldade absurda, a pusilanimidade bestial, bem como a inesperada grandeza de sentenciados e ladrões comuns. Em sua frase seca, Graciliano tem na escrita o meio de formular a variedade do homem. Algozes, vagabundos ou pessoas que perderam o que tinham em defesa de suas convicções podem ser de igual dignos ou falastrões.

   Quanto tempo teria Graciliano passado na "colônia correcional"? Pelo que a leitura deixa presumir, pouco mais de uma quinzena. É pelo esforço de sua mulher, Heloísa, e pelo empenho do amigo José Lins do Rego que consegue outra transferência. A "casa da correção", em que completará 11 meses de prisão sem julgamento, é comparável ao "pavilhão dos primários". Em troca, é aí que presenciará um dos fatos mais ignóbeis do governo Vargas: malgrado o protesto indignado dos presos, a entrega de Olga Prestes e Elisa Berger aos agentes da Gestapo [a polícia secreta nazista".

   Pouco depois, Sobral Pinto, que já defendera Olga e Elisa, o tirará da prisão. Graciliano, conforme declara no início da obra, redigirá as "Memórias do Cárcere" dez anos depois de ser libertado.
Mas não chega a começar seu último capítulo. A morte aproveitara para afiar sua foice. Só não tivera tempo de evitar seu testemunho. Ou será que ela própria, a exemplo dos guardas, fingia não se dar conta do que rabiscava o escritor?

Luiz Costa Lima é ensaísta, crítico e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ). É autor de "Intervenções" (Edusp) e "Mímesis - Desafio ao Pensamento" (ed. Civilização Brasileira), entre outros. Escreve regularmente na seção "Brasil 503 d.C.".

(© MAIS! Folha de S. Paulo)


O HERÓI POR CONTRASTE DE CAETÉS

por Luis Bueno

   A história da publicação de "Caetés", romance de estréia de Graciliano Ramos, é uma passagem curiosa da história da literatura brasileira. Em 1929 o escritor alagoano se tornara conhecido nos meios literários do Rio de Janeiro pela divulgação dos famosos relatórios que escreveu dando contas de sua atuação como prefeito de Palmeira dos Índios. Em 1931 o poeta Augusto Frederico Schmidt fundou uma editora e, já na contracapa de seu primeiro lançamento -"Oscarina", de Marques Rebelo-, anunciava a publicação de "Os Caetés", romance de Graciliano Ramos. No entanto o público teve que esperar até a segunda quinzena de dezembro de 1933 para poder lê-lo.

   Alguns acusaram Schmidt, que estava em terreno político oposto ao de Graciliano, de retardar sua publicação. Outros dizem que, na desorganização que era a Schmidt Editora, os originais ficaram desaparecidos por mais de um ano. Seja qual tenha sido a causa do atraso na publicação, no final de 1933, depois dos lançamentos de "Cacau", de Jorge Amado, e "Os Corumbas", de Amando Fontes, o público e a crítica esperavam outra coisa de um homem de esquerda como Graciliano Ramos. O crítico pernambucano Aderbal Jurema sintetizou bem a decepção causada por "Caetés", considerando-o "um livro somente humano", "completamente alheio à desigualdade de classes na sociedade e fora da órbita da literatura revolucionária do momento".

Apurada técnica narrativa

   É claro que isso não significa que o romance tenha sido considerado ruim, e Jorge Amado, no auge de seu prestígio literário, chegou a dizer que considerava "Caetés" a melhor de todas as estréias daquele início de década. Mas se percebe uma tendência de "Caetés" ter sido subvalorizado desde seu lançamento, o que depois se intensificou, à medida que Graciliano foi lançando livros fantásticos, que acabaram fazendo sombra àquele romance de estréia. E "Caetés" é um livro admirável e merecedor de leitura por mais de um motivo.

   Em primeiro lugar porque o texto único de Graciliano Ramos já está lá -aliás, já estava em alguns artigos que, ainda adolescente, o escritor publicara. Em segundo lugar, pela apurada técnica narrativa. Antonio Candido notou o quanto "Caetés" ainda se liga ao pós-naturalismo, àquela altura bastante decadente. Mas Graciliano faz desvios em relação ao modelo naturalista que dão a seu romance um feitio especial. O mais evidente desses desvios é a opção pelo narrador em primeira pessoa, que o naturalismo evitava. Com esse deslocamento, o romance se constrói com um olho no espaço coletivo da pequena Palmeira dos Índios, com sua galeria de tipos curiosos, e outro no caso individual de João Valério, o protagonista da história, visto, por assim dizer, de dentro.

Papel ambíguo

   Em terceiro lugar, porque essa constituição narrativa permite a "Caetés" ter uma riqueza temática que poucos romances brasileiros de seu tempo tinham. Note-se, nesse sentido, que a figura de João Valério representa a problematização, em alto grau de complexidade, do ambíguo papel do intelectual naquele momento em que o país passava por fortes transformações. Alguns críticos viram um sinal de grandeza de caráter nas inclinações intelectuais desse medíocre guarda-livros que colabora no jornal editado pelo padre da cidade e que durante cinco anos luta para concluir um romance sobre os índios caetés sem nunca conseguir sair do segundo capítulo.

   Mas é possível ver muito menos do que isso. João Valério, que numa rápida passagem nos informa ter tido algumas posses, sente-se inferiorizado na posição subalterna que ocupa -ainda que participe da vida social da cidade. Não tendo mais nada, nem dinheiro nem talento, qual o caminho que lhe resta para buscar algum tipo de prestígio social? Tornar-se respeitável pela atividade intelectual. Assim, quando pensa no livro, tudo o que lhe vem à mente é a imagem de sua exposição nas livrarias e as palavras que se diriam a seu respeito. Diante das dificuldades que tem pela completa ignorância sobre o assunto que escolheu, facilmente desiste, adiando seu trabalho e, portanto, sua glória. Não é à toa que sua vocação literária desaparece sem deixar vestígios assim que, por um golpe do destino, acaba se tornando sócio da casa comercial em que trabalhava. O prestígio social chegou e basta: não é preciso buscar derivativos na literatura. Nem mesmo Luísa, a mulher do patrão, por quem se apaixonara, desperta-lhe interesse.

Dupla estreiteza

   Dessa forma, João Valério completa, por contraste, a trajetória de fracasso dos heróis posteriores de Graciliano, Paulo Honório, Luís da Silva e Fabiano. Afinal ele é o único que consegue o que deseja -que vence.

   Mas essa vitória só é possível porque, no fundo, nada o separa dos valores da comunidade em que vive.

   Na dupla estreiteza -pessoal e do meio-, tornar-se proprietário compensa a queda social anterior e ponto final. Haverá mesmo vitória nisso?

   "Caetés" tem importância no conjunto da ficção de Graciliano Ramos também como demonstração do beco sem saída que a ação isolada representa nos livros desse grande romancista.

Luis Bueno é professor de literatura brasileira na Universidade Federal do Paraná.

(© MAIS! Folha de S. Paulo)


A NARRATIVA EM NEGATIVO DE SÃO BERNARDO

por Beatriz Resende

  
Triste de doer os ossos, "São Bernardo", de Graciliano Ramos, é romance absolutamente fundamental no quadro da moderna literatura brasileira. Paulo Honório -"cinquenta anos perdidos, cinquenta anos sem objetivo, a maltratar-me e a maltratar os outros"- e Madalena -"mulher prendada, bonita, boa em demasia"- e a impossibilidade de "afiar a sintaxe" de um pela do outro. Um ninho de reacionários que consideram "a democracia um contra-senso", bichos e homens-bichos, gente pobre e oportunista compõem o relato que se desenrola de forma intencionalmente desconfortável diante de um leitor que, ao nele penetrar, deve deixar do lado de fora toda esperança.

   Partindo da estratégia narrativa do romance dentro do romance, Graciliano exercita a realização da negatividade retirando do autor ficcional todos os predicados necessários à escritura romanesca: imaginação, sensibilidade, prazer, amor, habilidade no uso da língua, vocabulário erudito, gosto pela literatura. Sem metáforas, mas dispondo da diversidade da fala local e dos ditados de gente do campo, esse homem de dedos excessivamente grossos, cuja razão de viver foi apossar-se das terras de S. Bernardo, precisa escrever a sua história para sobreviver à tragédia por ele mesmo causada. E aí está o primeiro grande desafio que o romance propõe. O pacto que estabelece com o leitor implica a negação de qualquer simpatia por aquele que conduz a narrativa.

Construção pelo avesso

   Paulo Honório é o homem a quem a vida agreste tornou agreste. Às vésperas da Segunda República, ele é senhor de terras reacionário, autoritário, interessado apenas em transformar em lucro a propriedade, os animais e as pessoas que o cercam. No exercício da construção pelo avesso, esse homem incapaz de paixão enlouquece de ciúme pouco após o casamento com Madalena, ela sim capaz de domar a escrita, de apreciar um livro, de buscar a justiça, de respeitar o outro. Porém também ela incapaz de amor, pelo marido ou pelo filho. Ou quem sabe não, já que é vista pelo narrador, o marido cego pela desconfiança, incapaz de vislumbrar ternuras.

   O ciúme e a violência vão trazendo de volta o assassino de outrora. O arbítrio e a dominação encontram na paranóia pasto fácil onde o desejo de crime pode crescer. Mas na escritura do homem sem letras, "grosseiro, monstruosamente grosseiro", o esperado em um universo romanesco não pode ter lugar, e a cena de Otelo pertence aos clássicos. Na construção por inversos, Madalena vai conseguir a liberdade, vai escapar ao domínio insano, não pela vida, e sim pela morte. O que a condena é a folha perdida de carta endereçada a homem e lida pelo marido em quem "ferviam (...) violências desmedidas", tornando-o incapaz de enxergar palavras.

   O suicídio da vítima garante-lhe o escape, a livra das noites de choro, é a única forma de liberdade possível, é liberdade que nenhum déspota lhe pode tirar. O envenenamento a liberta e decreta o sofrimento perene de seu algoz. Todo suicídio é um enigma, e a maldição que lega aos sobreviventes é a necessidade de esclarecer suas razões. A carta deixada é o texto onde Madalena, a que sabe da escrita -"Literatura, política, artes, religião... Uma senhora inteligente, a d. Madalena. E instruída. É uma biblioteca"-, poderá mostrar ao leitor por que preferira abrir mão da vida; é a informação decisiva que cabe ao narrador do romance partilhar com o seu leitor.

Caminhos tortuosos

   O ficcional criador do texto, no entanto, ainda uma vez repele aquele mesmo destinatário para quem escreve. Como os sentimentos e os propósitos da loura senhora esbarraram na brutalidade e egoísmo de Paulo Honório, a curiosidade do leitor se defrontará com a mesquinhez de quem conta a história. "Era uma carta extensa em que se despedia de mim. Li-a saltando pedaços e naturalmente compreendendo pela metade, porque topava a cada passo aqueles palavrões que a minha ignorância evita."

   Essa subtração da narrativa será transformada por Leon Hirszman, no filme "São Bernardo", de 1971, em um dos grandes planos do cinema brasileiro. Paulo Honório dentro da casa, o espectador fora.
"Lá fora há uma treva dos diabos, um grande silêncio. Entretanto o luar entra por uma janela fechada e o nordeste espalha folhas secas no chão."

   Tomado por fome e sede de emoções, cenários, diálogos que lhe foram negados e diante da impossibilidade de qualquer simpatia pelo narrador, o leitor chega ao fim do romance.
Termina, então, a leitura desconhecendo as razões de Madalena e se perguntando que caminhos tortuosos foram aqueles que o conduziram, em doloroso e contraditório prazer, através de uma das mais extraordinárias narrativas de nosso universo literário.

Beatriz Resende é professora da UniRio e pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É autora de "Apontamentos de Crítica Cultural" (DNL/Aeroplano), entre outros.

(© MAIS! Folha de S. Paulo)


VIDAS SECAS OU A ATROFIA DA PALAVRA

por João Cezar de Castro Rocha

   Num ensaio de 1943, Otto Maria Carpeaux propôs uma leitura surpreendente do livro publicado apenas cinco anos antes: "Não é o sertão o culpado; "Vidas Secas" é o seu romance relativamente mais sereno, relativamente mais otimista. O culpado é -superficialmente visto, numa primeira aproximação- a cidade". A oposição entre meio rural e meio urbano nada tem de nova. E parece mais interessante pensar que a cidade surge como a reserva de utopia em "Vidas Secas". Na projeção de Sinha Vitória e Fabiano, no parágrafo que encerra o romance, "andavam para o Sul, metidos naquele sonho. Uma cidade grande, cheia de pessoas fortes. Os meninos em escolas, aprendendo coisas difíceis e necessárias".

Dimensão utópica

   Entretanto caracterizar "Vidas Secas" pela serenidade e pelo otimismo constitui um achado que merece ser desenvolvido. Afinal, superficialmente visto, o romance começa com uma "mudança" (título do primeiro capítulo) e termina numa "fuga" (título do último capítulo). Nomes diversos para o mesmo destino de retirantes em busca da sobrevivência. Os 13 capítulos do livro emolduram as ações transcorridas entre duas secas, ou seja, o termômetro das vidas severinas de Fabiano, Sinha Vitória, os dois filhos, a cachorra Baleia e o papagaio -"mudo e inútil. Não podia deixar de ser mudo. Ordinariamente a família falava pouco". Otimismo e serenidade?

   A observação de Carpeaux exige que se recupere a dimensão utópica disseminada por Graciliano Ramos em pequenos gestos de seus personagens. "Utopia" pode ser uma palavra excessiva para o estilo só-lâmina de Graciliano. Mas o princípio esperança, esse não foi abandonado por Fabiano, até diante da iminência de nova estiagem: "Seria necessário mudar-se? Apesar de saber que era necessário, agarrou-se a esperanças frágeis. Talvez a seca não viesse, talvez chovesse".

   Sinha Vitória aprendeu a lição e, outra vez na estrada, resolveu acreditar que "talvez esse lugar para onde iam fosse melhor do que os outros onde tinham estado". Embora infundada, a esperança retorna nos momentos mais adversos, alimentando uma crença relativamente serena que não se confunde com fatalismo, pois a esperança surge no fim do romance na possibilidade de superação de limites. Uma possibilidade frágil, já se viu. Mas muito distante da leitura consagrada, sintetizada por Álvaro Lins: "O final do livro é uma retirada, como o princípio fora uma chegada, dentro de uma fatalidade que o romance sugere (...)".

   Porém, como descobrir em "Vidas Secas" um texto em alguma medida otimista? De um lado, a resposta se encontra no princípio esperança. De outro, na extraordinária investigação linguística e epistemológica que confere unidade ao romance. Esse é um ponto fundamental. A interpretação dominante estabeleceu padrão oposto, mais uma vez expresso por Álvaro Lins: "(...) a novela, tendo sido articulada em quadros, os seus capítulos, assim independentes, não se articulam formalmente com bastante firmeza e segurança".

   Ora, Graciliano não pretendia representar pobres retirantes; o que, numa abordagem tradicional, demandaria uma narrativa estruturada através de ações continuadas dos personagens. Pelo contrário, Graciliano esforçou-se por apresentar a pobreza em suas consequências mais graves: a atrofia da linguagem e a anemia do pensamento.

   A dificuldade no controle da linguagem e o consequente embaraço na ordenação do pensamento são os verdadeiros protagonistas de "Vidas Secas". No primeiro capítulo, a sobrevivência da família é assegurada com a morte do papagaio: "A fome apertara demais os retirantes e por ali não existia sinal de comida". Os sinais de diálogo eram igualmente escassos: "Depois daquele desastre viviam todos calados, raramente soltavam palavras curtas". Em todos os capítulos, observações semelhantes retornam obsessivamente, estruturando a narrativa em torno da relação entre palavras raras e pensamento inarticulado.

   O menino mais velho ficara intrigado com a palavra "inferno", o que irritara sua mãe. Depois de um castigo que considerou injusto, buscou aconselhar-se com Baleia: "Tinha um vocabulário quase tão minguado como o do papagaio que morrera no tempo da seca. Valia-se, pois, de exclamações e de gestos, e Baleia respondia com o rabo, com a língua". O filho mais velho aprendera com o pai, que "às vezes utilizava nas relações com as pessoas a mesma língua com que se dirigia aos brutos -exclamações, onomatopéias".

   Com tais recursos linguísticos, o pensamento pode se tornar tão hostil quanto o clima. O menino mais novo queria impressionar seu irmão e a cachorra. Fracassou, "fez tenção de entender-se com alguém, mas ignorava o que pretendia dizer. A égua alazã e o bode misturavam-se, ele e o pai misturavam-se também". O filho mais novo aprendera com a mãe, que enfrentava idêntica dificuldade para expressar o desejo por uma cama de gente como a de Seu Tomás da bolandeira: "Isto lhe sugeriu duas imagens quase simultâneas, que se confundiram e neutralizaram".

   A arquitetura de "Vidas Secas" revela-se toda no capítulo "Inverno", sétimo do conjunto de 13 capítulos. Reunida a família em torno do fogo, palavras atravessavam o ambiente. Tratava-se da "conversa dos pais. Não era propriamente conversa: eram frases soltas, espaçadas, com repetições e incongruências".

   Ora, essa arquitetura sutil se completa no último capítulo, "Fuga", simétrico invertido do primeiro, "Mudança". Nesse, os retirantes mudavam-se de uma fazenda a outra, mas em nada alteravam sua condição de "quase uma rês na fazenda alheia". Rês, res: coisa, apenas. Naquele, ao contrário, os viventes buscavam fugir do círculo perverso, imaginando um lugar, "uma terra desconhecida", a cidade grande.

   E como fazê-lo? Através do controle inesperado da linguagem. Nesse capítulo, "Fuga", os personagens deixam de trocar palavras: eles realmente dialogam. "Sinha Vitória precisava falar. (...) Chegou-se a Fabiano, amparou-o e amparou-se". Nas páginas finais, Graciliano semeia diversas vezes a palavra decisiva: conversa. É através da linguagem que os viventes se fortalecem. E, pela primeira vez no romance, Fabiano "mostrou os dentes sujos num riso infantil". Riso de quem era in-fans, de quem pouco falava e quase nada escutava. Agora, "as palavras de Sinha Vitória encantavam-no. Iriam para diante (...)".

   A linguagem transformou "quatro sombras" numa família. E quem sabe no capítulo que não foi escrito os dois meninos recebessem nomes próprios.

João Cezar de Castro Rocha é professor de literatura comparada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É autor de "Literatura e Cordialidade" (Eduerj).

(© MAIS! Folha de S. Paulo)


+ Cronologia

1892
Nasce em 27 de outubro, em Quebrangulo (AL). Passa a infância nas cidades de Viçosa, Palmeira dos Índios (AL) e Buíque (PE). Faz seus estudos, incompletos, em Maceió

1914-1915
Trabalha em revisão de provas tipográficas em vários jornais no RJ 1915 Retorna a Palmeira dos Índios, onde trabalha como comerciante e jornalista

1928
É eleito prefeito de Palmeira dos Índios e se casa com Heloísa Medeiros

1930
Renuncia ao cargo de prefeito e muda-se para Maceió, onde é nomeado diretor da Imprensa Oficial

1933
Publica o romance "Caetés", em que vinha trabalhando desde 1925

1934
Publica "São Bernardo"

1936
Em março, é preso e enviado ao Rio de Janeiro. "Angústia" é lançado em agosto.

1937
Trabalha como copidesque em jornais no RJ

1938
Publica "Vidas Secas"

1939
É nomeado Inspetor Federal do Ensino Secundário no Rio de Janeiro

1944
Publica "Histórias de Alexandre"

1945
Filia-se ao Partido Comunista. Lança "Dois Dedos" e o livro de memórias "Infância". Antonio Candido publica série de cinco artigos sobre a obra de Graciliano Ramos no "Diário de São Paulo", que o autor responde por carta. O material completo, acrescido de novos ensaios, encontra-se reunido no livro "Ficção e Confissão" (ed. 34)

1946
Publica "Histórias Incompletas"

1947
Publica os contos de "Insônia"

1952
Viaja à Tcheco-Eslováquia e Rússia, onde romances seus foram traduzidos. Viaja a Buenos Aires para tratamento de pulmão

1953
É internado na Casa de Saúde e Maternidade S. Vítor, onde morre no dia 20 de março. "Memórias do Cárcere" é publicado

1954
Sai o livro "Viagem"

1962
São publicados os livros "Linhas Tortas", "Viventes das Alagoas" e "Alexandre e Outros Heróis"

1963
Nelson Pereira dos Santos lança sua adaptação para o cinema de "Vidas Secas"

1971
Leon Hirszman dirige "São Bernardo"

1980
É publicada uma reunião de sua correspondência, intitulada "Cartas"

1983
Nelson Pereira dos Santos dirige "Memórias do Cárcere"

(© MAIS! Folha de S. Paulo)

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