Tárik
de Souza
Crítico do JB Na
leva neo nordestina que tomou a MPB dos 70 - de descendentes
pós-pop/rock de Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro -, o paraibano Zé
Ramalho foi o que mais se inclinou para a cantoria dos repentistas
conterrâneos: ergueu uma ponte entre o surrealismo messiânico do
cantador Zé Limeira e a balada folk estradeira de tintas
místicas/engajadas de Bob Dylan. Ambas as influências estão
sacramentadas especialmente na primeira fase de sua obra, que acaba de
ser relançada numa caixa de 12 CDs da Sony, produzida pelo pesquisador
Marcelo Fróes. Intitulado Zé Ramalho, o pacote embalado em
papelão cru traz do primeiro disco, que levou apenas o nome do
compositor, em 1978 (o de Avohai, Vila do Sossego, Chão de
giz) , ao não menos clássico A peleja do diabo com o dono do céu
(Admirável gado novo, Frevo mulher), do ano seguinte,
contracenando com Zé do Caixão na capa.
E mais:
A terceira lâmina (1981), Força verde (1982), Orquídea
negra (1983), Por aquelas que foram bem amadas (1984), De
gosto, de água e de amigos (1985), Opus visionário (1986),
Décimas de um cantador (1987), Brasil Nordeste(1991) e
Frevoador (1992). Os discos, com as capas e encartes originais,
ganharam 23 faixas bônus, oito inéditas.
Pena que
faltem informações sobre a origem da maioria dos bônus, como o saboroso
O desafio do século (Zé Ramalho/ Galvão/ Paulinho), travado com
Paulinho Boca de Cantor, extraído do disco solo do novobaiano, de 1979,
e aditado à Peleja. No mesmo CD, um erro crasso. O megaclássico
dos Byrds Mr. Tambourine man, regravado em versão por Zé e o
grupo Renato & seus Blue Caps, tem omitida a autoria de Bob Dylan.
Da toada ao
gospel
Outra faixa bônus de
procedência não identificada é o frevo Rapaz do táxi (Geraldo
Azevedo/ Carlos Fernando), do projeto Asas da América nº. 2, de
1980, incluído no polêmico Força verde, praticamente engavetado
pela gravadora após uma acusação de plágio do poema de um irlandês
tirado de um dos quadrinhos do personagem Incrível Hulk, da Marvel
Comics.
Nem todos
os discos são inéditos em CD. A terceira lâmina e Força verde
foram editados em dupla no projeto Mitos & músicas. E Brasil
nordeste saiu originalmente em CD no volume 4 da série Academia
Brasileira de Música. Embora incluído - com justiça artística - na
carreira de Zé, é um típico disco de projeto onde o solista viaja por
clássicos de sua região (Asa branca, Baião, Carcará,
Sebastiana, Paraíba), incluindo os próprios sucessos e os de sua
geração (Mucuripe e Paralelas). Mas mesmo com percalços de
edição, a caixa promove uma salutar reavaliação da obra do artista que
apareceu para o público do Sul Maravilha como Zé Ramalho da Paraíba,
integrando a banda de Alceu Valença em meados dos 70.
Seu
trajeto tem um marco anterior importante, o álbum duplo Paêbirú: o
caminho da montanha do sol, que dividiu com o visionário músico
pernambucano Lula Côrtes, em 1975. Ex-guitarrista do grupo Os Quatro
Loucos, Zé Ramalho integrou o pouco badalado movimento tropicalista
pernambucano. A bagagem inventiva acumulada nesse tempo explode sob a
forma de obras-primas nos dois primeiros discos, assinados pelo produtor
Carlos Alberto Sion.
Ali estão
as principais pepitas, algumas mencionadas acima, emolduradas pela viola
de 12 cordas de Ivson Wanderley, o Ivinho, o Lanny Gordin do nordeste, o
tricórdio de Lula Cortes, o zabumba, ganzá e pandeiro de um certo
Bezerra da Silva, teclados do suíço Patrick Moraz (que tocou no Yes),
participações de Altamiro Carrilho, Paulo Moura, Vinicius Cantuária,
Arnaldo Brandão e um solo estonteante de guitarra do mutante Sérgio Dias
Baptista em A dança das borboletas.
Também se
encontram ali as diretrizes básicas da obra do cantador pop de voz
crestada nos graves soturnos, que se move com desembaraço entre os
diversos formatos da música nordestina, do aboio ao galope, baião, coco,
xaxado, toada e mais pitacos de soul/gospel e talagadas da balada folk
americana. Nas letras, ele viaja do messianismo à mitologia discursiva,
sempre com imagens vigorosas.
Entre as
particularidades do repertório está a utilização, em ritmo de samba, no
disco de estréia, na abertura de Adeus Segunda feira cinzenta, do
mote Espelho cristalino, que Alceu Valença desenvolveria num xote
de sucesso. Geraldo Vandré é evocado em Admirável gado novo, no
disco A peleja do diabo com o dono do céu , cuja faixa título
consuma a fusão do zabumba do coco num tom de épico folk, algo que
também ocorre em outro clássico, Banquete dos signos, de Força
verde, onde mais um ícone é celebrado em Visões de Zé Limeira
sobre o final do século XX.
Ao longo
dos discos, o impulso criador inicial se dilui num pop genérico. Mas
quem fuça faixa a faixa sempre encontra surpresas como a raulseixista
A história do jeca que virou Elvis Presley (com Carlos Fernando), em
Frevoador, a acoplagem do Hino de Duran, da Ópera do
malandro, de Chico Buarque, ao pré-rap Deixa isso pra lá, em
Décimas de um cantador , ou o estupendo solo Embolada violada,
de Orquídea Negra, onde Zé toca todos os instrumentos e mostra que não
veio ao pódio a passeio.
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