Notícias
Caixa de 11 CDs lembra acertos e fracassos de Zé Ramalho

25/03/2003

 


 

Ao reunir numa caixa os discos que Zé Ramalho fez entre 1978 e 1992, a Sony acena agora com a frase “os 11 grandes sucessos de sua carreira”. Botar novamente em catálogo esses títulos — produção de Marcelo Fróes, que adicionou 23 faixas bônus ao repertório original e situou cada disco nos textos dos encartes — merece aplausos, mas a passagem do cantor e compositor paraibano pela gravadora não é exatamente uma história de sucesso, comercial ou artístico. E em relação às faixas extras, se funcionam como curiosidade, pouco acrescentam a cada disco — pena que faltem as informações básicas: músicos, produtores e ano das gravações.

   Depois de, com méritos, chegar ao topo com seu segundo disco, “A peleja do diabo com o dono do céu” (79), Zé Ramalho iniciou um lento processo de decadência. Devido, em parte, como Fróes conta nos encartes (a partir de entrevistas com o artista), à embriaguez com o sucesso, turbinada por cocaína, álcool e demais aditivos. Os trabalhos seguintes alternaram espasmos de criatividade com a exaustão do formato que tanto impacto causara na época de sua estréia. Fundindo a tradição dos repentistas nordestinos a influências do pop — Dylan, Beatles, Jovem Guarda — com voz grave e impostada, Zé Ramalho abusava em suas letras de imagens surrealistas, numa salada de misticismo, referências sócio-políticas, mitológicas e da ficção científica.

   Além desse formato, seus primeiros discos, “Zé Ramalho” e “A peleja...”, também são enriquecidos pela diversidade rítmica e dos arranjos — tem até choro, em “Pelo vinho e pelo pão”, com, entre outros, Dino (violão de sete cordas) e Abel Ferreira (clarinete). Mas é o repertório, de alguém que há anos lutava por seu espaço, que fez a diferença.

   Sem avançar, “A terceira lâmina” (81) e “Força verde” (82) mantinham o estilo. A descoberta de que os versos de “Força verde” tinham sido tirados de uma revista do Incrível Hulk — que, por sua vez, chupara-os do poeta irlandês W.B. Yeats — detonou uma rejeição ao cantor, que se recolheu, interrompendo a divulgação do disco.

   Os trabalhos seguintes refletem o desequilíbrio: repertório irregular e, principalmente, frustradas tentativas de modernizar sua sonoridade, que hoje soa datada.

   No fundo do poço, ele saiu da gravadora após “Décimas...” (87). Quatro anos depois, participaria da série Academia Brasileira de Música, com “Brasil Nordeste”, no qual recria dos obrigatórios Luiz Gonzaga e João do Valle aos seus sucessos. Em 92, graças à inclusão de uma gravação sua na novela “Pedra sobre pedra” da Rede Globo, Zé Ramalho fez mais um disco na Sony, “Frevoador”, ainda sem repetir o desempenho de seus primeiros discos. (A.C.M.)

(© O Globo On Line)

A cantoria nordestina de Zé Ramalho
Tárik de Souza
Crítico do JB

   Na leva neo nordestina que tomou a MPB dos 70 - de descendentes pós-pop/rock de Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro -, o paraibano Zé Ramalho foi o que mais se inclinou para a cantoria dos repentistas conterrâneos: ergueu uma ponte entre o surrealismo messiânico do cantador Zé Limeira e a balada folk estradeira de tintas místicas/engajadas de Bob Dylan. Ambas as influências estão sacramentadas especialmente na primeira fase de sua obra, que acaba de ser relançada numa caixa de 12 CDs da Sony, produzida pelo pesquisador Marcelo Fróes. Intitulado Zé Ramalho, o pacote embalado em papelão cru traz do primeiro disco, que levou apenas o nome do compositor, em 1978 (o de Avohai, Vila do Sossego, Chão de giz) , ao não menos clássico A peleja do diabo com o dono do céu (Admirável gado novo, Frevo mulher), do ano seguinte, contracenando com Zé do Caixão na capa.

   E mais: A terceira lâmina (1981), Força verde (1982), Orquídea negra (1983), Por aquelas que foram bem amadas (1984), De gosto, de água e de amigos (1985), Opus visionário (1986), Décimas de um cantador (1987), Brasil Nordeste(1991) e Frevoador (1992). Os discos, com as capas e encartes originais, ganharam 23 faixas bônus, oito inéditas.

   Pena que faltem informações sobre a origem da maioria dos bônus, como o saboroso O desafio do século (Zé Ramalho/ Galvão/ Paulinho), travado com Paulinho Boca de Cantor, extraído do disco solo do novobaiano, de 1979, e aditado à Peleja. No mesmo CD, um erro crasso. O megaclássico dos Byrds Mr. Tambourine man, regravado em versão por Zé e o grupo Renato & seus Blue Caps, tem omitida a autoria de Bob Dylan.

Da toada ao gospel

   Outra faixa bônus de procedência não identificada é o frevo Rapaz do táxi (Geraldo Azevedo/ Carlos Fernando), do projeto Asas da América nº. 2, de 1980, incluído no polêmico Força verde, praticamente engavetado pela gravadora após uma acusação de plágio do poema de um irlandês tirado de um dos quadrinhos do personagem Incrível Hulk, da Marvel Comics.

   Nem todos os discos são inéditos em CD. A terceira lâmina e Força verde foram editados em dupla no projeto Mitos & músicas. E Brasil nordeste saiu originalmente em CD no volume 4 da série Academia Brasileira de Música. Embora incluído - com justiça artística - na carreira de Zé, é um típico disco de projeto onde o solista viaja por clássicos de sua região (Asa branca, Baião, Carcará, Sebastiana, Paraíba), incluindo os próprios sucessos e os de sua geração (Mucuripe e Paralelas). Mas mesmo com percalços de edição, a caixa promove uma salutar reavaliação da obra do artista que apareceu para o público do Sul Maravilha como Zé Ramalho da Paraíba, integrando a banda de Alceu Valença em meados dos 70.

   Seu trajeto tem um marco anterior importante, o álbum duplo Paêbirú: o caminho da montanha do sol, que dividiu com o visionário músico pernambucano Lula Côrtes, em 1975. Ex-guitarrista do grupo Os Quatro Loucos, Zé Ramalho integrou o pouco badalado movimento tropicalista pernambucano. A bagagem inventiva acumulada nesse tempo explode sob a forma de obras-primas nos dois primeiros discos, assinados pelo produtor Carlos Alberto Sion.

   Ali estão as principais pepitas, algumas mencionadas acima, emolduradas pela viola de 12 cordas de Ivson Wanderley, o Ivinho, o Lanny Gordin do nordeste, o tricórdio de Lula Cortes, o zabumba, ganzá e pandeiro de um certo Bezerra da Silva, teclados do suíço Patrick Moraz (que tocou no Yes), participações de Altamiro Carrilho, Paulo Moura, Vinicius Cantuária, Arnaldo Brandão e um solo estonteante de guitarra do mutante Sérgio Dias Baptista em A dança das borboletas.

   Também se encontram ali as diretrizes básicas da obra do cantador pop de voz crestada nos graves soturnos, que se move com desembaraço entre os diversos formatos da música nordestina, do aboio ao galope, baião, coco, xaxado, toada e mais pitacos de soul/gospel e talagadas da balada folk americana. Nas letras, ele viaja do messianismo à mitologia discursiva, sempre com imagens vigorosas.

   Entre as particularidades do repertório está a utilização, em ritmo de samba, no disco de estréia, na abertura de Adeus Segunda feira cinzenta, do mote Espelho cristalino, que Alceu Valença desenvolveria num xote de sucesso. Geraldo Vandré é evocado em Admirável gado novo, no disco A peleja do diabo com o dono do céu , cuja faixa título consuma a fusão do zabumba do coco num tom de épico folk, algo que também ocorre em outro clássico, Banquete dos signos, de Força verde, onde mais um ícone é celebrado em Visões de Zé Limeira sobre o final do século XX.

   Ao longo dos discos, o impulso criador inicial se dilui num pop genérico. Mas quem fuça faixa a faixa sempre encontra surpresas como a raulseixista A história do jeca que virou Elvis Presley (com Carlos Fernando), em Frevoador, a acoplagem do Hino de Duran, da Ópera do malandro, de Chico Buarque, ao pré-rap Deixa isso pra lá, em Décimas de um cantador , ou o estupendo solo Embolada violada, de Orquídea Negra, onde Zé toca todos os instrumentos e mostra que não veio ao pódio a passeio.

(© JB Online)

Com relação a este tema, saiba mais (arquivo NordesteWeb)


powered by FreeFind