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Lopes Bogéa
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Lopes Bogéa, compositor tão prolífico quanto
oculto, tem obra póstuma lançada por seu conterrâneo, o músico Zeca
Baleiro
Livia Deodato
O maranhense Lopes Bogéa
cantou a pobreza, a fartura, a vida e a morte. Reverenciou a natureza, o
samba, a companheira de uma vida toda. Imprimiu as suas mais sensíveis
observações em mais de 300 composições que só agora, três anos após a sua
morte, o público terá a chance de conhecer. Balançou no Congá é a obra
póstuma do artista descoberto tardiamente - como muitos outros perdidos pelo
Brasil afora -, que reúne 17 das mais significativas músicas de seu extenso
repertório guardado em velhos cadernos e na memória de sua filha, Heleudes
Bogéa.
Seu conterrâneo Zeca Baleiro foi quem deixou os últimos dias de vida de
Bogéa um pouco mais ensolarados. Mas ele rejeita rótulos do tipo
'embaixador' daquele Estado. 'Eu sempre refutei esse cargo, sempre fui muito
avesso a tudo que soasse oficial demais, chapa branca. Por eu ser do
Maranhão e meu trabalho ter hoje uma certa visibilidade, certos projetos vêm
até mim. E quando acredito que eles são bacanas e louváveis, eu assino
embaixo', diz. Zeca não só assinou embaixo, como produziu à própria custa o
primeiro álbum do compositor que permaneceu escondido entre os azulejos de
São Luís durante os 78 anos que viveu. A gravadora de Zeca, Saravá Discos, é
a responsável por esse belo trabalho iniciado em 2002 com a ajuda de outro
maranhense, muito amigo de Bogéa, o músico Chico Saldanha.
Baleiro conheceu pessoalmente Bogéa por intermédio de Antonio Vieira, outro
prolífico compositor da ilha, hoje com 87 anos, que também foi presenteado
com um álbum autoral em 2001, O Samba É Bom, que agora é relançado também
pela Saravá Discos. Vieira e Bogéa, amigos de longa data, alcançaram
relativo destaque na região com o livro Pregões de São Luís, dos anos 80,
onde se inspiraram em cantos de vendedores ambulantes, como O Carvoeiro, O
Amolador, O Sorveteiro, O Verdureiro, A Doceira. Diz um deles: 'Pamonha,
pamonha, pamonha.../Tá quentinha!/A pamonha só é boa/quando é feita por
dindinha.' Foi transformado em LP em 1988 e, 10 anos depois, acabou sendo
relançado em CD sob o título Pregoeiros.
Vieira sempre procurou exibir suas canções em shows da capital maranhense e
em cidades do interior. Até hoje, firme e forte, não hesita em aceitar
convites para apresentações pelo País. Diferentemente de Bogéa: ainda que
tivesse uma produção muito fértil (e fosse muito mais 'da balada' do que
Vieira, segundo Baleiro), passou muito tempo de sua vida se dedicando ao
jornalismo, exercendo as funções de rádio-escuta, repórter, redator e
diretor artístico, dos anos 60 até fim dos 70, na Rádio Timbira e no Jornal
Pequeno. Escreveu também alguns livros, todos relacionados à cultura
popular.
Enquanto isso, suas músicas encantavam o cantor paraense Ari Lobo e os
grupos Cobras do Norte e Nonato e Seu Conjunto, que fizeram reverberar, ao
menos regionalmente, seu talento musical. Compôs com João do Vale 350 anos
de São Luís, interpretada no novo álbum pela também conterrânea Alcione, que
fez questão de participar da compilação. 'O pai de Alcione, maestro João
Carlos Nazaré, era muito amigo de Bogéa, assim como minha mãe, que estudou
com ele', conta Baleiro.
Além de Alcione, participam do álbum os maranhenses Rita Ribeiro, Criolina
(leia abaixo), Chico Saldanha, Josias Sobrinho, César Teixeira, Tião
Carvalho e Baleiro, obviamente. Beth Carvalho, Germano Mathias e Genival
Lacerda completam a lista de intérpretes do altíssimo escalão aprovado
previamente por Bogéa, que só conseguiu dar voz a quatro de suas composições
- Balaiei, Sim, Balançou no Congá, Siricora e Sapoti. 'Eu ia sugerindo os
nomes e ele, ressabiado, com ares de quem já foi muito enganado na vida,
dizia 'será?'', relembra Baleiro. Pouco meses depois de ter iniciado as
gravações em 2003, morreu em decorrência de um câncer.
A divisão das músicas para cada intérprete também não foi ao acaso. Para
Germano Mathias, o samba sincopado Eu Sou do Apartamento Aqui de Baixo. 'Ele
adorou, disse que já tá inclusive cantando nos shows dele.' A Beth Carvalho
foram enviadas duas opções - mas ela acabou preferindo o partido-alto
Sambista de Fato. Já Rita Ribeiro ficou com o carimbó A Gente e o Mar,
enquanto Genival Lacerda forrozeou em Encruzado. 'Cada um pegou a sua
'praia'', diverte-se Baleiro.
As músicas, que ainda passeiam pelo baião, marchas e toadas de boi, ganharam
arranjos do violonista paulistano Swami Jr., do baixista alagoano Fernando
Nunes e do violonista maranhense Luís Jr., além de Baleiro. 'Os arranjos
tinham de ser com formação acústica, uma instrumentação básica de samba,
além da sanfona. Fiz alguns deles e chamei outros três arranjadores, para
que o disco tivesse cores variadas', explica.
PROFETA
O compositor não só nasceu no Dia de São João, como num local homônimo à
cidade onde o santo viveu: Jericó, no município de Guimarães (MA). João
Batista Lopes Bogéa era tido como um homem generoso e justo. Dedicou grande
parte de sua vida ao Asilo de Mendicidade de São Luís, onde atuava como
diretor de Patrimônio. Iniciou-se na maçonaria em 1954, graças a seu pai
adotivo, João Lélis, marido de sua irmã Domingas. Acreditavam que só assim
aquele moleque tomaria juízo e deixaria de 'presepadas'. 'Me endireitei',
dizia a todo mundo, na tentativa de ele mesmo se convencer disso.
Diz a lenda que, assim como o filho de Isabel, irmã da mãe de Jesus, Bogéa
também tinha o dom de predizer o futuro. Pouco antes da empreiteira
Serveng-Civilsan iniciar a instalação de uma siderúrgica em São Luís em
1972, ele escreveu a música Exaltando a Minha Terra (Minha terra é de
esperança/O progresso lá avança/Cada dia, dia mais.../Siderúrgica chegando,
Itaqui-Porto exportando/Minério de Carajás). Mistérios do Maranhão.
Glossário
SIRICORA - Variação de saracura, ave brasileira
CONGÁ - Variação de gongá, é o terreiro da umbanda
SAPOTI - Fruto cônico, de casca fina e coloração castanho-escura do
sapotizeiro, árvore tropical
GUARIMÃ - Planta de onde se tira a fibra para fazer balaio
BALAIO - Cesta de palha
BALADEIRA - Estilingue, rede
VENTEJAR - Separar cascas e fragmentos (de arroz ou milho) com peneira
PANACU - Grande cesto de vime com duas alças para frutas, louça, roupa
XERÉM - Sobra do milho que serve de comida de animais
MUNDONGUICE - Malandragem, mandinga
BANZEIRO - Quando o mar se agita em pequenas ondas
TERÉM - Treco, tralha, coisa
CUNHÃS - Índias