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 Ubaldo faz transição do regional ao pós-moderno

 

 

 

"Sargento Getúlio" e "Viva o Povo..." iniciam reedição das obras do baiano

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

"Sargento Getúlio" e "Viva o Povo Brasileiro" - romances que dão início ao relançamento da obra de João Ubaldo Ribeiro pela Alfaguara/Objetiva- são os dois livros aos quais o escritor baiano deve seu lugar na história da literatura brasileira.

Não se trata de um lugar fixo, congelado nos compêndios de crítica e nos livros escolares.

Cada nova edição solicita ao leitor uma releitura e uma reavaliação: seria ele o capítulo final da literatura regionalista ou, ao contrário, um dos primeiros autores a escreverem no Brasil uma prosa pós-moderna, com paródias de outros escritores e estilo camaleônico?

Os livros aqui em questão podem ser interpretados dessas duas maneiras. "Sargento Getúlio", de 1971, narra a história de uma missão política que se transforma em fábula moral.

Getúlio Santos Bezerra é o militar encarregado de levar um prisioneiro do sul da Bahia até o Sergipe.

Durante o trajeto, chegam notícias de que, devido a mudanças na política local, ele deve abandonar a tarefa e libertar o subversivo. Getúlio resolve concluir sua tarefa, desafia as autoridades e torna-se, também ele, um insurgente.

Numa anotação inicial, o autor alerta que a narrativa que virá a seguir "é uma história de aretê" -em referência à palavra grega normalmente traduzida por termos como "virtude", "excelência", "nobreza".

Ou seja, o romance contrasta uma realidade social marcada pelo autoritarismo e pelo concerto dos interesses políticos a uma conduta regida pelo orgulho, por uma noção de virtude menos vinculada à ética cristã (piedosa e privada) do que a uma idéia mediterrânea de honra (viril e pública).

Valores arcaicos

A obstinação de Getúlio revela apego a valores arcaicos em litígio contra as instituições modernas e sua deformação no ambiente agreste. Ocorre que o próprio sargento sofre tal deformação, tratando seu prisioneiro com uma raiva homicida amplificada pela prosa de João Ubaldo -singular mistura de fluxo de consciência e oralidade nordestina.

Ambientado nos anos 50, "Sargento Getúlio" pode ser lido como espelho do Brasil dos anos de chumbo do regime militar; mas esse quadro sócio-político é atravessado por uma idéia de "desmedida" (no sentido da "húbris" grega, que precipitava o conflito nos épicos antigos) que lhe confere caráter atemporal, apesar do enraizamento sertanejo. A viagem simbólica de Getúlio se transforma, em "Viva o Povo Brasileiro" (1984), numa espécie de alegoria na qual são resumidos três séculos de Brasil, desde a ocupação holandesa até o Estado Novo e o golpe de 64, com destaque para as guerras de Canudos e do Paraguai.

Viés satírico

Com viés mitopóetico e satírico, ambientado no Recôncavo Baiano, o romance segue o trajeto de "alminhas" que migram de geração em geração, encarnando personagens populares que permitem reescrever nossa história a contrapelo e em cronologia descontínua.

Esse tipo de recurso, amplamente utilizado pelos escritores do realismo fantástico (como o paraguaio Roa Bastos e o colombiano García Márquez), também levou a comparações com Guimarães Rosa, por seu sentido cosmológico -o que colocaria João Ubaldo como arremate de um ciclo da literatura latino-americana.
O romance, entretanto, faz uma celebração do imaginário afro-baiano (orixás lutando na Guerra do Paraguai, um tom profético que remete aos sermões de padre Vieira) na qual a contestação da história oficial ganha cores eufóricas.

Nesse sentido, o romance indica o caminho tomado por João Ubaldo: se "Sargento Getúlio" identifica na violência e na pulsão de morte uma invariável da história, "Viva o Povo Brasileiro" usa a história para fazer variações de estilo, numa evidente opção pelo entretenimento que será confirmada nos livros seguintes.

SARGENTO GETÚLIO
Autor:
João Ubaldo Ribeiro
Editora: Alfaguara/Objetiva
Quanto: R$ 29,90 (168 págs.)
Avaliação: ótimo

VIVA O POVO BRASILEIRO
Autor:
João Ubaldo Ribeiro
Editora: Alfaguara/Objetiva
Quanto: R$ 64,90 (640 págs.)
Avaliação: bom

(© Folha de S. Paulo)

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