Maria Bethânia até gargalha ao ouvir mais uma vez a pergunta. Os
repórteres querem saber por que, no primeiro disco que as une, ela e a
cubana Omara Portuondo cantam em duo só quatro das 13 músicas.
"O disco saiu assim. Posso dizer, para confortá-los, que no show tem
bem mais. A gente queria falar de muitas coisas e tivemos que abrir mão
de duetos para o disco ter uma estrutura", afirma a brasileira.
"O Cio da Terra" (Milton Nascimento/Chico Buarque) é uma das canções
preparadas para o show, que estréia amanhã no Canecão, no Rio, chega a
São Paulo, no Via Funchal, nos dias 27 e 28, e passa por mais nove
capitais até maio.
Ouvindo-se o CD, vendo-se o minidocumentário que está na "edição
especial" do disco e observando-se as duas juntas hoje, a impressão é
que a relação entre elas evoluiu da cerimônia provocada pela admiração
mútua para uma descontração que deverá se refletir no palco.
"Já nos conhecemos, já se quebrou a tensão, uma certa vergonha. Nos
ensaios, a gente ri cantando. Há um pouco da malandragem no melhor
sentido, da sensualidade baiano-cubana", diz Bethânia.
"Cheguei [para gravar] um pouco tímida, impressionada com a
personalidade dela. Eu tinha uma admiração tão grande que não queria
incomodá-la.
Quando a ouço cantando "Palavras" [de Gonzaguinha], fico arrepiada",
exalta Omara, que pediu, em 2005, ao cantar no Rio, para ser apresentada
à colega brasileira.
Artista que se tornou conhecida ao ser retratada no documentário
"Buena Vista Social Club" (1999), de Wim Wenders, Omara já vira Bethânia
cantando em Cuba e se tornara fã. Bethânia diz que tem quase todos os
discos da cubana, que considera "primorosa".
Sem frieza
O filme de 40 minutos com os bastidores das gravações, dirigido por
Bruno Natal, retrata essa reverência e o início de uma bela amizade. Mas
o CD, embora careça de mais duos, não é frio. Para isso pesa,
naturalmente, o repertório: várias canções comoventes, como "Para
Cantarle a mi Amor" (Orlando de la Rosa), e as suingantes "Tal Vez"
(Juan Formell) e "Só Vendo que Beleza (Marambaia)" (Rubens
Campos/Henricão).
"Há blocos: canções de ninar, palavras, as dançantes, a roça... É
característico de um encontro", diz Bethânia. Assim, "Lacho" (Facundo
Rivero/Juan Pablo Miranda) se encaixa com "Menino Grande" (Antonio
Maria), "Palabras" (Marta Valdés) com "Palavras", e "Arrependimento"
(Fernando César/Dolores Duran) com "Mil Congojas" (Juan Pablo Miranda),
por exemplo.
Para as duas, a afinidade entre as músicas (ou as culturas)
brasileira e cubana é natural.
"Temos em comum o temperamento, o sangue quente. O amor brasileiro
não é igual a outros amores. Em outras partes do mundo, os amores são
mais frios", ri Omara. Ela deve saber do que fala.
Aos 77 anos, passa a maior parte do ano viajando para cantar -ao
contrário de Bethânia, 61, que diz não gostar de avião, hotel e
restaurante-, e ainda não cogita uma aposentadoria em Havana.
Símbolo nacional, Omara diz não temer o futuro de Cuba com a renúncia
de Fidel Castro ao comando do país após 49 anos no poder.
"É um homem que trabalhou muito e não pensou em se cuidar. Chegou o
momento de descansar. Outro está ocupando seu lugar e a vida continua,
nosso barquinho segue navegando. O futuro é amanhã. O presente é hoje.
Queremos a paz", afirma a cantora.