Lauro Lisboa Garcia, de O Estado de
S. Paulo
Pouca gente em São Paulo já ouviu falar da baiana
Marcia Castro, mas é para cá que ela vai se mudar para investir na
carreira. É bom para a cidade, que tem gerado pencas de cantoras
mimadas que não fazem a menor diferença. Marcia chega com um
trabalho de estréia promissor, o álbum Pecadinho
(independente), em que expressa forte personalidade. Na terça-feira,
4, a cantora iniciou temporada de shows de
lançamento do CD no Teatro do Crowne Plaza, onde canta nas próximas
três terças-feiras.
Por meio da boa música de Tom Zé, Jorge Mautner,
Zeca Baleiro, Roque Ferreira, Sérgio Sampaio, Itamar Assumpção, Tuzé
de Abreu e outros "marginais", ela mostra na voz potente o que a
Bahia pop tem de bom. Mesmo que parte das canções não seja de origem
baiana, nem ela siga modelos convencionais, sua identidade sonora
não nega. A divertida Barraqueira (Manuela Rodrigues) tem
um pé na batida orgânica do samba-de-roda. O CD abre e fecha com
outros dois ritmos nordestinos atualizados, Frevo (Pecadinho)
e o xote O Céu Azul, ambas de Tuzé de Abreu. A primeira é
uma parceria com Tom Zé. A segunda é cantada a capela, com a cantora
fazendo várias vozes. Nestas e em outras o senso de humor é tão
relevante quanto a diversidade de soluções.
"A música baiana está inserida naturalmente no meu
trabalho, mas não como bandeira. Sou uma mutante absoluta, minha
formação musical é muito diversa", diz. "Cresci ouvindo jazz e MPB
com meu pai, na adolescência comecei a gostar de rock e conheci o
repertório erudito na escola de música." A baianidade passa pelo
filtro dessa mistura, e sensualidade faz parte. "É como se fosse um
jeito de dividir o ritmo, que está impresso no nosso corpo, na nossa
voz."
Marcia, de 29 anos, primeiro avançou as fronteiras
da Bahia ao montar o repertório. A idéia inicial era fazer um CD só
de compositores baianos "não muito gravados". Em contrapartida, não
queria posar de guardiã do ineditismo. Ela não gosta de ser chamada
de "alternativa", acha pejorativo, prefere "independente". Mas seu
gosto "um pouco à margem", pelo modo de se expressar com
irreverência, acabou conduzindo-a para o lado B daqueles
"alternativos", alguns já tachados de "malditos".
Difícil de digerir? Nada. Marcia deita e rola
sobre esse material com resultado vibrante, na interpretação e na
sonoridade. Boa parte dos créditos vai para Luciano Salvador Bahia
(autor do reggae Queda), que assina os arranjos, a direção
e a produção musical, além de tocar violão e fazer as programações
eletrônicas no CD. Os convidados também fazem diferença. Zélia
Duncan aparece em duo vocal com Marcia em Barulho, outro
belo samba do manancial de Roque Ferreira, que aproximou as
cantoras. Arto Lindsay (guitarra) em Medo (J.Velloso) e o
percussionista Ramiro Musotto na divertida Cá Tu, Cá Eu
(Jarbas Bittencourt/André Simões/Karina de Almeida) imprimem toques
experimentais. O inusitado a cada faixa e a diversidade rítmica
(rock incluído), com uma certa unidade, são pontos de atração. Mas
também é o repertório, que tem inédita de Zeca Baleiro, o sambalanço
Nega Neguinha, feito na medida para Marcia, e outras
pedradas certeiras.
Marcia só pôde lançar Pecadinho porque
seu projeto venceu em 2006 o Prêmio Braskem de Cultura e Arte,
importante suporte para a música independente, que já contemplou
Abre Caminho, de Mariene de Castro. Lindsay, Musotto e
Bittencourt foram os jurados que votaram em Marcia, o que gerou
polêmica. "Um músico de Salvador resolveu me denunciar para a
imprensa, suspeitando de fraude. Mas como a denúncia era infundada,
o assunto morreu", conta. "Acontece que os convidei para participar
do disco só depois. Eles até fizeram ressalvas por causa do prêmio.
Achei que se eles escolheram o meu trabalho é porque deviam ter
alguma afinidade." Controvérsias à parte, ela acertou na proposta.
Como outros baianos arretados - vide Rebecca Mata,
Mariene de Castro, Vânia Abreu, Retrofoguetes, Péri, Lucas Santtana
-, Marcia também abre alas pelas vias tortas e pedregosas de quem
vai na contramão do trio elétrico. "A régua e o compasso a Bahia
realmente dá, mas se projetar a partir de Salvador, para quem não
faz música comercial de entretenimento, é muito complicado", diz.
Antes de partir para carreira-solo como cantora,
aos 18 anos, Marcia, que também toca violão e estuda o instrumento
desde os 11 anos, atuou em espetáculos musicais. "Mas sempre como
‘cantriz’, nunca fui atriz de teatro." A experiência contribuiu para
se desinibir no palco. Antes era ligeiramente tímida. A temporada de
shows em São Paulo é outro abre-caminho. Aqui, ela vai estudar canto
com Cida Moreira, mais uma "alternativa" no melhor sentido.