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 Identidades desiguais

 

 

Herom Vargas, autor de Hibridismos Musicais de Chico Science & Nação Zumbi
 

Livro discute o manguebeat e estimula a noção do hibridismo dentro de um mundo globalizado onde as fronteiras estão perdendo seus contornos nítidos

Francisco Quinteiro Pires

Em 2 de fevereiro de 1997, Chico Science, líder do grupo Nação Zumbi, morreu num acidente automobilístico. Iniciava-se com a fatalidade o fim do manguebeat, movimento artístico que mudou o panorama cultural do Recife e cujos efeitos permanecem até hoje na cultura pernambucana. No fim do século 20, as músicas do Chico Science & Nação Zumbi (CSNZ), que misturavam elementos regionais e globalizados em sua estrutura, desafiavam o racionalismo europeu e, por tabela, o exercício obrigatório de classificar, organizar, dividir e excluir os objetos do mundo.

Mais um exemplo cultural, vindo do Brasil, depois da bossa nova e do tropicalismo, de que a razão demonstra sérias dificuldades para entender uma realidade cultural cambiante e móvel, em que matéria-prima e produto se baralham. Pode estar aí, nessa problemática, a chave para entender os rumos de um mundo globalizado em que identidades e fronteiras perdem contornos nítidos. Esse é o tema de Hibridismos Musicais de Chico Science & Nação Zumbi, de Herom Vargas. Herom analisa o processo de hibridismo nas composições dos CDs do CSNZ lançados quando Chico era vivo - Da Lama ao Caos e Afrociberdelia.

Quando lançou o manifesto Caranguejos Com Cérebro, em 1991, Fred Zero Quatro, do grupo Mundo Livre S/A, um dos artífices do manguebeat, trabalhou a idéia da fertilidade existente no encontro da produção musical pop com a regional, segundo Herom Vargas. A metáfora dessa síntese se dava no mangue - as águas do rio e do mar resultam num dos ecossistemas mais férteis do planeta - ou na imagem de 'uma antena parabólica na lama'.

Esse ideário tinha um alvo claro: o movimento armorial, engendrado nos anos 1970 e liderado pelo escritor paraibano Ariano Suassuna. 'O mangue foi uma reação radical aos armoriais, ele se tornou uma resistência a um ambiente completamente hostil a qualquer coisa contemporânea', diz Fred.

Os armoriais propunham resgatar, em âmbito erudito, a cultura do sertão, cujos elementos vindos da Península Ibérica - as influências cristãs e mouras - se fundiam aos indígenas e se preservavam em estado essencial, por estarem longe do litoral onde se faz propício o contato com o exterior. Os armoriais viam na mestiçagem o mito de origem da cultura genuinamente brasileira, e não um fenômeno em processo, permeável a mudanças.

A hibridação cultural é, nesse caso, um movimento de formação: a antropofagia existe somente no berço, onde se formou a identidade nacional para se manter intocável. Essa perspectiva, defende Herom Vargas, privilegia o que há de estável nas manifestações culturais, classificando influências originárias de fontes urbano-industriais como desordenadoras, além de alienígenas. Essa visão norteou as políticas públicas de Pernambuco a favor da cultura erudita e folclórica dos armoriais.

Os jovens dispostos a criar, no espaço urbano, uma música popular aliada a elementos do rap e do rock eram relegados. A noção desses jovens sobre o conceito de nacionalidade era mais fluente ou, por outra, menos sectária; eles transitavam na esteira antropofágica da bossa nova (anos 1950) e do tropicalismo (anos 1960), em que a identidade está em constante desenvolvimento, para além de um berço essencial ou de uma tradição acabada.

Ex-integrante do Quinteto Armorial, braço musical do movimento que resgatou instrumentos como a rabeca e o marimbau, o multiinstrumentista Antonio Nóbrega alerta para o erro de colocar num mesmo patamar de comparação universos diferentes. 'É uma visão distorcida que associa instrumento de raiz e música de câmera a coisa velha e reacionária', ele diz. Nóbrega admite que a sonoridade do mangue é mais atual por se manifestar em bases eletrônicas. E ela se transformou em um novo paradigma, segundo Fred Zero Quatro. 'Antes os poderes públicos viravam as costas para a novidade, mas hoje a preferência é dada a eventos herdeiros do mangue, como o Rec Beat', ele diz.

O novo modelo musical surgiu quando Chico Science & Nação Zumbi fez o amálgama entre o baque (batida) sincopado da alfaia de maracatu e a textura sonora distorcida de uma guitarra elétrica e entre o canto com a cadência da embolada e o canto com a cadência do rap.

'E tudo isso é candomblé', diz Jorge Mautner. O tropicalista faz essa afirmação generalizante porque é fundamental entender a influência dos ritmos africanos na música brasileira (e também latino-americana). Segundo Herom, a música ocidental simplificou o ritmo ao reduzi-lo ao metro regular e contínuo, enquanto as músicas africanas sujeitaram a melodia ao ritmo. Essas duas formas de fazer música - a cadência tonal ocidental e os modelos rítmicos africanos - se encontraram e se recriaram no Novo Mundo, nome dado pelos europeus ao continente americano na época dos descobrimentos.

A síncope - fenômeno em que o som é articulado na parte fraca do tempo, prolongando-se pela parte forte seguinte - se torna o grande símbolo dessa dinâmica híbrida nas Américas. Nesse caso, afirma Herom Vargas, a lógica não é binária ou excludente. Não é a criação de um novo cânone, como fez Arnold Schoenberg ao propor o atonalismo no lugar do sistema de tonalidades, preservando com a nova proposta a tradição racionalista, que transita entre respeitar ou destruir um parâmetro obrigatório e que exclui o diferente como bárbaro ou primitivo. (No dicionário, híbrido também significa anormal, anômalo, disparatado).

O Novo Mundo mostra ao racionalismo ocidental que os processos podem ocorrer no tempo e em várias direções, ruindo a percepção de que as estruturas são deterministas e objetivas. Ele lança um desafio ao processo de sistematização pelo qual a música ocidental veio passando desde o Renascimento, há mais de cinco séculos.

Assim, o conceito de identidade implode diante da criação de novos fragmentos sonoros. 'A intensificação das hibridações torna inconsistentes os fundamentalismos identitários, que continuam a existir porque a afirmação enérgica de identidades nacionais ou étnicas é útil para reivindicar direitos', diz Néstor García Canclini. 'Mas hoje não faz mais sentido conceber o trabalho dos antropólogos como o resgate de identidades ou a defesa de sua pretensa pureza', completa.

Autor de Culturas Híbridas - Estratégias Para Entrar e Sair da Modernidade (esgotado), o antropólogo argentino radicado no México faz a distinção de três expressões - hibridação, hibridismo e interculturalidade - para entender amálgamas de várias ordens: religiosa, étnica, literária, musical, gastronômica, etc. 'Hibridação remete a um processo aberto; hibridismo sugere um estado social e cultural; e interculturalidade é mais ampla e específica, por considerar não só as fusões, mas outras interações entre culturas, como o conflito, a discriminação e a combinação sem hibridações', ele diz.

Canclini lembra que recentemente a Unesco aprovou a Convenção Sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, mas a urgência está em criar a regulação da interculturalidade. O antropólogo diz que o aumento das imigrações e o fenômeno das fronteiras cada vez mais borradas e instáveis exigem de Estados e sociedades a busca de um convívio pacífico por meio da compreensão desses contatos e mesclas. 'É necessário mais do que a tolerância, essa virtude displicente do humanismo antigo.' A multiculturalidade será a regra. E o futuro do Brasil, como demonstraram de modo consciente ou não as obras de Chico Science & Nação Zumbi, pode estar no entendimento dessas diferenças e de suas sínteses possíveis.

(© Estadão)

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