Transformações
históricas do País não permitem mais a aplicação do rótulo a
Nelson Rodrigues
Ricardo Lísias
Nelson Rodrigues deve ser um dos autores mais rotulados da literatura
brasileira. De dramaturgo brilhante a jornalista esportivo de raro talento,
passando pela alcunha de talentoso romancista bissexto, de todas, a marca
mais repetida é a de homem reacionário. Quanto ao seu teatro, antes de tudo
genial, não é possível encontrar, com exceção de alguns poucos traços muito
pálidos, qualquer sinal de conservadorismo. Ao contrário, como toda obra
estética verdadeiramente grandiosa, peças como Beijo no Asfalto e Vestido de
Noiva, por remexerem com toda a tradição, terminam ocupando um lugar
revolucionário, por mais que a palavra fizesse tremer os ossos do
dramaturgo.
O jornalismo esportivo, embora também sempre político, está em outro plano e
a prosa de ficção, por melhor que seja, não ocupa um lugar central na obra
de Nelson Rodrigues. Desse modo, sobra a crônica. E foi nesse gênero, tão
bem praticado no Brasil, que o grande dramaturgo se manifestou politicamente
e deu mil e uma oportunidades, e mais dez, para ser classificado de
reacionário.
A Cabra Vadia, volume que acaba de sair reunindo os textos entre o final de
1968 e o ano seguinte, é a mais ilustrativa de todas as suas obras, falando
do ponto de vista político. Nelson Rodrigues, além de tudo, escrevia na
época em que o regime militar recrudescia de vez e soltava as rédeas, já bem
frouxas, da repressão, embora tentando maquiar tudo debaixo de um Congresso
com oposição fantoche e de leis meio cínicas. Como George Bush faz hoje.
É inegável que, em 1969, Nelson Rodrigues toma todas as opções erradas que
podia e, nestas crônicas, agride quem naquele momento fazia a única coisa
possível: oposição ao regime militar. Sobram farpas para os padres
engajados, os estudantes em passeata e a classe intelectual, entrando aqui
os artistas, os escritores e os professores universitários. Para Nelson
Rodrigues, um bando de bestas.
Mas eu acho prudente ir devagar com julgamentos muito ingênuos. A primeira
coisa que cabe dizer é que os textos são muito bem escritos e obedecem a um
esquema rigoroso de composição, hoje quase perdido no jornalismo. A
estrutura que Nelson Rodrigues adota é fixa. Em primeiro lugar, a crônica
apresenta alguns dados, no mais das vezes conhecidos de todos, sobre a
questão que pretende discutir. Depois, chega a uma conclusão simples,
aparentemente resultado de algum raciocínio direto a partir dos dados
apresentados, mas falsa. Então, o cronista lança novos argumentos, esses
acessíveis a poucos, o que o coloca, portanto, em um lugar central. Disso,
ele tira uma conclusão inesperada.
O grau de interesse das crônicas é variado. Às vezes, tudo é superficial e
manipulador demais, como quando Nelson Rodrigues afirma que os nazistas
jamais molestaram qualquer obra de arte. Redonda mentira, como ele mesmo
sabia. Alguns textos são divertidos, como aqueles em que descreve seus
encontros com os “grã-finos” brasileiros, desde aquela época superficiais e
bregas. Há alguns momentos de lirismo e a crônica dedicada ao irmão Mário
Filho é muito comovente. De resto, em muitas delas Nelson Rodrigues não se
cansa de tentar defender o indefensável.
Eu acredito, porém, que qualquer escritor com um mínimo de consciência deva
discutir questões relevantes para o seu próprio tempo, muito embora às vezes
isso seja constrangedor. No caso, é muito constrangedor, mas vou cumprir
minha obrigação.
Pois bem, em 1969 suas crônicas podiam ser lidas como reacionárias.
Atualizando-as para 2008, porém, não acho que Nelson Rodrigues possa, com
tanta segurança, continuar sendo chamado de conservador. Exemplifico: à
época, ele criticava vários setores intelectuais e artísticos. É fácil hoje
ver, mesmo entre escritores das novas gerações, declarações absurdas como
“minha arte não tem ideologia”, “sou um autor apolítico”, etc., como se
fosse possível. Não é, e aqui sequer estou falando de escritores
confessadamente a favor de pessoas como George Bush. Minha Nossa Senhora...
Continuando, de fato, a classe intelectual, na maior parte, fez o que devia
em 1969: combateu o regime militar. Hoje, com algumas exceções, esqueceu-se
de que nem mesmo os arquivos desse período foram abertos. Sem falar que
instalações acadêmicas, com lixeiras muito luxuosas, atualmente viraram caso
de polícia!
Por fim, eu queria lembrar o detalhe mais desagradável de todos: em A Cabra
Vadia, Nelson Rodrigues critica duramente o que, à época, era a chamada
esquerda. Essas pessoas chegaram agora ao poder, 40 anos depois, e ainda que
tenham oferecido às classes mais baixas alguma melhoria, dirigem um país em
que os bancos, por exemplo, anunciam todo dia lucros estratosféricos. A
coisa começou com a centro-direita e continua com a esquerda.
Peço desculpas pela conclusão e, tocado, admito que ela me faz sofrer: em 40
anos um baita reacionário, por conta do percurso histórico e do que muita
gente se permitiu, acaba deixando de merecer esse rótulo diante do estado a
que as coisas chegaram e da indiferença como são vistas. Não consigo pensar
nada mais triste.
Ricardo Lísias é escritor, autor de Anna O e Outras Novelas, entre outros
livros
A Cabra Vadia, Nelson
Rodrigues, Agir, 472 págs., R$ 54,90
(©
Estadão)
Nelson Rodrigues
“A cabra vadia”
Antigamente, o idiota era o
idiota. Nenhum ser tão sem mistério e repito: — tão cristalino. O sujeito o
identificava, a olho nu, no meio de milhões. E mais: — o primeiro a
identificar-se como tal era o próprio idiota. Não sei se me entendem. No
passado, o marido era o último a saber. Sabiam os vizinhos, os credores, os
familiares, os conhecidos e os desconhecidos. Só ele, marido, era
obtusamente cego para o óbvio ululante.
Sim, o traído ia para as
esquinas, botecos e retretas gabar a infiel: — “Uma santa! Uma santa!”. Mas
o tempo passou. Hoje, dá-se o inverso. O primeiro a saber é o marido. Pode
fingir-se de cego. Mas sabe, eis a verdade, sabe. Lembro-me de um que sabia
endereço, hora, dia etc. etc.
Pois o idiota era o primeiro
a saber-se idiota. Não tinha nenhuma ilusão. E uma das cenas mais fortes que
vi, em toda a minha infância, foi a de uma autoflagelação. Um vizinho
berrava, atirando rútilas patadas: — “Eu sou um quadrúpede!”. Nenhuma
objeção. E, então, insistia, heróico: — “Sou um quadrúpede de 28 patas!”.
Não precisara beber para essa extroversão triunfal. Era um límpido,
translúcido idiota.
E o imbecil como tal se
comportava. Nascia numa família também de imbecis. Nem os avós, nem os pais,
nem os tios, eram piores ou melhores. E, como todos eram idiotas, ninguém
pensava. Tinha-se como certo que só uma pequena e seletíssima elite podia
pensar. A vida política estava reservada aos “melhores”. Só os “melhores”,
repito, só os “melhores” ousavam o gesto político, o ato político, o
pensamento político, a decisão política, o crime político.
Por saber-se idiota, o
sujeito babava na gravata de humildade. Na rua, deslizava, rente à parede,
envergonhado da própria inépcia e da própria burrice. Não passava do quarto
ano primário. E quando cruzava com um dos “melhores”, só faltava lamber-lhe
as botas como uma cadelinha amestrada. Nunca, nunca o idiota ousaria ler,
aprender, estudar, além de limites ferozes. No romance, ia até ao Maria,
a desgraçada.
Vejam bem: — o imbecil não
se envergonhava de o ser. Havia plena acomodação entre ele e sua
insignificância. E admitia que só os “melhores” podem pensar, agir, decidir.
Pois bem. O mundo foi assim, até outro dia. Há coisa de três ou quatro anos,
uma telefonista aposentada me dizia: — “Eu não tenho o intelectual muito
desenvolvido”. Não era queixa, era uma constatação. Santa senhora! Foi
talvez a última idiota confessa do nosso tempo.
De repente, os idiotas
descobriram que são em maior número. Sempre foram em maior número e não
percebiam o óbvio ululante. E mais descobriram: — a vergonhosa inferioridade
numérica dos “melhores”. Para um “gênio”, 800 mil, 1 milhão, 2 milhões, 3
milhões de cretinos. E, certo dia, um idiota resolveu testar o poder
numérico: — trepou num caixote e fez um discurso. Logo se improvisou uma
multidão. O orador teve a solidariedade fulminante dos outros idiotas. A
multidão crescia como num pesadelo. Em quinze minutos, mugia, ali, uma massa
de meio milhão.
Se o orador fosse Cristo, ou
Buda, ou Maomé, não teria a audiência de um vira-lata, de um gato vadio.
Teríamos de ser cada um de nós um pequeno Cristo, um pequeno Buda, um
pequeno Maomé. Outrora, os imbecis faziam platéia para os “superiores”.
Hoje, não. Hoje, só há platéia para o idiota. É preciso ser idiota
indubitável para se ter emprego, salários, atuação, influência, amantes,
carros, jóias etc. etc.
Quanto aos “melhores”, ou
mudam, e imitam os cretinos, ou não sobrevivem. O inglês Wells, que tinha,
em todos os seus escritos, uma pose profética, só não previu a “invasão dos
idiotas”. E, de fato, eles explodem por toda parte: são professores,
sociólogos, poetas, magistrados, cineastas, industriais. O dinheiro, a fé, a
ciência, as artes, a tecnologia, a moral, tudo, tudo está nas mãos dos
patetas.
E, então, os valores da vida
começaram a apodrecer. Sim, estão apodrecendo nas nossas barbas
espantadíssimas. As hierarquias vão ruindo como cúpulas de pauzinhos de
fósforos. E nem precisamos ampliar muito a nossa visão. Vamos fixar apenas o
problema religioso. A Igreja tem uma hierarquia de 2 mil anos. Tal
hierarquia precisa ser preservada ou a própria Igreja não dura mais quinze
minutos. No dia em que um coroinha começar a questionar o papa, ou Jesus, ou
Virgem Maria, será exatamente o fim.
É o que está acontecendo.
Nem se pense que a “invasão dos idiotas” só ocorreu no Brasil. Se fosse uma
crise apenas brasileira, cada um de nós podia resmungar: —
“Subdesenvolvimento” — e estaria encerrada a questão. Mas é uma realidade
mundial. Em que pese a dessemelhança de idioma e paisagem, nada mais
parecido com um idiota do que outro idiota. Todos são gêmeos, estejam uns
aqui, outros em Cingapura.
Mas eu falava de que mesmo?
Ah, da Igreja. Um dia, ao voltar de Roma, o dr. Alceu falou aos jornalistas.
E atira, pela janela, 2 mil anos de fé. É pensador, um alto espírito e,
pior, uma grande voz católica. Segundo ele, durante os vinte séculos, a
Igreja não foi senão uma lacaia das classes dominantes, uma lacaia dos
privilégios mais hediondos. Portanto, a Igreja é o próprio Cinismo, a
própria Iniqüidade, a própria Abjeção, a própria Bandalheira (e vai tudo com
a inicial maiúscula).
Mas quem diz isso? É o
Diabo, em versão do teatro de revista? Não. É uma inteligência, uma cultura,
um homem de bem e de fé. De mais a mais, o dr. Alceu tinha acabado de beijar
a mão de Sua Santidade. Vinha de Roma, a eterna. E reduz a Igreja a uma vil
e gigantesca impostura. Mas se ele o diz, e tem razão, vamos, já, já, fechar
a Igreja e confiscar-lhe as pratas.
Cabe então a pergunta: — “O
dr. Alceu pensa assim?”. Não. Em outra época, foi um dos “melhores”. Mas
agora é preciso adular os idiotas, conquistar-lhes o apoio numérico. Hoje,
até o gênio se finge imbecil. Nada de ser gênio, santo, herói ou
simplesmente homem de bem. Os idiotas não os toleram. E as freiras põem
short, maiô e posam para Manchete como se fossem do teatro rebolado.
Por outro lado, d. Hélder quer missa com reco-reco, tamborim, pandeiro e
cuíca. É a missa cômica e Jesus fazendo passista de Carlos Machado. Tem
mais: — o papa visitará a América Latina. Segundo os jornais, teme-se que o
papa seja agredido, assassinado, ultrajado etc. etc. A imprensa dá a notícia
com a maior naturalidade, sem acrescentar ao fato um ponto de exclamação.
São os idiotas, os idiotas, os idiotas.
[19/8/1968]
In
Rodrigues, Nelson. A cabra vadia: novas confissões. São Paulo: Cia
das Letras, 1995, p. 210. |