Cinval tem
uma discografia de 19 álbuns, uma caixa retrospectiva com três CDs, mas
continua um outsider na cena musical pernambucana
José Teles
teles@jc.com.br
Pigdigigarêlêpó. Não adianta ir pesquisar no Google. A palavra não
existe em idioma nenhum e não significa absolutamente nada.
Pigdigigarêlêpó foi inventada pelo cantor, compositor e percussionista
Cinval: “Eu estava procurando criar uma palavra, para fazer uma música
em cima dela. Foi surgindo, e daí fiz a música. Não quer dizer coisa
alguma, é só o som mesmo”, explica Cinval. Pigdigigarêlêpó miscigenação
é o título do 19º disco que ele lança em nove anos, sem contar com a
caixa retrospectiva The sounds of science, com três CDs e 54 faixas. O
primeiro disco que Cinval e o grupo Coco Grude gravaram em um estúdio
profissional, no caso, o Fábrica. Um luxo proporcionado por recursos do
Funcultura.
Os 18
discos anteriores foram feitos no quitinete no qual Cinval e a mulher
moram, na Conde da Boa Vista. No minúsculo apartamento, ele guarda seu
equipamento, ou seja, um teclado Casio, com 21 anos de uso, instrumentos
de percussão, um gravador de quatro canais, aparelho de som, além de,
entre outras coisas, sua coleção de cerca de três mil LPs: “Dei um jeito
de não me desfazer dos discos, eles estão amontoados em pilhas que
chegam quase até o teto”, diz Cinval. Daqueles velhos álbuns, onde se
encontram do mais tradicional blues, ao mais balançado funk, ele vem
extraindo as elucubrações que povoam sua considerável discografia,
iniciada com Falando nas ruas, em 1999.
Cinval
sempre ouviu muita música, mas só começou a tocar e a compor em 1987:
“Um amigo meu, Paulo, me chamou para tocar com ele. Comprei umas
percussões e comecei. Na época do Querosene, eu fazia umas músicas,
mostrava para Alfaia (baixista do grupo) e ele dizia: tem nada a ver
não, doido. Estas músicas são mais doidas do que tu, estão para lá de
Tom Zé. E era por aí mesmo”, conta. A Querosene Jacaré debandou depois
da primeira, e única, turnê ao exterior, em 2002. Tocaram no Texas, no
Arizona e no Novo Mexico, onde Cinval aprontou uma das suas. Passou dois
dias na farra com um brasileiro que conheceu em Albuquerque, sem que os
outros integrantes da banda soubessem do seu paradeiro: “Nem lembro o
nome do cara, sei que foram dois dias de muita cana. Os caras do
Querosene ficaram arretados porque não participei do principal evento da
turnê, um negócio meio Abril pro Rock”. Na volta dos EUA, o baterista
Adelson Bala e Alfaia se diziam desiludidos com os rumos da banda e
resolveram ir para São Paulo, foi o fim de uma das melhores bandas
pernambucanas dos anos 90, famosa pelos shows cheios de adrenalina, com
Ortinho como vocalista, e pelas brigas homéricas entre os integrantes:
“Não teve uma maior do que a outra, a gente brigava todo dia”, revela
Cinval.
Assim
como não é exatamente um modelo de ortodoxia, seu processo de gravar é
menos ainda. O gravador ele comprou ainda no tempo em que tocava com a
Querosene Jacaré, banda da qual foi um dos fundadores. As músicas que
não encaixavam na Querosene ele resolveu gravar em casa mesmo. Não era
fácil: “No Casio eu fazia as programações, mas o gravador não balanceava
os graves e os agudos. Para o pandeiro, por exemplo, não ficar muito
agudo, eu tocava ao contrário, com o couro para baixo, evitando que as
rodelas fizessem muito barulho. Aos poucos você vai aprendendo. Tem uma
música em que peguei uma garrafa PET e fiquei fazendo os acordes e
batendo com ela nas cordas, dava um som bem grave como um baixo. Quando
precisava de eco gravava no banheiro”, explica sua técnica de gravação.
A forma
de compor de Cinval também não segue regras estabelecidas. É andando em
coletivos que lhe vem inspiração para escrever as letras, que geralmente
faz primeiro do que as melodias. A seu modo, ele é um cronista do
cotidiano do Centro da cidade. O desativados ônibus elétricos vivem em
suas canções, como acontece em Banana elétrica (pão Recife): “É uma
caixa de ferro/é um pão Recife sem janelas/debaixo de dois fios/guiado
em paralelas”: “Já moro há muitos anos no Centro que é cheio de coisas.
Ando muito pelas ruas, vou ali pela Rua das Calçadas e fico vendo as
pessoas, o movimento, o que o pessoal come, fala. Se eu viajo de ônibus,
escrevo o que me vem na cabeça, depois ajeito em casa”, explica.
Ele é o
movimento do eu sozinho. Não teoriza sobre nada, não se espelhou em
nenhum outro artista, apenas nos muitos sons que tem ouvido. Cinval tem
hora para chegar em bar, geralmente já traz o tira-gosto,
invariavelmente alguma fruta, na maioria das vezes serigüelas. Não tem
hora para ir embora: “Já fiz música biritado, mas fica muito troncha e
refaço ou deixo para lá”, diz ele. Um total outsider dentro das cenas
musicais pernambucanas, Cinval é visto por alguns como “folclórico” ou
como o “maluco de plantão”. “Devem achar minha música estranha, não sei.
O que sei é que gosto de fazer a música que me sai da cabeça. Não me
agrada são modismos, essa coisa de vamos fazer samba porque a onda agora
é samba. Faço um pouco de tudo, mas tudo vem dos discos que ouvi durante
a minha vida”.
Ele se
sustenta com os poucos shows que faz e dos poucos discos que vende: “A
coisa melhorou um pouco porque a mulher arranjou um trampo, mas não está
muito bom não. Engraçado é que eu vendia bem os primeiros discos que eu
mesmo fazia. Eram 15, 20 por mês. Agora, vou nas lojase são quatro ou
cinco. Teve uma gravadora do Rio que queria o disco Vigiando a tanajura,
mas não aceitou porque ele é em CD-R, com exceção deste novo, todos são
em CD-R, aí fica difícil vender para lojas lá fora”, lamenta Cinval, que
já entrou em duas coletâneas Nordeste atômico, produzidas para o mercado
japonês pelo produtor Makoto Kubota: “Makoto tem interesse em lançar
meus discos no Japão, vamos ver no que vai dar”, diz ele, com jeito de
que está mais preocupado com a safra de serigüelas e cajás, do que com o
mercado fonográfico nipônico: “Não quero sair daqui, não. Só se for para
fazer um show e voltar. Já estou com 51 anos, tenho mais idade para
estar aventurando por aí não”.
DISCO
Para se
ouvir um disco de Cinval é preciso deixar de lado conceito e convenções.
Já o comparei, numa matéria para o Caderno C, com Moondog, lendário
músico de rua, cego, que se vestia de viking e fazia uma música que não
se encaixava em nenhum figurino. A diferença é que Moondog não era um
leigo, e seu trabalho era erudito. Cinval é intuitivo nas letras e segue
o ouvido nas melodias e grooves. Se nos outros discos a sonoridade era
rudimentar, a qualidade de Pigdgiigarêlépó miscigenação mostra como é
amplo o universo sonoro dele. É Cinval quem vai sugerindo determinados
timbres ou instrumentos aos músicos convidados que formam o Coco Grude.
Estão com ele nesta empreitada uma pá de gente, Zé Brown, Silvério
Pessoa, Dengue, Alex Corezzi, Daniel Malcriado, Ciano Alves, Siba, e até
um poeta da Geração 65, Domingo Alexandre, que teve musicado três poemas
por Cinval.
Não é em
todas as faixas que Cinval acerta. Por exemplo, Caboclo de lança
(maracatu baitadiferença) soa repetitiva, mas quando ele acerta é no
alvo, e acerta quase todas. SoulfunkyBrown e Problema de visão são duas
delas, de balanço irresistível. Ambas haviam sido gravadas antes, mas só
agora é revelado todo seu potencial. Embora também um homem de livros e
estudos, Cinval consegue ser sintético e moderno, lembrando o Caetano
Veloso de meados dos anos 70, como em O craque da bola:
“Chiclete/Coca-Cola/craque/craque da bola/Van Gogh não enrola/mas se/vai
embora/agora/ não vá embora/mas se/vai embora/agora não vá embora/mas
se”. Cinval Coco Grude é um Ovni que merece um contato imediato de
terceiro grau, mesmo sob o perigo de se ser abduzido.