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 Um músico que nunca pára

 

 

Jorge Amado
 

Cinval tem uma discografia de 19 álbuns, uma caixa retrospectiva com três CDs, mas continua um outsider na cena musical pernambucana

José Teles
teles@jc.com.br

Pigdigigarêlêpó. Não adianta ir pesquisar no Google. A palavra não existe em idioma nenhum e não significa absolutamente nada. Pigdigigarêlêpó foi inventada pelo cantor, compositor e percussionista Cinval: “Eu estava procurando criar uma palavra, para fazer uma música em cima dela. Foi surgindo, e daí fiz a música. Não quer dizer coisa alguma, é só o som mesmo”, explica Cinval. Pigdigigarêlêpó miscigenação é o título do 19º disco que ele lança em nove anos, sem contar com a caixa retrospectiva The sounds of science, com três CDs e 54 faixas. O primeiro disco que Cinval e o grupo Coco Grude gravaram em um estúdio profissional, no caso, o Fábrica. Um luxo proporcionado por recursos do Funcultura.

Os 18 discos anteriores foram feitos no quitinete no qual Cinval e a mulher moram, na Conde da Boa Vista. No minúsculo apartamento, ele guarda seu equipamento, ou seja, um teclado Casio, com 21 anos de uso, instrumentos de percussão, um gravador de quatro canais, aparelho de som, além de, entre outras coisas, sua coleção de cerca de três mil LPs: “Dei um jeito de não me desfazer dos discos, eles estão amontoados em pilhas que chegam quase até o teto”, diz Cinval. Daqueles velhos álbuns, onde se encontram do mais tradicional blues, ao mais balançado funk, ele vem extraindo as elucubrações que povoam sua considerável discografia, iniciada com Falando nas ruas, em 1999.

Cinval sempre ouviu muita música, mas só começou a tocar e a compor em 1987: “Um amigo meu, Paulo, me chamou para tocar com ele. Comprei umas percussões e comecei. Na época do Querosene, eu fazia umas músicas, mostrava para Alfaia (baixista do grupo) e ele dizia: tem nada a ver não, doido. Estas músicas são mais doidas do que tu, estão para lá de Tom Zé. E era por aí mesmo”, conta. A Querosene Jacaré debandou depois da primeira, e única, turnê ao exterior, em 2002. Tocaram no Texas, no Arizona e no Novo Mexico, onde Cinval aprontou uma das suas. Passou dois dias na farra com um brasileiro que conheceu em Albuquerque, sem que os outros integrantes da banda soubessem do seu paradeiro: “Nem lembro o nome do cara, sei que foram dois dias de muita cana. Os caras do Querosene ficaram arretados porque não participei do principal evento da turnê, um negócio meio Abril pro Rock”. Na volta dos EUA, o baterista Adelson Bala e Alfaia se diziam desiludidos com os rumos da banda e resolveram ir para São Paulo, foi o fim de uma das melhores bandas pernambucanas dos anos 90, famosa pelos shows cheios de adrenalina, com Ortinho como vocalista, e pelas brigas homéricas entre os integrantes: “Não teve uma maior do que a outra, a gente brigava todo dia”, revela Cinval.

Assim como não é exatamente um modelo de ortodoxia, seu processo de gravar é menos ainda. O gravador ele comprou ainda no tempo em que tocava com a Querosene Jacaré, banda da qual foi um dos fundadores. As músicas que não encaixavam na Querosene ele resolveu gravar em casa mesmo. Não era fácil: “No Casio eu fazia as programações, mas o gravador não balanceava os graves e os agudos. Para o pandeiro, por exemplo, não ficar muito agudo, eu tocava ao contrário, com o couro para baixo, evitando que as rodelas fizessem muito barulho. Aos poucos você vai aprendendo. Tem uma música em que peguei uma garrafa PET e fiquei fazendo os acordes e batendo com ela nas cordas, dava um som bem grave como um baixo. Quando precisava de eco gravava no banheiro”, explica sua técnica de gravação.

A forma de compor de Cinval também não segue regras estabelecidas. É andando em coletivos que lhe vem inspiração para escrever as letras, que geralmente faz primeiro do que as melodias. A seu modo, ele é um cronista do cotidiano do Centro da cidade. O desativados ônibus elétricos vivem em suas canções, como acontece em Banana elétrica (pão Recife): “É uma caixa de ferro/é um pão Recife sem janelas/debaixo de dois fios/guiado em paralelas”: “Já moro há muitos anos no Centro que é cheio de coisas. Ando muito pelas ruas, vou ali pela Rua das Calçadas e fico vendo as pessoas, o movimento, o que o pessoal come, fala. Se eu viajo de ônibus, escrevo o que me vem na cabeça, depois ajeito em casa”, explica.

Ele é o movimento do eu sozinho. Não teoriza sobre nada, não se espelhou em nenhum outro artista, apenas nos muitos sons que tem ouvido. Cinval tem hora para chegar em bar, geralmente já traz o tira-gosto, invariavelmente alguma fruta, na maioria das vezes serigüelas. Não tem hora para ir embora: “Já fiz música biritado, mas fica muito troncha e refaço ou deixo para lá”, diz ele. Um total outsider dentro das cenas musicais pernambucanas, Cinval é visto por alguns como “folclórico” ou como o “maluco de plantão”. “Devem achar minha música estranha, não sei. O que sei é que gosto de fazer a música que me sai da cabeça. Não me agrada são modismos, essa coisa de vamos fazer samba porque a onda agora é samba. Faço um pouco de tudo, mas tudo vem dos discos que ouvi durante a minha vida”.

Ele se sustenta com os poucos shows que faz e dos poucos discos que vende: “A coisa melhorou um pouco porque a mulher arranjou um trampo, mas não está muito bom não. Engraçado é que eu vendia bem os primeiros discos que eu mesmo fazia. Eram 15, 20 por mês. Agora, vou nas lojase são quatro ou cinco. Teve uma gravadora do Rio que queria o disco Vigiando a tanajura, mas não aceitou porque ele é em CD-R, com exceção deste novo, todos são em CD-R, aí fica difícil vender para lojas lá fora”, lamenta Cinval, que já entrou em duas coletâneas Nordeste atômico, produzidas para o mercado japonês pelo produtor Makoto Kubota: “Makoto tem interesse em lançar meus discos no Japão, vamos ver no que vai dar”, diz ele, com jeito de que está mais preocupado com a safra de serigüelas e cajás, do que com o mercado fonográfico nipônico: “Não quero sair daqui, não. Só se for para fazer um show e voltar. Já estou com 51 anos, tenho mais idade para estar aventurando por aí não”.

DISCO

Para se ouvir um disco de Cinval é preciso deixar de lado conceito e convenções. Já o comparei, numa matéria para o Caderno C, com Moondog, lendário músico de rua, cego, que se vestia de viking e fazia uma música que não se encaixava em nenhum figurino. A diferença é que Moondog não era um leigo, e seu trabalho era erudito. Cinval é intuitivo nas letras e segue o ouvido nas melodias e grooves. Se nos outros discos a sonoridade era rudimentar, a qualidade de Pigdgiigarêlépó miscigenação mostra como é amplo o universo sonoro dele. É Cinval quem vai sugerindo determinados timbres ou instrumentos aos músicos convidados que formam o Coco Grude. Estão com ele nesta empreitada uma pá de gente, Zé Brown, Silvério Pessoa, Dengue, Alex Corezzi, Daniel Malcriado, Ciano Alves, Siba, e até um poeta da Geração 65, Domingo Alexandre, que teve musicado três poemas por Cinval.

Não é em todas as faixas que Cinval acerta. Por exemplo, Caboclo de lança (maracatu baitadiferença) soa repetitiva, mas quando ele acerta é no alvo, e acerta quase todas. SoulfunkyBrown e Problema de visão são duas delas, de balanço irresistível. Ambas haviam sido gravadas antes, mas só agora é revelado todo seu potencial. Embora também um homem de livros e estudos, Cinval consegue ser sintético e moderno, lembrando o Caetano Veloso de meados dos anos 70, como em O craque da bola: “Chiclete/Coca-Cola/craque/craque da bola/Van Gogh não enrola/mas se/vai embora/agora/ não vá embora/mas se/vai embora/agora não vá embora/mas se”. Cinval Coco Grude é um Ovni que merece um contato imediato de terceiro grau, mesmo sob o perigo de se ser abduzido.

(© JC Online)

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