O gramático Evanildo Bechara defende acordo ortográfico, que começa a
vigorar no Brasil nesta semana
SYLVIA COLOMBO
ENVIADA ESPECIAL AO RIO
Evanildo Bechara tinha 11 anos quando cometeu seu primeiro erro de tradução.
Viajando de Pernambuco para o Rio de Janeiro, de navio, o garoto que se
tornaria um dos gramáticos mais famosos do Brasil fez uma parada em
Salvador.Entrou num restaurante e pediu um vatapá. O garçom perguntou
como ele queria o prato. Bechara respondeu: "bem quentinho", como era
costume fazer-se em sua terra para determinar a temperatura da comida.
Acabou tendo de engolir um bocado com muita pimenta. Foi então que as
lágrimas brotaram de seus olhos.
"Aprendi na pele que "bem quentinho", na Bahia, era "bem apimentado". Por
conta desse episódio e de outros que vivi quando minha família me mandou
para o Rio para estudar, passei a me interessar pelas diferenças que a
língua portuguesa tem em diferentes lugares. Aí virei professor, viajei, dei
aulas no exterior, lancei meus livros e cheguei aqui", resume.
Bechara, 80, hoje ocupa a cadeira 33 da Academia Brasileira de Letras,
para a qual foi eleito em 2000, e tem uma dura tarefa pela frente. A partir
de 1º de janeiro, quando as regras do Novo Acordo Ortográfico entrarem em
vigor em oito nações da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, será ele
a autoridade máxima no Brasil para decidir as possíveis querelas e
pendências com relação ao modo como os brasileiros terão de passar a
escrever.
"Não me sinto confortável nessa posição. É muito incômodo. E é claro que
a interpretação que fiz está sujeita a erros. Só não erra quem não faz",
disse em entrevista à Folha, na sede da instituição, no Rio.
As regras têm como objetivo unificar as diferentes grafias que o
português tem nos países em que é língua oficial.
Elas começaram a ser aplicadas em janeiro de
2009, mas as atuais continuarão sendo aceitas até dezembro de 2012.
No caso brasileiro, as principais mudanças serão a eliminação de alguns
acentos e do trema e a adoção de outras regras para a hifenização (leia ao
lado). "Tem gente fazendo tempestade em copo d'água. Já passamos por cinco
reformas e nunca houve um grande trauma. E mais, o Brasil sempre foi quem
mais cedeu até hoje. Nesta reforma, está acontecendo o contrário, os outros
países, Portugal principalmente, é que estão cedendo mais", diz.
De todas as mudanças, as que regulam o uso do hífen têm causado mais
polêmica. Bechara explica que a idéia, de um modo geral, foi a de "suavizar"
sua utilização. "Como um homem comum, que não é um gramático nem tem
formação técnica sobre a língua, pode saber, por exemplo, que uma expressão
é um substantivo que em outros casos pode ter outra função? Ao tirarmos os
hífens, estamos facilitando a sua vida."
Contexto
O gramático explica que o espírito das novas regras é deixar que o
contexto explique aquilo que a ortografia não alcança.
É o caso, por exemplo, da contestada retirada de acento de "pára", do
verbo "parar".
Como diferenciá-lo da preposição "para"? "Bem, quando se diz
"manifestação para avenida", fica bastante claro que se trata do verbo,
porque os outros elementos na frase levam a essa dedução", diz.
O caso dos ditongos que perdem o acento, como "idéia", também causaram
estranhamento. "Não é possível termos duas grafias diferentes para o mesmo
tipo de formação. Por que "aldeia" não tem e "idéia", sim?" Bechara acha que
a retirada do acento não vai confundir, por exemplo, crianças em processo de
alfabetização. "O primeiro aprendizado de uma pessoa é sempre imitativo.
Depois vem a reflexão. Quando ela for aprender a escrever, já saberá a
diferença de pronúncia das duas palavras sem que seja necessário usar um
sinal gráfico."
Para Bechara, a reforma ortográfica é necessária para defender a língua
portuguesa. Trata-se do único idioma falado por um grupo majoritário -mais
de 230 milhões de pessoas- no mundo a ter duas grafias diferentes. "É
essencial que o português se apresente internacionalmente com uma única
vestimenta gráfica. Para manter o prestígio e para que seja melhor ensinado
e compreendido por todos", conclui.