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O Globo
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João Ubaldo Ribeiro
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Crítica/"O Rei da Noite"
Coletânea traz temas ligados à infância, à vida doméstica e aos males
da velhice
ALCIR PÉCORA
ESPECIAL PARA A FOLHA
"O Rei da Noite" reúne 34 crônicas de João Ubaldo Ribeiro, provavelmente
publicadas em suas colunas de "O Globo" e de "O Estado de S. Paulo", com
emendas ou não. Nada digo com segurança, pois a edição não traz nota
bibliográfica a esclarecer as referências a datas e jornais da publicação
original.
Por algum motivo, se achou necessária a firula de pintar de preto as
bordas das páginas, quem sabe para reforçar a noite do título. Não seria
pertinente: os casos das crônicas, longe de invocar negrores noturnos, são
de um humor leve e boa-praça. O conjunto das crônicas pode ser descrito em
cinco temas comuns ao gênero. O primeiro refere impactos da vida de menino e
moço, como desastres de Carnaval; filme proibido; dúvidas sobre a existência
de Papai Noel e a forma de trazer filhos ao mundo; excentricidades de avô; o
surgimento da TV.
Variante adulta da tópica são as trapalhadas domésticas, com casos de
goteiras na casa e de conversas incômodas com os filhos sobre sexo. Outro
assunto do livro é a vida social, incluindo retratos de "celebrities"
amigas, vexames de bêbado, gafes em festas, visita a motel; manhas para sair
sem dinheiro.
Um terceiro tema desfia os males da velhice e se compraz em comentar
exame de próstata, medo da morte, paranoia diante do noticiário e das
viroses, para, enfim, constatar a ideia de que todo envelhecer é apedeuta:
nada aprende, a não ser que é "uma merda". Variante disso é a personificação
do narrador como sujeito antiquado, que, por exemplo, defende a forma das
mulheres violão contra a magreza de hoje; espanta-se com a mania de
plástica, que não deixa ilesa sequer a genitália, e não se cansa de exibir o
mau jeito com computadores. Ainda associada ao tema da senectude está a
revolta contra a ditadura atual da saúde, especificada nas tentativas de
deixar o cigarro, no sofrimento para aderir à prescrição da caminhada, na
experiência odiosa com comida macrobiótica em nome da "qualidade de vida".
Outras crônicas celebram a conversa de bar. Aí, Ubaldo desenvolve temas
relativos à filosofia de corno, ao imaginário da AIDS, aos transtornos da
família moderna ou à vida pós-informática.
O último grande assunto é a vida de escritor. Comenta as doidices da
profissão, as reportagens amalucadas, as participações furadas em
entrevistas na TV, a distância entre o imaginário aventuroso sobre o
escritor e os casos miúdos que pôde viver, sem esquecer um clássico da
crônica de jornal: a falta de assunto, que empurra a carência da matéria
para fora do espaço graças ao espichar do nariz-de-cera. Isto dito, não é
difícil perceber que não se trata de um livro especialmente inspirado, mas
da reposição do habitual das crônicas de Ubaldo. A graça está centrada na
personagem que criou para si próprio, com inegável destreza e colorido
estilísticos. Meio lesa, meio malandra, gente boa, fiel à memória familiar,
aos amigos, ao copo, ao amor da mulher e à imaginação das deusas, suas
tontices e seus fracassos são o seu trunfo. O que talvez falte é a variedade
de registro, que confronte afetos diversos e não obrigue a que tudo tome
logo o atalho da piada leve e inofensiva.
ALCIR PÉCORA é professor de teoria literária na
Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).
O REI DA NOITE
Autor: João Ubaldo Ribeiro
Editora: Objetiva
Quanto: R$ 32,90, em média (195 págs.)
Avaliação: regular
(©
Folha de S. Paulo)
Trecho do Livro: O Rei da Noite | João
Ubaldo Ribeiro
- Eu
disse que nunca mais punha os pés na rua, nunca mais ia a festinhas, nunca
mais entrava num bar, eu disse!
- É, você disse. Você sempre diz isso. No dia seguinte
você sempre diz isso.
- Então? Então? Então você devia levar isso em conta.
Quando eu disser “hoje vou sair”, você diz “não vai”, pronto. Basta isso, eu
atendo, você sabe que eu atendo.
- Você nem ouve, quanto mais atender. Você entrou em casa
cantando “Rio Babilônia”, parou na porta, deu uns remelexos meio tipo Elvis
Presley e gritou com o mesmo olhar com que às vezes fica na praia: “Mulher,
vamos pra festa do Neville! Rio Babilôoooonia!”
- É, eu me lembro. Você foi sarcástica, muito sarcástica.
Não é preciso ser tão sarcástica comigo e meus amigos.
- Eu, sarcástica? Eu só perguntei se você tinha certeza de
que podia entrar mulher grávida.
- E então? Só porque era a festa do meu amigo Neville
tinha de ser uma esbórnia, não foi isso que você quis insinuar?
- Absolutamente. Quem insinuou foi você, com aqueles seus…
seus meneios aí na porta e com aquele olhar que não permitiriam na novela
das oito.
- Eu não fiz olhar nenhum!
- Fez. E continuou a fazer praticamente a noite inteira.
Mas acho que não tem importância, seus amigos já estão acostumados. Uma
coisa de que ninguém pode lhe acusar é falta de coerência. Você faz
invariavelmente as mesmas coisas.
- Eu beijei Ivan Chagas Freitas outra vez?
- Não, desta vez não, mas isto é um pormenor. E de mais a
mais você chegou com ele, não acredito que o beijo se justificasse.
- Eu fui com ele? Claro, fui com ele. Lembro muito bem.
Aliás, lembro muitíssimo bem, lembro de tudo. Chegamos juntos, o Ivan
elegantíssimo, de smoking…
- Ivan não estava de smoking.
- Como não estava? Claro que estava, eu não sou maluco, vi
perfeitamente. Eu até fiz uma brincadeira, falei: “Ivan, este smoking de teu
pai caiu muito bem, muito bem.”
- Isso foi a foto do Ivan na festa do Ibrahim. Você viu a
foto do Ivan de smoking.
- A foto? Bem, certo, mas o fato é que eu vi o Ivan de
smoking, eu lembro de tudo perfeitamente. Nós entramos, abraçamos o Neville
e aí batemos um papo com a Tônia Carrero, gostei muito dela.
- É, este foi um problema. A Tônia Carrero não estava lá.
- Como não estava? É claro que estava!
- Não. Estava uma senhora lá que você ficou chamando o
tempo todo de “Tônia, mas veja você, Tônia, mas ora, Tônia”. Ela tentou
avisar algumas vezes, mas você só dizia “querida Tônia, mas que mot
d’esprit, que boutade, ha-ha-ha!”
- Não era a Tônia? Mas era a cara!
- Espero que a Tônia nunca saiba desta sua opinião. De
qualquer forma, isso não teve importância, porque você elogiou muito a
senhora, ela deve ter ficado satisfeita. Aliás, você elogiou todo mundo.
- Elogiei? Ah, elogiei? Bem, ótimo que eu elogiei, quer
dizer que não tem vexame para lembrar.
- Nada, vexame nenhum. É bem verdade que você fez alguns
elogios agressivos, mas todo mundo já deve conhecer a sua exuberância. Quer
dizer, não sei se o Renato Machado ficou muito feliz, não tenho certeza.
- O Renato Machado? O que é que eu fiz com o Renato
Machado? Eu não elogiei?
- Aos murros. Você fazia um elogio - “aí, Renatão!” - e
dava um murrozinho afetuoso nele. Acho que deve ter dado uns seis ou sete;
você estava muito entusiasmado com ele. “Que pronúncia, que pronúncia!”,
dizia você. Até que ele se sentou e alegou nocaute e aí você parou.
- Mas é interessante, eu tenho a recordação completa de
que sentamos direitinho, junto com o Ivan, a Dora e o Paulo César Saraceni e
a Ana Maria, foi ou não foi?
- Mais ou menos. O Paulo César e a Ana Maria já estavam
lá, ficaram sentados defronte da gente.
- Então? Lembro de tudo!
- E você ficava piscando o olho e jogando beijinhos para
ela.
- Mentira! Na cara do Paulo César? Mentira! O Paulo César
é meu amigo, eu jamais faria uma coisa dessas! Você quer solapar o meu
relacionamento com os amigos! Mentira! Eu não faço essas coisas com ninguém,
quanto mais com as mulheres de meus amigos!
- Mas é só isso que você faz. Agora, elas não ligam, eles
também não. Afinal, quem é que vai ligar para um amigo que fica piscando um
olho como se estivesse tendo um espasmo muscular, jogando beijinhos bicudos
e escondendo a cara atrás do balde de gelo?
- Atrás do balde de gelo?
- Pois é, tenho a impressão de que você achava que assim
disfarçava. Juntou gente em torno da mesa, para ver você disfarçando. Você
se curvava todo, chamava “Aniiinha!”, piscava o olho e mergulhava a cara
atrás do balde ligeirinho.
- Que horror!
- Horror nada, foi tudo muito divertido, um sucesso. Tanto
assim que você só parou quando chegou o Daniel Filho.
- O Daniel? Não! Eu chorei outra vez?
- Não, vocês dançaram.
- Nós dançamos?
- Dançaram e cantaram. Cantaram uma musiquinha em inglês
que dizia “wake up, wake up!” e que vocês achavam engraçadíssima, embolavam
de rir. Até que houve o incidente com o pessoal da casa, na hora em que você
exigiu que evacuassem a pista para que o Daniel pudesse dar uma demonstração
do passo Tom Mix.
- O passo Tom Mix?
- Sim, é um passo que ele dá sacando dois revólveres e
rodopiando. É até interessante. Mas o pessoal não quis atender ao seu
pedido, apesar de você gritar “jogo-lhe a Rede Globo em cima, canalha!”. De
qualquer forma, você conseguiu que o Daniel fizesse o passo no andar de cima
e ainda imitasse Michael Jackson e Ney Matogrosso. A de Michael Jackson é
até bastante boa, a do Ney…
- Disso eu me lembro, fiquei ali conversando com a Márcia
enquanto ele dançava.
- Conversando não, ficou dizendo “Marcinha, você sabe que
eu imito Ney Matogrosso muito melhor do que esse cara aí com quem você vive
saindo e sou melhor diretor de televisão que ele e tenho um telão maior do
que ele e…”
- Ele se aborreceu?
- Claro que não, inclusive ele sabe que você não imita
lhufas e não tem telão nenhum.
- Nem sou diretor de tevê.
- Ah, isso não sei. Não foi isso o que você falou à Danuza
Leão. Você disse a ela que estava realizando um especial sobre ela de duas
horas e depois gritou: “Quero arrojar-me a teus pés!”
- E me arrojei?
- Quase. Ivan segurou você e a Danuza deu uns passinhos
rápidos para trás, não houve maiores problemas e já estávamos mesmo na
saída.
- Nunca mais eu saio, nunca mais boto os pés fora de casa,
nunca mais entro num bar, nunca mais!
- Sim, querido. Mas não sei por quê. Todo mundo acha você
o rei da noite, querido.
(©
Tigre de Fogo) |