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Crônicas de Ubaldo acabam na piada leve e inofensiva

04/01/2009

 

 

Foto: O Globo

João Ubaldo Ribeiro
 

Crítica/"O Rei da Noite"

Coletânea traz temas ligados à infância, à vida doméstica e aos males da velhice

ALCIR PÉCORA
ESPECIAL PARA A FOLHA

"O Rei da Noite" reúne 34 crônicas de João Ubaldo Ribeiro, provavelmente publicadas em suas colunas de "O Globo" e de "O Estado de S. Paulo", com emendas ou não. Nada digo com segurança, pois a edição não traz nota bibliográfica a esclarecer as referências a datas e jornais da publicação original.

Por algum motivo, se achou necessária a firula de pintar de preto as bordas das páginas, quem sabe para reforçar a noite do título. Não seria pertinente: os casos das crônicas, longe de invocar negrores noturnos, são de um humor leve e boa-praça. O conjunto das crônicas pode ser descrito em cinco temas comuns ao gênero. O primeiro refere impactos da vida de menino e moço, como desastres de Carnaval; filme proibido; dúvidas sobre a existência de Papai Noel e a forma de trazer filhos ao mundo; excentricidades de avô; o surgimento da TV.

Variante adulta da tópica são as trapalhadas domésticas, com casos de goteiras na casa e de conversas incômodas com os filhos sobre sexo. Outro assunto do livro é a vida social, incluindo retratos de "celebrities" amigas, vexames de bêbado, gafes em festas, visita a motel; manhas para sair sem dinheiro.

Um terceiro tema desfia os males da velhice e se compraz em comentar exame de próstata, medo da morte, paranoia diante do noticiário e das viroses, para, enfim, constatar a ideia de que todo envelhecer é apedeuta: nada aprende, a não ser que é "uma merda". Variante disso é a personificação do narrador como sujeito antiquado, que, por exemplo, defende a forma das mulheres violão contra a magreza de hoje; espanta-se com a mania de plástica, que não deixa ilesa sequer a genitália, e não se cansa de exibir o mau jeito com computadores. Ainda associada ao tema da senectude está a revolta contra a ditadura atual da saúde, especificada nas tentativas de deixar o cigarro, no sofrimento para aderir à prescrição da caminhada, na experiência odiosa com comida macrobiótica em nome da "qualidade de vida". Outras crônicas celebram a conversa de bar. Aí, Ubaldo desenvolve temas relativos à filosofia de corno, ao imaginário da AIDS, aos transtornos da família moderna ou à vida pós-informática.

O último grande assunto é a vida de escritor. Comenta as doidices da profissão, as reportagens amalucadas, as participações furadas em entrevistas na TV, a distância entre o imaginário aventuroso sobre o escritor e os casos miúdos que pôde viver, sem esquecer um clássico da crônica de jornal: a falta de assunto, que empurra a carência da matéria para fora do espaço graças ao espichar do nariz-de-cera. Isto dito, não é difícil perceber que não se trata de um livro especialmente inspirado, mas da reposição do habitual das crônicas de Ubaldo. A graça está centrada na personagem que criou para si próprio, com inegável destreza e colorido estilísticos. Meio lesa, meio malandra, gente boa, fiel à memória familiar, aos amigos, ao copo, ao amor da mulher e à imaginação das deusas, suas tontices e seus fracassos são o seu trunfo. O que talvez falte é a variedade de registro, que confronte afetos diversos e não obrigue a que tudo tome logo o atalho da piada leve e inofensiva.

ALCIR PÉCORA é professor de teoria literária na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).

O REI DA NOITE
Autor: João Ubaldo Ribeiro
Editora: Objetiva
Quanto: R$ 32,90, em média (195 págs.)
Avaliação: regular

(© Folha de S. Paulo)

 


Trecho do Livro: O Rei da Noite | João Ubaldo Ribeiro

- Eu disse que nunca mais punha os pés na rua, nunca mais ia a festinhas, nunca mais entrava num bar, eu disse!

- É, você disse. Você sempre diz isso. No dia seguinte você sempre diz isso.

- Então? Então? Então você devia levar isso em conta. Quando eu disser “hoje vou sair”, você diz “não vai”, pronto. Basta isso, eu atendo, você sabe que eu atendo.

- Você nem ouve, quanto mais atender. Você entrou em casa cantando “Rio Babilônia”, parou na porta, deu uns remelexos meio tipo Elvis Presley e gritou com o mesmo olhar com que às vezes fica na praia: “Mulher, vamos pra festa do Neville! Rio Babilôoooonia!”

- É, eu me lembro. Você foi sarcástica, muito sarcástica. Não é preciso ser tão sarcástica comigo e meus amigos.

- Eu, sarcástica? Eu só perguntei se você tinha certeza de que podia entrar mulher grávida.

- E então? Só porque era a festa do meu amigo Neville tinha de ser uma esbórnia, não foi isso que você quis insinuar?

- Absolutamente. Quem insinuou foi você, com aqueles seus… seus meneios aí na porta e com aquele olhar que não permitiriam na novela das oito.

- Eu não fiz olhar nenhum!

- Fez. E continuou a fazer praticamente a noite inteira. Mas acho que não tem importância, seus amigos já estão acostumados. Uma coisa de que ninguém pode lhe acusar é falta de coerência. Você faz invariavelmente as mesmas coisas.

- Eu beijei Ivan Chagas Freitas outra vez?

- Não, desta vez não, mas isto é um pormenor. E de mais a mais você chegou com ele, não acredito que o beijo se justificasse.

- Eu fui com ele? Claro, fui com ele. Lembro muito bem. Aliás, lembro muitíssimo bem, lembro de tudo. Chegamos juntos, o Ivan elegantíssimo, de smoking…

- Ivan não estava de smoking.

- Como não estava? Claro que estava, eu não sou maluco, vi perfeitamente. Eu até fiz uma brincadeira, falei: “Ivan, este smoking de teu pai caiu muito bem, muito bem.”

- Isso foi a foto do Ivan na festa do Ibrahim. Você viu a foto do Ivan de smoking.

- A foto? Bem, certo, mas o fato é que eu vi o Ivan de smoking, eu lembro de tudo perfeitamente. Nós entramos, abraçamos o Neville e aí batemos um papo com a Tônia Carrero, gostei muito dela.

- É, este foi um problema. A Tônia Carrero não estava lá.

- Como não estava? É claro que estava!

- Não. Estava uma senhora lá que você ficou chamando o tempo todo de “Tônia, mas veja você, Tônia, mas ora, Tônia”. Ela tentou avisar algumas vezes, mas você só dizia “querida Tônia, mas que mot d’esprit, que boutade, ha-ha-ha!”

- Não era a Tônia? Mas era a cara!

- Espero que a Tônia nunca saiba desta sua opinião. De qualquer forma, isso não teve importância, porque você elogiou muito a senhora, ela deve ter ficado satisfeita. Aliás, você elogiou todo mundo.

- Elogiei? Ah, elogiei? Bem, ótimo que eu elogiei, quer dizer que não tem vexame para lembrar.

- Nada, vexame nenhum. É bem verdade que você fez alguns elogios agressivos, mas todo mundo já deve conhecer a sua exuberância. Quer dizer, não sei se o Renato Machado ficou muito feliz, não tenho certeza.

- O Renato Machado? O que é que eu fiz com o Renato Machado? Eu não elogiei?

- Aos murros. Você fazia um elogio - “aí, Renatão!” - e dava um murrozinho afetuoso nele. Acho que deve ter dado uns seis ou sete; você estava muito entusiasmado com ele. “Que pronúncia, que pronúncia!”, dizia você. Até que ele se sentou e alegou nocaute e aí você parou.

- Mas é interessante, eu tenho a recordação completa de que sentamos direitinho, junto com o Ivan, a Dora e o Paulo César Saraceni e a Ana Maria, foi ou não foi?

- Mais ou menos. O Paulo César e a Ana Maria já estavam lá, ficaram sentados defronte da gente.

- Então? Lembro de tudo!

- E você ficava piscando o olho e jogando beijinhos para ela.

- Mentira! Na cara do Paulo César? Mentira! O Paulo César é meu amigo, eu jamais faria uma coisa dessas! Você quer solapar o meu relacionamento com os amigos! Mentira! Eu não faço essas coisas com ninguém, quanto mais com as mulheres de meus amigos!

- Mas é só isso que você faz. Agora, elas não ligam, eles também não. Afinal, quem é que vai ligar para um amigo que fica piscando um olho como se estivesse tendo um espasmo muscular, jogando beijinhos bicudos e escondendo a cara atrás do balde de gelo?

- Atrás do balde de gelo?

- Pois é, tenho a impressão de que você achava que assim disfarçava. Juntou gente em torno da mesa, para ver você disfarçando. Você se curvava todo, chamava “Aniiinha!”, piscava o olho e mergulhava a cara atrás do balde ligeirinho.

- Que horror!

- Horror nada, foi tudo muito divertido, um sucesso. Tanto assim que você só parou quando chegou o Daniel Filho.

- O Daniel? Não! Eu chorei outra vez?

- Não, vocês dançaram.

- Nós dançamos?

- Dançaram e cantaram. Cantaram uma musiquinha em inglês que dizia “wake up, wake up!” e que vocês achavam engraçadíssima, embolavam de rir. Até que houve o incidente com o pessoal da casa, na hora em que você exigiu que evacuassem a pista para que o Daniel pudesse dar uma demonstração do passo Tom Mix.

- O passo Tom Mix?

- Sim, é um passo que ele dá sacando dois revólveres e rodopiando. É até interessante. Mas o pessoal não quis atender ao seu pedido, apesar de você gritar “jogo-lhe a Rede Globo em cima, canalha!”. De qualquer forma, você conseguiu que o Daniel fizesse o passo no andar de cima e ainda imitasse Michael Jackson e Ney Matogrosso. A de Michael Jackson é até bastante boa, a do Ney…

- Disso eu me lembro, fiquei ali conversando com a Márcia enquanto ele dançava.

- Conversando não, ficou dizendo “Marcinha, você sabe que eu imito Ney Matogrosso muito melhor do que esse cara aí com quem você vive saindo e sou melhor diretor de televisão que ele e tenho um telão maior do que ele e…”

- Ele se aborreceu?

- Claro que não, inclusive ele sabe que você não imita lhufas e não tem telão nenhum.

- Nem sou diretor de tevê.

- Ah, isso não sei. Não foi isso o que você falou à Danuza Leão. Você disse a ela que estava realizando um especial sobre ela de duas horas e depois gritou: “Quero arrojar-me a teus pés!”

- E me arrojei?

- Quase. Ivan segurou você e a Danuza deu uns passinhos rápidos para trás, não houve maiores problemas e já estávamos mesmo na saída.

- Nunca mais eu saio, nunca mais boto os pés fora de casa, nunca mais entro num bar, nunca mais!

- Sim, querido. Mas não sei por quê. Todo mundo acha você o rei da noite, querido.

(© Tigre de Fogo)

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