Até a temporada das secas em Minas Gerais chegar, entre junho e agosto,
oferecendo a aridez necessária para as filmagens de A hora e a vez de
Augusto Matraga começarem, João Miguel já estará dominando todas as
angústias existenciais de um mito da literatura de João Guimarães Rosa
(1908-1967). Anti-herói "duro, doido e sem detença", nas palavras de seu
criador, Matraga rendeu uma das maiores obras-primas do cinema brasileiro,
em 1965, sob a direção de Roberto Santos (1928-1987), interpretado por
Leonardo Villar, assim como incendiou os palcos há 20 anos, na versão
teatral encenada por Antunes Filho, com Raul Cortez (1932-2006) no papel
central. Chegou a hora e a vez de Matraga renascer.
"Matraga é a metáfora para o sertão que existe na alma de cada homem",
diz Miguel, preparando-se para abrir mão do traquejo cômico que imprimiu em
filmes como Estômago (2007) e Cinema, aspirinas e urubus (2005). De comédia,
Matraga não tem nada. E em 2009, sob a direção de um estreante em
longas-metragens, o diretor de TV Vinícius Coimbra (JK, Queridos amigos), o
ator baiano de 38 anos vai assumir o manto e os fardos morais do
ex-fazendeiro cujo orgulho o leva a uma jornada de violência e derrota até
renascer, dividido entre a fé e a vingança. A hora e a vez.
Matraga, nascido nas páginas de Sagarana, em 1946, vira um coronel caído
após ser vítima de uma emboscada e deixado à beira da morte. Salvo por um
casal de negros, ele renega seu passado, entregando-se a Deus. Mas seu
instinto guerreiro vai explodir, quer queira, quer não. "Matraga é um
personagem com duas naturezas conflitantes. Uma é a de guerreiro", diz o
ator. "A outra é uma natureza religiosa que ele traz de infância", explica o
diretor Vinícius Coimbra, que filmará A hora e a vez... Em solo mineiro, nos
arredores de Diamantina, em São Gonçalo do Rio das Pedras. "Só que o
primeiro mandamento cristão, 'Não matarás', não se aplica a ele. Por isso
ele é um homem angustiado, em processo de autodestruição".
No livro, Rosa diz: "Matraga não é Matraga, não é nada. Matraga é
Esteves. Augusto Esteves, filho do Coronel Afonsão Esteves, da Pindaíbas e
do Saco-da-Embira. Ou Nhô Augusto - o homem". Mas na tela grande, na pele de
Leonardo Villar, as inquietações de Matraga se corporificaram em uma imagem
trágica e poética. Até hoje, críticos formam coro para afirmar que o filme A
hora e vez de Augusto Matraga (que não tem, no título, o segundo artigo "a",
como na edição original da novela), de Roberto Santos, é uma das raras
produções nacionais equiparáveis ao glauberiano Deus e o diabo na Terra do
Sol (1964) e a Os fuzis (também 1964), de Ruy Guerra, em vigor estético.
"O meu Matraga não é definitivo. Existem muitos caminhos para fazê-lo. O
meu caminho foi me apaixonar pelo personagem e ler muito Guimarães", diz
Leonardo Villar, apontando um caminho que Miguel pode seguir. A versão de A
hora e vez... que Villar estrelou é inédita em DVD, raríssima em
retrospectivas e de difícil circulação nas TVs. Em 2003, o filme chegou a
ser retirado de uma mostra sobre o sertão no cinema nacional, o que sugeriu
a hipótese de que a família de Rosa teria embargado sua circulação. A
escritora Vilma Guimarães Rosa, filha do autor, refuta essa versão:
"Recentemente, antes de participar de homenagens a papai em Londres e
Berlim, eu pude rever A hora e vez...", E ele me emocionou muito. Não existe
problema algum nosso com o filme", diz Vilma, lembrando que a obra de seu
pai teve resultados felizes em transposição para o teatro, incluindo Augusto
Matraga, como, por exemplo, a montagem em tom de musical encenada por André
Paes Leme, em 2007, com o ator Vladimir Brichta.