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A poesia é, para Ferreira Gullar, uma energia

18/01/2009

 

 

Foto: Rogério Faissal

Gullar em seu escritório
 

Poeta enfrenta um lento processo de composição

O perfume do jasmim pode não ser inspirador para a maioria das pessoas, mas, para o poeta Ferreira Gullar, é motivo de epifania - ao sair, certa noite, da casa de Cláudia Ahimsa, sua companheira e também poeta, ele foi acometido por um incontrolável impulso, só dominado quando surgiram os versos do poema Desordem.: "... O jasmim, por exemplo,/ é um sistema/ como a aranha/ (diferente do poema)/ o perfume/ é um tipo de desordem/ a que o olfato/ põe ordem/ e sorve...".

Experiências como essa, que não recriam a realidade mas a reinventam, é que transformam o cotidiano do poeta e, de resto, da grande poesia brasileira. Afinal, depois de dez anos da publicação de seu último livro de versos, Muitas vozes, considerada a melhor obra de 1999, Ferreira Gullar está finalizando Em alguma parte alguma, com poesias inéditas que a editora José Olímpio pretende publicar ainda neste primeiro semestre.

"Até agora, ele já escreveu 50 poemas, que cobririam cerca de 80 páginas", comenta Maria Amélia Mello, editora da José Olímpio e principal responsável pela qualidade das obras publicadas. "Mas Gullar acredita que ainda vai escrever alguns. Como diz: 'aguardando o poema que falta'..."

Algumas poesias são longas, outras nem tanto - Rainer Maria Rilke e a morte, por exemplo, ocupa seis páginas. O tempo de gestação, no entanto, parece ter diminuído. Se dez anos separam o novo livro do anterior, o período entre Barulhos e Muitas vozes foi ligeiramente maior, de doze anos. "Criar versos exige um esforço diferente do que escrever ensaios, crônicas ou críticas", afirma Gullar que, apesar de se desdobrar em múltiplas funções (também pinta e faz colagens), garante ser poeta na essência. As demais funções, ainda que não as desmereça, apenas ocupam seu tempo enquanto não está tomado pela poesia.

Com Em alguma parte alguma, Gullar se renova. O poeta que passou do soneto camoniano ao poema em prosa, do verso livre ao poema pré-concreto, mantém a tradição de criar uma produção multifacetada. "Custo a escrever e só publico o que realmente gosto."

(© JC Online)

 


Entrevista » Ferreira Gullar

"O fazer do poema é um improviso"

Agência Estado

SÃO PAULO - A poesia é, para Ferreira Gullar, uma energia. Ele também é cronista, crítico, pintor, mas são meros ofícios para garantir a sobrevivência. É na criação de poemas que Gullar se sente realmente um homem livre. Basta observar sua obra mais conhecida e divulgada, Poema sujo, uma das principais realizações poéticas do século passado, escrita em 1975, quando o poeta ainda vivia forçosamente exilado em Buenos Aires. Uma rápida leitura e a constatação de que o poema é um doloroso canto em favor da liberdade. Próximo de lançar um livro com novos poemas, Em alguma parte alguma, Gullar confirma que, sem se filiar a nenhuma escola literária, seus versos sempre avançaram para todos os lados testando experimentalismos e abandonando regras fixas. Nesta entrevista realizada por telefone, ele comenta a luta para transformar em poesia o choque e o espanto que determinados objetos ou mesmo sensações lhe provocam.

"Quando escrevo, preciso estar em um estado especial. É uma aventura, uma invenção da vida"

AE - Como está a fase final do livro Em alguma parte alguma?

FERREIRA GULLAR - Não consigo planejar meus livros. Eles nascem à medida em que os poemas vão surgindo. Não tenho planos. Aos poucos, a obra vai tomando forma, vão surgindo caminhos que definem o rumo dos poemas. Nunca sei quando está pronto. Mesmo enfrentando uma certa pressão da Maria Amélia (editora da José Olympio), respondo sempre que o livro é que tem de me dizer que está pronto. Se ele se cala, não posso publicar (risos). Mas acho que agora já posso editá-los.

AE - São poemas escritos ao longo destes dez anos ou há material mais antigo?

GULLAR - Sim, comigo é sempre assim. Não sou como alguns poetas, que planejam a própria obra: "Vou escrever um poema sobre tal tema" e assim o fazem. Comigo é diferente. Surgem indagações, perplexidades que encaminham a poesia. Claro que assumo o controle à medida que os assuntos vão se manifestando. Mas o que conta é a qualidade: é essencial que eu me emocione com o poema. Afinal, sou seu primeiro leitor.

AE - Você se divide em uma série de atividades (é colunista de jornal, escreve ensaios, pinta) mas, no geral, tem uma produção menor na poesia.

GULLAR - Para mim, o mais importante é a poesia - o restante é secundário. Por isso mesmo, ela é escassa. Não é um trabalho como uma crônica, que me impõe exigências de data e tamanho. A poesia nasce do espanto, quando a vida me revela algo que eu desconhecia. Ali está a reflexão fundamental. O restante eu faço com prazer e responsabilidade, reescrevendo quando necessário. Mas poesia é um departamento à parte.

AE - Você costuma dizer que não tem dois livros iguais um ao outro. Assim, a forma de criar um poema muda de um para outro?

GULLAR - Às vezes, sim. Como não é nada planejado, as regras não são definidas. Existe apenas uma exigência grande de economia, de emoção. O fazer do poema é um improviso, uma invenção. Como já disse, nasce do espanto: você acorda e, ao olhar para o céu, observa uma determinada nuvem azul e aquilo provoca um choque. Como descrever aquilo? É nesse processo que invento uma forma de dizer, descubro um caminho diferente no próprio realizar do poema que é incorporado ao trabalho e essa rotina acaba se repetindo na feitura de outros poemas. Escrevi, certa vez, sobre o cheiro do jasmim. De noite, saindo da casa da Cláudia (Ahimsa, sua companheira, que conheceu em 1994), levei um choque quando senti o perfume vindo do jardim do prédio. Decidi escrever um poema sobre essa sensação. Depois de pronto, quando fui reler, surgiu outra ideia, derivada do poema, algo relacionado sobre a natureza do perfume, do cheiro - um tipo de desordem a que o olfato dá ordem. Isso me fez avançar, discutir mais sobre a ideia da desordem. Por fim, escrevi outro poema, um adendo ao primeiro, depois de uma sucessão de descobertas. Feito isso e passado algum tempo, é como se aquele veio se esgotasse. Por isso, um livro não é igual ao outro. Quando publico, tenho a impressão que aquele caminho que descobri por acaso já se esgotou. Aí, fico até um ano sem escrever algo, com a sensação de que não produzirei mais nada. Até surgir outra coisa diferente. Veja bem, não me preocupo em escrever livros distintos, mas verifico que a luta corporal não é igual entre um livro e outro. Um exemplo: escrevi o Poema sujo em 1975 e publiquei um ano depois. O livro seguinte, Na vertigem do dia, nasceu com elementos do anterior. Mas, se o Poema sujo é sinfônico, com movimentos, o Na vertigem do dia é música de câmera. Há temas semelhantes, mas em outro tom.

AE - O que influi para um poema ocupar apenas uma página enquanto outro necessita de várias delas?

GULLAR - Quando começa, o poeta não sabe. Às vezes, sabe apenas que será maior. Quando comecei o Poema sujo, eu sabia que seriam muitas páginas, entre 70 e 100. É inexplicável. A matéria que eu descobrira e que inspiraria o poema era rica, portanto, eu sabia que seria algo muito longo. Outros não - começo a escrever, penso que vai ser curto e acaba um pouco maior do que eu supunha. O processo é que determina o tamanho. Como eu disse antes, o poema é uma invenção. Ao decidir escrever sobre o jasmim, não tenho ideia do que virá. Se soubesse, não escreveria. Assim, não é possível determinar o tamanho, pois, durante a escrita, por conta da relação de acaso, abre um caminho novo dentro do poema e ele cresce de maneira inesperada. Quando escrevo, é uma aventura, uma invenção da vida.

AE - Você rascunha esboços?

GULLAR - Não. Acontece assim: às vezes, escrevo o poema até o fim, mas sei que não está concluído, que aquela não é sua forma definitiva. Quando escrevo, preciso estar em um estado especial. Não se trata de uma inspiração divina, mas também não é meu estado normal (risos). Nessa condição, o poema nasce, mas percebo que não é aquilo que realmente vai ficar, não é aquilo que quero dizer. Como sou forçado pelo impulso, o texto sai com um formato a ser modificado. Recentemente, aconteceu exatamente isso. Escrevi um poema à mão até chegar ao ponto que parecia ser o fim. Deixei-o de molho e fui cuidar da vida. Passado um tempo e já liberto daquele estado inicial, voltei a lê-lo com mais lucidez e visão crítica. Acrescentei mais alguns detalhes e agora acredito que esteja pronto. Mas ainda está sub judice (risos).

AE - Você disse que escreveu à mão. Isso influi no estilo, no resultado? A escrita é também aquilo com que se escreve?

GULLAR - Os meus poemas, em geral, são escritos à mão. É uma forma de ter mais intimidade com o texto. É uma relação diferente, mais íntima diante da página em branco. Eu me sinto mais perto de mim mesmo. Quando transcrevo no computador, é uma forma de visualizar o poema. Nesse estágio, eu sei que ele está quase pronto - em geral, é a primeira versão que faço à mão, é o nascimento dele. Aí, já sei que será um poema, faltando apenas alguns ajustes. Então passo para o computador, no qual trabalho até a finalização.

AE - Para mexer em um poema, qual deve ser sua condição?

GULLAR - Em geral, não pode ser muito diferente daquela do nascimento do poema. Eu tive poemas prontos em sua primeira versão que não me despertavam vontade de voltar a trabalhá-los. Sei que não estou em condições de mexer no material. É preciso estar nesse estado especial, pois você se sente mais solto, mais descompromissado com a racionalidade, mais aberto à invenção.

AE - Nesses momentos, a solidão é fundamental?

GULLAR - Normalmente, sim. Mas acontece também de eu começar a escrever um poema e precisar sair de casa antes de finalizá-lo. É um sensação muito especial para mim: estar no meio das pessoas enquanto elaboro o poema. Com o Poema sujo, foi algo muito forte. Levei meses para terminar o trabalho - como morava sozinho, eu precisava ir ao supermercado, ao correio, mas não deixava de trabalhar mentalmente. Ou seja, as pessoas ao meu redor pagavam por suas compras, acenavam para um táxi e não sabiam que eu criava um poema. De uma certa forma, era uma experiência muito solitária.

AE - Você acredita que a pessoa se torna mais lúcida, mais criativa, mais capaz, se tem uma obsessão?

GULLAR - Não sei dizer qual é o sentido de obsessão. Ter um propósito determinado não torna ninguém mais lúcido. Estar comprometido com uma ideia política, por exemplo, e utilizar a literatura como instrumento para modificar a sociedade pode não ser uma atitude de alguém lúcido. A pior coisa é ser dono da verdade. Não questionar os próprios valores e certezas é perigoso. E não se pode também relativizar as coisas. Eu, por exemplo, me questiono se poesia é literatura.

AE - Como assim?

GULLAR - Vem do fato de eu não ter controle sobre minha criação, sem normas preestabelecidas. É diferente. O romancista constrói uma trama elaborada, que exige um esboço. Já o poeta vive do inesperado e até se surpreende com o que escreve.

AE - E o que você acha do lançamento em livro de seus poemas de cordel?

GULLAR - Quando foi lançado o Toda poesia, eu recomendei à minha editora que lançasse os livros separadamente. Foi assim com Poema sujo, Barulho, entre outros, e agora chegou a vez dos poemas do cordel. Eu não tinha pensado nisso, pois foi um trabalho com um propósito mais político do que literário. Escrevi durante meu período de militância política, com o propósito ideológico de levar conscientização às pessoas. Na época, eu estava no CPC da UNE e o primeiro poema, Cabra marcado para morrer, foi encomendado pelo Vianinha para servir como roteiro de narração para uma peça que ele pretendia escrever. Seu projeto não saiu do papel, mas o poema foi publicado. Escrevi outro sobre favelados e até fiz um de gozação sobre uma peleja na viola entre um caçador nordestino, Zé Moléstia, e Tio Sam, que acontece na sede ONU. Uma loucura. Por último, outro encomendado - era a história de um valente, escrito para ajudar a campanha de libertação do Gregório Bezerra. Foram, enfim, trabalhos circunstanciais realizados para atender ao momento político. Eu nunca tinha pensado em publicá-los separadamente até ser procurado por um professor universitário, que me cobrou esse livro. Segundo ele, a poesia de cordel já é muito estudada nas universidades. Eu acabei cedendo, e logo teremos mais um livro inesperado.

(© JC Online)


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Chico Buarque e Fagner - Traduzir-se
(Poema de Ferreira Gullar, musicado por Fagner)


 

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Adriana Calcanhoto - Traduzir-se

 

 

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