Lauro Lisboa Garcia,
OLINDA
No
aprazível jardim elevado da Pousada do Amparo, em Olinda, Pernambuco,
Alceu Valença passa a tarde de verão encarando uma batelada de
entrevistas para falar de seu novo álbum, Ciranda Mourisca, o primeiro
licenciado para a gravadora Biscoito Fino. O que para outros artistas é
uma mera formalidade promocional, para ele se transforma num prazer que
salta aos olhos: falar de sua arte e da dos que o cercam. O séquito de
admiradores ao redor se envolve nas histórias, algumas tão mirabolantes
que parecem ficção, mas há testemunhas presentes.
Inquieto e
bem-humorado, Alceu diz que vive o melhor momento de sua carreira como
artista de grande popularidade. Trovador nato, filho e neto de poetas
populares, ‘cantautor’ de profundas interpretações, tem a fala sempre
carregada de poesia e uma teatralidade natural. Nem é preciso começar a
entrevista com uma pergunta. Alceu já dá arrancada com seu discurso em
defesa da criatividade artística, que nele pulsa com uma vitalidade de
perder o fôlego, aos quase 63 anos de idade, 35 de carreira das mais
brilhantes.
Pioneiro
no cenário pop pernambucano, mesclando a tradição regional com rock e
blues, Alceu firmou sua identidade reverenciando as matrizes. "Minhas
etnias são muitas e misturadas. Minhas referências são o samba de Noel
Rosa, lundu, Dorival Caymmi, Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, frevo, e
não só isso", diz. "Por que tudo isso? Pelo culto e o respeito às coisas
de meu país. Em relação à cultura não sou fechado nem conservador, mas
tem de existir prioridades, como em tudo na vida."
Alceu se
mostra indignado com o que ele chama de "massacre absurdo da mídia" que
"destruiu a música da gente". São parentes de deputados que têm
concessão de rádios e investem num gênero conhecido como porno-forró,
feito por gente que não tem noção do que é música, não sabe cantar nem
tocar. "Tudo bem, é um negócio, mas há mil maneiras de se enriquecer,
deixem a arte em paz."
Arte é o
que se aprecia em Ciranda Mourisca, em que Alceu revisita diversas de
suas fontes, absorvendo também as externas. Uma delas, que remete ao
tempo do Descobrimento, trazida pelos portugueses, é a influência árabe
de Marrocos e do sul da Espanha, que ele ressalta no CD. Porém, nem a
ciranda nem a sonoridade árabe estão explícitas no disco. Mas se
expressam sutilmente nas cordas do violão e na voz de Alceu e pela
guitarra de seu fiel parceiro Paulo Rafael. Só em duas faixas - Deusa da
Noite (Dia Branco) e Ciranda da Rosa Vermelha - há uma tabla, em que
aproxima com maior evidência da tradição do Oriente Médio.
Voltando
ao lance de "deixar a arte em paz", o protesto retrocede duas décadas
atrás, quando Alceu era contratado da BMG (hoje agregada da Sony) e
queriam que ele se submetesse aos modismos impostos pelos Sullivan e
Massadas que dominavam o mercado de então, mandando nas gravadoras e
impondo suas composições, "para ganharem com direito autoral".
"Em 1986
tentaram me destruir. Eu não, destruíram a música brasileira toda. Ou a
gente gravava o que eles queriam ou não tocava no rádio. Quem não entrou
no jogo dançou." Alceu conta que certa vez chegaram com a proposta para
ele gravar Coração Besta, "uma palhaçada em cima do Coração Bobo", um de
seus clássicos, achando que era a cara dele. Ele, que não era besta,
ignorou e manteve a dignidade como poucos na música brasileira nos anos
80.
Em
consequência disso, seus álbuns, a partir do antológico Estação da Luz
(1985), foram boicotados pela gravadora, para a qual voltou em 1994,
depois de passar pela EMI. "Começaram a dizer que minha música não era
popular. Como não? Solidão, Anunciação, Tropicana, Pelas Ruas Que Andei,
tocava tudo no rádio. Eu tinha de preservar a minha música e comecei a
só pensar em show, esquecer de disco." Hoje Alceu tem todos os seus
álbuns amarrados nas gravadoras. A Universal, que detém o acervo da
Ariola, nunca lançou em CD os álbuns Cinco Sentidos (1981), Anjo Avesso
(1983) e Mágico (1984).
Ciranda
Mourisca, produzido por Alceu, é também um meio de recuperar parte do
material esquecido daqueles discos dos anos 80. Fazem parte desse seu
"lado C" canções de grande beleza como Pétalas (a única do CD em que
divide a autoria com um parceiro, Herbert Azul), Amor Que Vai, Sino de
Ouro, Íris e Chuva de Cajus, que ganham agora versões melhores do que as
originais e soam como inéditas. Loa de Lisboa (de Andar, Andar, 1990) é
um primor, cuja letra é um retrato fiel do que ocorreu com Alceu (de
ressaca) na capital portuguesa, debaixo de chuva à espera de um amigo
brasileiro, "que morava na Rua da Mãe d’Água, ao pé da Praça da
Alegria", um endereço pra lá de inspirador.
De
Molhado de Suor (1974), seu primeiro álbum-solo, ele pinçou quatro
canções: Dia Branco, a faixa-título, Mensageira dos Anjos e Dente de
Oriente. Mas o ponto de partida foi Ciranda da Rosa Vermelha, com refrão
emprestado do folclore, que teve um bem-sucedido registro de Elba
Ramalho. É a única faixa do disco que Alceu nunca tinha gravado.
Ele nem
sabe ainda quando vai se apresentar em São Paulo. Sua agenda está cheia
de shows marcados para antes, durante e depois do carnaval em diversas
cidades, além de Recife. Além do novo disco, outro motivo de entusiasmo
é que finalmente conseguiu captar recurso para realizar seu filme Cordel
Virtual, que escreveu, vai dirigir e talvez até atuar. Os diálogos são
todos em versos e o elenco será formado por atores nordestinos. Alceu já
compôs uma infinidade de canções para o filme, mas também pretende usar
músicas antigas de Cauby Peixoto e Núbia Lafayaette, "como que saindo do
som de um radinho da cena", mas interpretadas por ele. A imitação
perfeita que ele faz dos dois é mais uma de suas peripécias impagáveis.
O repórter viajou a convite da Biscoito Fino