08/02/2009
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Joaquim Nabuco |
Joaquim Nabuco e Os Abolicionistas Britânicos reúne
correspondência entre diplomata e membros de sociedade
antiescravista
Lilia Moritz Schwarcz
"Não está muito longe o dia em que, no mapa geográfico da
escravidão, o Brasil e Cuba, duas das regiões mais belas e férteis
do globo, já não serão manchas escuras na terra americana." Era
dessa maneira que, em 8 de abril de 1880, Joaquim Nabuco se dirigia
a Charles H. Allen, secretário da Foreign Anti-Slavery Society; uma
organização inglesa que lutava pela abolição da escravidão. Na
década de 1880, essas eram as duas únicas nações ocidentais a
admitir a escravidão em seus territórios, e não sem um pingo de
ambivalência o parlamentar brasileiro contrasta a beleza física do
local com a "mancha" que representava a escravidão. A carta revela,
igualmente, o caráter moderado de seu autor, que estabelece a data
de 1º de janeiro de 1890 para a abolição total da escravidão - a
despeito de desculpar-se pelo prazo por demais "conciliatório".
O fato é que o clima político andava esquentado, e Nabuco,
considerado a essas alturas um paladino da luta pela abolição, ao
mesmo tempo em que conciliava, procurava avançar. Por um lado, o
Império andava com sua imagem externa chamuscada, desde que a Junta
Francesa pela Abolição pedira, em 1866, pelo fim da escravidão. Por
outro, vivíamos em meio à desastrada Guerra do Paraguai, e o
imperador Pedro II, que até então se vangloriava de seus atos
"civilizados", não tinha mais como elidir a verdade de que o Estado
contornava, mas a escravidão mantinha-se firme. A abolição entraria,
então, na agenda do Segundo Reinado, para não sair mais.
E é uma foto, em bom ângulo, que o leitor tem agora em mãos, com a
publicação de Joaquim Nabuco e Os Abolicionistas Britânicos:
Correspondência 1880-1905; livro organizado por Leslie Bethell e
José Murilo de Carvalho. A obra apresenta as cartas trocadas entre
Nabuco e membros da Anti-Slavery Society, assim como outras
recebidas e enviadas a cidadãos britânicos envolvidos na causa. São
no total 110 missivas; um conjunto documental que ilumina esse
momento ambivalente, em que no Brasil se procurava, de todas as
maneiras, apagar tal questão. A tática de delação praticada por
Nabuco a partir dos anos 1880 surge, assim, de maneira clara. Era
necessário expor abertamente a situação dos escravos no Brasil, e
assim constranger as elites políticas nacionais.
Por isso mesmo, a conexão britânica para a luta abolicionista é da
maior importância para Nabuco, que andava convencido de que a saída
era internacionalizar a polêmica e mobilizar a opinião pública. E
para tanto, não havia lugar melhor do que a Inglaterra; centro
econômico e político à época. Não por acaso, o contato de Nabuco com
os britânicos estreitou-se a partir de 1880, logo depois que o
político decidiu adotar o abolicionismo. Por outro lado, ele nunca
escondera a predileção por Londres: a sua cidade universal. Isso sem
esquecer o contato estreito com a aristocracia londrina, promovido
pelo barão de Penedo, que sempre amparou Nabuco, sem convencer-se da
missão do jovem colega e hóspede frequente.
Mas a causa abolicionista era, sobretudo, uma herança do pai, o
senador Nabuco de Araújo, que também lhe preparara a candidatura e
pavimentara seu futuro político. Nabuco ganharia notoriedade a
partir de seus pronunciamentos na Câmara contra a importação dos
coolies - os trabalhadores chineses que substituiriam a mão de obra
escrava -, e de sua denúncia à companhia inglesa St. John Del Rey
Mining Company, que mantinha o regime de cativeiro em seus domínios.
A partir de então, o político alcançaria proeminência internacional,
e se aproximaria da Anti-Slavery Society. E dessa maneira começa
essa história, tão bem narrada pelas cartas de Nabuco e acompanhada
pelos organizadores deste livro, que não só incluem uma expressiva
introdução, como apresentam notas explicativas que ajudam a
reconhecer personagens hoje pouco conhecidos, e a elucidar episódios
mencionados na correspondência. Por meio das missivas pode-se
dimensionar o novo impulso que o movimento ganhava; a importância da
abolição da escravidão no Ceará, em 1884; o descrédito diante da lei
dos sexagenários de 1885; a aproximação com Isabel - "que
demonstrava grande interesse pelo assunto"; e por fim a promulgação
da Lei Áurea, que enche Nabuco de orgulho.
Vemos também o esforço do político em ganhar a opinião pública
internacional, sua visita ao papa - bem como o pedido para que ele
intercedesse -; o apreço de Nabuco pelo The Times, "a voz da
civilização"; ou o lado legalista do abolicionismo advogado pelo
político: "A emancipação (escreve ele em 1881) não pode ser feita
por meio de uma revolução. Ela só pode ser realizada por maioria
parlamentar." Após o ato, tudo estaria "definitivamente
reabilitado", a não ser a sorte da Regente e do Império; por quem o
parlamentar tanto temia.
Vemos também, e mais de perto, as veleidades do estadista, que
parece chamar por comprimentos quando menciona "seu fraco inglês
escrito"; ou mesmo quando defende a igualdade entre as raças.
Explicava Nabuco que no Brasil "não existiam maneiras de traçar a
linha de cor como fronteira política tão claramente como nos Estados
Unidos" e que por aqui "não havia preconceito". Aí aparece Nabuco,
filho e neto de donos de escravos, que a exemplo de seu famoso
ensaio, Massangana, condena a escravidão mais por fatores pessoais e
morais, do que como sistema. Mas se esse traço mais intimista surge
de forma localizada, o que o conjunto denuncia é a visão do político
que, atuando na esfera pública, condena a escravidão em nome dos
valores universais.
Não por coincidência, a correspondência após a abolição perde vigor.
Voltamos a encontrar Nabuco já acomodado na sua fama,
confraternizando pelo fim da abolição. Nas cartas, reproduzidas
fielmente em inglês e português, o público reconhecerá o estilo
particular de Nabuco, que sempre misturou ativismo político com
reflexão pessoal. No entanto, conforme chegamos ao fim do livro,
tudo vai ganhando ar de passado. Nabuco, em seus Diários, comparara
a passagem dos séculos à confluência de dois rios e admitiu não
saber nadar: "Fico imóvel na margem onde nasci." Na década de 1890,
o antigo agitador resignara-se a uma espécie de ostracismo, a "viver
oculto em si", diante do que considerava ser a censura, a violência
e o arbítrio da República.
Mas o ativista seria chacoalhado outra vez, com a nomeação
diplomática em Washington, e assim se reconciliaria com a República.
O fato é que por meio desses documentos se percebe, de maneira
definitiva, como o movimento pela Abolição não se confundiu com a
luta em prol da República, e como Nabuco era personagem de seu
tempo. O contexto era outro e com a surdez que desenvolvera passava
a ver "o mundo como uma grande pantomima". Em seus Diários
desabafaria: "De que serve fazer a pérola quando não se pode passar
de ostra?"
Nabuco nunca foi exatamente uma ostra e sempre deixou rastros por
onde passou. Talvez por isso tenha enviado um papagaio como presente
a Allen: aí estava um símbolo do exótico Brasil, uma lembrança para
não deixar esquecer. Na verdade, foram dois os papagaios, mas ambos,
apesar de suportarem bem o inverno londrino, jamais falaram.
Diferente de seu antigo dono, que se pronunciava muito, e em
qualquer ocasião, o bichinho de estimação abriu mão de sua faculdade
única de falar. A ave andava "até sem vergonha", mas, coitada,
morreria muda e, conforme escreveria o secretário da Anti-Slavery
Society, sem jamais ter tido a oportunidade de contar seus segredos
ou os de Nabuco!
Lilia Moritz Schwarcz é professora titular do Departamento de
Antropologia da USP e autora, entre outros, de O Sol do Brasil:
Nicolas-Antoine Taunay e As Desventuras dos Artistas Franceses na
Corte de D. João (Companhia das Letras, 2008)
(©
Estadão)
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