Registros caseiros de João Gilberto na web são fartos
09/02/2009
Foto: Divulgação
João Gilberto
Material raro veiculado pela internet na semana
passada não é um caso isolado
Diversos amigos gravaram sessões de cantor e compositor, mas
disponibilizaram material para poucos "privilegiados"
LUIZ FERNANDO VIANNA
DA SUCURSAL DO RIO
Para provável desagrado do perfeccionista baiano, o baú de registros
não-oficiais de João Gilberto é grande e só tende a aumentar, por
causa das novas tecnologias de captação e difusão. O material que
circula na internet desde a semana passada tem causado alvoroço pelo
seu valor histórico, que o destaca do conjunto infinito.
Afinal, são cerca de 30 músicas (há trechinhos de
algumas e exercícios ao violão) interpretadas por João em 1958,
exatamente o ano de nascimento da bossa nova.
Acredita-se que todas tenham sido registradas pelo
fotógrafo Chico Pereira, pois ele tinha o costume de ligar seu
gravador de rolo quando o amigo João tocava -como Ruy Castro relata
no livro "Chega de Saudade"- e sua voz e seu nome são ouvidos nas
conversas.
Mas o próprio Ruy lembra que o pianista Bené
Nunes, o cantor e compositor Luiz Cláudio e outros também apertavam
o "rec" em suas máquinas quando João pegava o violão.
As gravações também não estão em estado bruto. Há
momentos de conversas -alguns divertidos, outros de difícil
compreensão- e se ouve por três segundos um cachorro latindo durante
"Um Abraço no Bonfá", mas também há uma longa sequência de músicas
tocadas com total silêncio ao fundo. Alguma edição do material deve
ter ocorrido.
Castro teve acesso a ele, ainda em fita de rolo,
em 1989, um ano antes de lançar seu livro. Outros pesquisadores
conseguiram o mesmo nas duas últimas décadas, entre eles o paulista
Sérgio Ximenes.
"Em se tratando de João, [o repertório] é sempre
mais do mesmo. Com uma qualidade sofrível, interessa mais aos
superfanáticos", diz Ximenes.
Mas ele reconhece que os empecilhos criados por
João para que suas gravações se tornem públicas aumenta o interesse
por qualquer tipo de "vazamento". Das músicas que constam do
registro caseiro, 15 apareceriam, em qualidade obviamente superior,
nos três discos de João que formam a trilogia básica da bossa nova:
dez em "Chega de Saudade" (1959), quatro em "O Amor, o Sorriso e a
Flor" (1960) e uma em "João Gilberto" (1961).
E cadê esses discos? Desde os anos 90, o músico
trava uma guerra judicial contra a EMI, pois a gravadora os lançou
numa coletânea com as faixas fora de ordem e, segundo ele, mal
remasterizadas.
Despertam mais curiosidade nas gravações de Chico
Pereira as músicas que João nunca viria a gravar, como "Chão de
Estrelas" e "Beija-Me" (ver quadro ao lado), e pequenas bossas
naquelas que se tornariam constantes depois.
Registros diversos
Quem navegar por sites de música, de leilões ou
pelo YouTube vai encontrar João cantando em Salvador, na Argentina,
na Europa... Nada com qualidade muito boa nem com profundo valor
histórico -o francês Christophe Rousseau, que remasterizou uma cópia
dos registros de 1958, está agora fazendo o mesmo com um concerto de
João no Roxy Theatre, de Los Angeles, em 1977.
Melhor é achar aquelas com inegável valor
histórico. Um exemplo: o show "Um Encontro", que reuniu na boate Au
Bon Gourmet, no Rio, em 1962, Tom Jobim, Vinicius, João e Os
Cariocas, e no qual foi lançada "Garota de Ipanema".
Em fevereiro do ano passado, cinco músicas inéditas de Tim Maia chegaram à
internet. As faixas, gravadas na época em que o cantor se filiou à seita
Universo em Desencanto, indicavam uma sequência de "Racional 1 e 2" (1975 e
1976), dois dos discos mais cultuados de Tim.
"Racional 3",
como foram batizadas as faixas, chegou à rede depois de mais de 20 anos,
quando o filho do dono do estúdio onde Tim teria feito as gravações
repassou-as para poucas pessoas.
Menos de um
ano depois, a história se repete com João Gilberto. As gravações de João na
casa de Chico Pereira, feitas em 1958, vazaram na web na semana passada.
O sueco Lars
Crantz entregou uma cópia dos registros ao engenheiro de som francês
Christophe Rousseau, que remasterizou o material e repassou ao blog Toque
Musical (toque-musical. blogspot.com), dedicado à música brasileira.
Na segunda,
dia 2, o blog disponibilizou um link para o download com o arquivo das
gravações, contextualizando-as -na sexta, no entanto, o endereço saiu do ar.
No decorrer da semana passada, diversos blogs repercutiram o assunto. O link
rapidamente se espalhou.
Desde maio
passado, no entanto, uma comunidade do Orkut disponibilizou algumas das
faixas em sucessivas ocasiões, mas com qualidade inferior àquelas
apresentadas na semana passada.
É a maior preciosidade, por causa do contraste com o que João já estava
fazendo e aprofundaria nos 50 anos seguintes. Ele canta ainda com algum
vibrato, evocando discretamente o estilo de Sílvio Caldas, e toca um violão
seresteiro, sem nenhuma batida. É um registro muito bonito, jamais adaptado
para disco. Ele comenta depois: "Nunca cantei. Acho que, de tanto ouvir,
acertei mais ou menos a letra"
NOS BRAÇOS DE ISABEL
Outra de Sílvio Caldas (mas com José Judice, não com Orestes Barbosa), é
tocada a pedido de Chico Pereira. Ele tropeça um pouco na letra, mas fica à
vontade na melodia, um samba. Nunca gravou
MÁGOA
Este é um dos sambas-canções pouco conhecidos da parceria de Tom Jobim com
Marino Pinto, infelizmente não gravado por João. Neste registro, ele mostra
total intimidade com a música, interpretada com o travo necessário. "Você
chegou tão tarde na minha vida/ Que só encontrou muita mágoa no meu coração",
diz a letra
O PATO
O samba de Jayme Silva e Neusa Teixeira, que ganharia a gravação histórica
de João em 1960, tem aqui uma versão muito divertida, em que ele cita
"Tico-tico no Fubá" e termina com efeitos típicos dos grupos vocais
"tchu-tchu, au-au" seria uma onomatopéia próxima
DORALICE
João se diverte com o samba de Caymmi, que gravaria em 1960 e cantaria pelo
resto da vida. Faz um pequeno soluço no fim do verso "Agora você tem que
me dizer" e, ao acabar a música, assinala: "Caymmi é danado!". A
pedido de Astrud, sua mulher, canta em seguida "Você Não Sabe Amar",
também do mestre baiano
BEIJA-ME
Lançado em 1944, o samba sincopado de Roberto Martins e Mário Rossi, que
voltou a ser sucesso recentemente com Zeca Pagodinho, é um prato cheio para
João, que não só o canta à perfeição como improvisa um assobio no final e,
ao conversar com Chico, exercita uma levada bossa-nova "que ainda não se
chamava assim, pois ele a estava criando" para um trecho. Também nunca
gravou
Restauradas, gravações caseiras de antes de 'chega de
Saudade' tem agitado os blogueiros
Lauro Lisboa Garcia, de O Estado de S.
Paulo
SÃO PAULO - Durante toda a semana, blogueiros de música,
colecionadores de discos e caçadores de raridades se agitaram em torno
de uma preciosidade: a lendária e cobiçada fita cassete que João
Gilberto gravou em 1958, antes de lançar a pedra fundamental da bossa
nova, Chega de Saudade, caiu na web. Disponibilizados de graça por meio
do blog Toque Musical (http://toque-musical.blogspot.com) e espalhados
por outros, até com arte para quem quiser montar um CD com capa e
contracapa, os registros realizados no apartamento do fotógrafo Chico
Pereira viraram hit entre aficionados. São 38 faixas, entre conversas do
cantor com os privilegiados que o receberam em casa, clássicos que ele
incluiria nos primeiros e imprescindíveis LPs e outras canções que
jamais gravou. Entre elas estão Mágoa (Tom Jobim/Marino Pinto), Nos
Braços de Isabel (Silvio Caldas/José Júdice), Chão de Estrelas (Silvio
Caldas/Orestes Barbosa), O Bem do Amor (Carlos Lyra) e Beija-me (Roberto
Martins/Mário Rossi).
Além da voz e do violão
de João, outros ruídos da casa aparecem vez ou outra nas gravações, como
um latido, uma porta que fecha, o rodízio de uma cortina que passa pelo
trilho, uma tosse aqui, um risinho de aprovação ali. Mas isso é o de
menos e de maneira nenhuma compromete o interesse e a importância do
registro. Considerando o tempo de existência e as condições precárias da
gravação, algumas faixas estão com a qualidade de áudio bem boas, como
Desafinado (Tom Jobim/Newton Mendonça) e Preconceito (Wilson
Batista/Marino Pinto), graças ao trabalho minucioso de Christophe
Rousseau, músico e engenheiro de som.
Rousseau não respondeu ao e-mail enviado pelo Estado
até a noite de sexta-feira para falar de seu trabalho sobre essas fitas.
No entanto, numa entrevista postada no site vitrola.blogspot.com, o
engenheiro confirma ter recebido "esse documento" de um amigo sueco que,
por sua vez, o obteve de "um colecionador cujo nome ficou protegido por
ele". Rousseau também diz que "os japoneses foram os primeiros a colocar
à venda lá nas terras deles esse documento, que se chamava João Gilberto
- Private Sessions at Chico Pereira’s House, que era caro e de péssimo
som".
Na mesma entrevista, Rousseau confessa que quase
desmaiou de felicidade quando esse material - que demorou "50 anos para
aparecer e três dias para se tornar decente" - caiu em suas mãos. "Foi
com duas ferramentas profissionais de tratamento sonoro que consegui
fazer renascer o som de baixo do barulho analógico das bandas Basf:
primeiro o excelente BBE americano hardware Sonic Maximizer and Noise
Reduction e o programa da Sony chamado Sonic Mastering Studio",
esclareceu o engenheiro uruguaio. No programa Metrópolis (TV Cultura) de
sexta-feira, Rousseau disse em gravação via webcam que faz questão de
entregar essa fita a João Gilberto, com a certeza de que ele adoraria.
Segundo o blogueiro do Toque Musical, que prefere ser
identificado apenas como Augusto, um tempo atrás Rousseau o procurou
propondo a disponibilização do material restaurado em seu blog. "Sei que
vai ser uma bomba, porque todo mundo vai querer", teria dito Rousseau.
"Quando coloquei no ar sabia que ia dar impacto, mas não esperava tanto.
Minha intenção é de que as pessoas saibam da existência disso", diz
Augusto, que se confessou receoso da ação, por conta de implicações
legais, embora seu blog não tenha fins lucrativos.
Os internautas se depararam com uma certa dificuldade
para baixar o material, pois os links são retirados e renovados a cada
12 horas por Augusto. "Retirei para evitar qualquer problema, porque vi
que as pessoas estavam retirando em outros lugares também. Se por acaso
alguém - o empresário do João Gilberto ou ele mesmo - pedir, eu retiro
imediatamente. Não tenho a menor intenção de prejudicar a carreira dele
ou qualquer coisa nesse sentido."
Augusto acredita que a imprensa também "botou fogo" na
história para aumentar a repercussão. "Mas tudo bem, faz sentido, porque
isso é uma gravação que ninguém conhecia. E quem tem interesse mesmo são
as pessoas ligadas à bossa nova, fãs de João e gente que entende de
música", diz.
Procurado pela reportagem do Estado, o empresário de
João Gilberto, Octávio Terceiro, afirmou que tanto ele como o cantor
desconheciam o fato de a fita ter caído na rede e pediu que o link lhe
fosse enviado por e-mail para que pudesse ouvir. Não houve tempo. No
início da noite de sexta-feira, o Toque Musical estava fora do ar,
restando apenas uma mensagem aos usuários: "Você em breve irá receber um
e-mail, aguarde..."