Notícias
"Garapa" mostra a fome no Nordeste do Brasil sem filtro intelectual

13/02/2009

 

 

O documentário "Garapa", de José Padilha, que está na mostra Panorama do Festival de Berlim

 

ALESSANDRO GIANNINI
Enviado especial a Berlim
 
Vencedor do Urso de Ouro no ano passado com "Tropa de Elite", José Padilha volta à Berlinale com o documentário "Garapa", parte da seção Panorama Dokumente do festival. Exibido pela primeira vez nesta quarta (11), o filme causou forte impressão na platéia mista formada pelo público regular e jornalistas. É um retrato cru e avassalador dos efeitos da fome em famílias pobres do Nordeste do Brasil. E se encaixa perfeitamente no escopo politicamente engajado da 59ª. edição. Rodado em preto e branco, sem grandes recursos visuais e nenhuma trilha sonora, distancia-se muito de "Ônibus 174", filme que projetou a carreira do diretor no Brasil e no mundo.

Padilha apresentou a sessão e, depois da projeção, respondeu a algumas perguntas. Ele disse que teve a idéia de fazer o documentário a partir de conversas com um amigo que trabalha na organização não governamental IBase e coleta dados sobre a fome no Brasil. O cineasta decidiu, então, mostrar de maneira objetiva quais os efeitos desse círculo vicioso que atinge, segundo dados da ONU, 950 milhões de pessoas no mundo inteiro.

"Gosto do cinema porque [é um meio que] consegue colocar o espectador em outros universos apenas pela empatia criada com os personagens, sem filtros intelectuais", explicou ele, antes de o filme começar. "Em 'Guerra nas Estrelas', por exemplo, somos capazes de nos transportar para batalhas espaciais pela identificação com Luke Skywalker. Aqui, eu usei os recursos do cinema direto para fazer com que os espectadores experimentem os efeitos da fome em famílias que ficam dias sem comer."

"Garapa" acompanha a rotina de três famílias pobres do nordeste brasileiro que vivem diariamente o círculo vicioso da fome. Parte desse ciclo está no fato de que os pais usam o recurso da "garapa" - água com açúcar levemente quente - para enganar o estômago das crianças e dar a elas energia para passar o dia. "A questão aí é que isso não resolve o problema", explicou ele. "E essas crianças crescem mal nutridas, sem condições de aprender e de disputar espaço no mercado de trabalho."

Outra questão em que o filme toca é o programa Fome Zero. Apenas uma família entrevistada recebe o benefício do governo. Mesmo assim, Padilha, cuja voz ocasionalmente surge em off, questiona os entrevistados a respeito de como usam os R$ 50,00 recebidos mensalmente.

"É uma iniciativa do governo que evita o assistencialismo e as grandes ações - o que eu acho muito bom", explicou ele a um espectador que pediu mais detalhes sobre a iniciativa federal. "Antes disso, havia 30 milhões de pessoas abaixo da linha da miséria no país. Hoje, esse número caiu para 11 milhões. Não resolveu o problema, mas é um passo importante que foi dado nesse caminho."

(© UOL Cinema)

 


"Não é um filme com que eu fique feliz"

José Padilha diz que "Garapa", sobre a fome, exibido em sala lotada na Berlinale, trata do "mais grave problema social da atualidade"

Documentário brasileiro foi considerado "triste" pelo público, que quis saber do Fome Zero e aplaudiu quando diretor questionou políticos

SILVANA ARANTES
ENVIADA ESPECIAL A BERLIM

A primeira sessão de "Garapa" no 59º Festival de Berlim, anteontem, começou com calorosa acolhida ao diretor José Padilha ("Tropa de Elite").

"Esta é uma noite especial, porque estamos recebendo o vencedor do Urso de Ouro do ano passado, com um documentário impressionante", disse Wieland Speck, diretor da mostra Panorama, a uma plateia que se espalhava até pelas escadas do cinema.

Speck recomendou ao público que não se esquecesse de depositar o voto com a avaliação do filme, ao final, e lembrou que por três vezes um documentário venceu o Panorama.

Duas horas mais tarde, um pesado silêncio acompanhou o fim da projeção do filme, que acompanha três famílias sujeitas à fome no Nordeste brasileiro e se encerra com a estimativa de que, durante o tempo da sessão, "1.400 crianças morreram de causas relacionadas à fome ao redor do mundo".

"Vamos dar ao público um tempo para lidar com o que acaba de ver", sugeriu o mediador do encontro de Padilha com os espectadores.

O cineasta brasileiro salientou que ""Garapa" não é um filme local", já que situações semelhantes se repetem "na China, na Índia, na África", onde o problema da fome atinge parcela da população.

O público quis saber sobre o programa Fome Zero, mencionado no longa. Padilha disse que a iniciativa federal alcançou bons resultados no combate à fome e que a maior qualidade do projeto reside na simplicidade. "É um programa que dá dinheiro a pessoas muito pobres. Em geral, governos se atrapalham ao tentar fazer coisas complicadas", afirmou.

Quando questionado sobre por que filmou "Garapa" em preto e branco, ele respondeu: "Decidimos tirar do filme tudo que não fosse fundamental".

Padilha avalia "que a fome é o mais grave problema social da atualidade" e repisou cifras citadas no filme: "A solução do problema da fome exigiria um investimento de US$ 30 bilhões por ano; em 2008 o mundo gastou US$ 1,5 trilhão em armas. Acho que isso diz muito sobre a raça humana".

A plateia aplaudiu quando o diretor disse julgar que "esse problema só será resolvido quando os políticos forem colocados numa situação de não mais se elegerem se não derem uma solução para ele".

Poder de comunicação

Antes da exibição de "Garapa", Padilha apontou a empatia do público com os personagens como o pilar do poder de comunicação do cinema. "Você pode usar isso em filmes para entreter e pode também usar para dar [ao público] consciência de problemas sociais."

A intenção de "Garapa", explicou, "é ver a fome não por uma perspectiva intelectual, mas do ponto de vista dos que têm que viver com ela".

Ao recuperar a palavra, o público deixou a sala repetindo adjetivos como "triste" e "forte". Ontem, Padilha passou o dia dando entrevistas a órgãos de imprensa de vários países. Apesar do interesse que "Garapa" despertou, Padilha disse à Folha: "Esse não é um filme com o qual eu possa ficar feliz".

(© Folha de S. Paulo)


Garapa não adoça a fome do Nordeste

Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com

A principal participação brasileira no 59º Festival de Berlim 2009 é o documentário Garapa, de José Padilha, exibido na mostra paralela Panorama Dokumente. Padilha, claro, volta ao festival que, ano passado, concedeu o Urso de Ouro ao horroroso Tropa de Elite, seu filme anterior, e sua primeira incursão na ficção. De volta ao relato documental (surgiu em 2002 com o riquíssimo Ônibus 174), Padilha provavelmente irá provocar debates outra vez com seu filme novo, que usa o cinema para apresentar um retrato literal, letra por letra, da fome, utilizando como personagens registrados três famílias cearenses do interior, vivendo em condições subumanas que a câmera intimista mostra em detalhe e em preto e branco.

O filme abre com uma citação ao sociólogo pernambucano Josué de Castro, que reflete sobre a existência de duas fomes: a ausência de comida que leva o organismo a definhar, e à fome constante composta pela má alimentação que levará, de outra forma, ao colapso do organismo a longo prazo.

Curiosamente, o tema “fome” está abordado brilhantemente na atual safra de cinema internacional pelo cineasta inglês Steve McQueen, a partir de um cenário sensorial, humano e político no seu Hunger (fome), sobre os protestos na Irlanda do Norte em 1981 que levaram o membro do exército republicano irlandês Bobby Sands a definhar via greve de fome autoimposta.

Garapa, no entanto, aborda um cenário brasileiro social crua e diretamente, o que talvez seja o maior problema do filme. Como uma espécie de cronista nacional de “grandes temas” sociais (a violência em Ônibus 174 e Tropa de Elite), Padilha se debruça sobre a fome de maneira literal. Não há depoimentos ou gráficos no filme, mas uma câmera abelhuda que se mistura ao cotidiano das três famílias, onde acompanhamos crises conjugais, acusações de traição, abandono e, especialmente, à alarmante não-dieta dos personagens.

Em close-ups de microscópio, vemos as perebas nos rostos e torsos de crianças, disputadas por moscas, uma colher cheia de açúcar servida a um garoto pequeno pela sua mãe, que nos informa que o feijão é tão ruim que não seria má idéia carregá-lo numa espingarda. Acompanhamos a longa caminhada de duas mães que voltam para casa sem leite, pois o estoque havia acabado na venda.

Cria-se, portanto, uma narrativa minimamente dramática e cresce no espectador o desconforto não tanto pela dureza do tema, mas pela sensação de a linguagem proposta (close-ups da fome e suas consequências na intimidade das três famílias) ganhar contornos de um reality show do inferno, não muito diferente em forma do que vemos no canal Sony ou MTV. Nesse sentido, o filme é limitado, é cinema pobre, e que isso não seja confundido com a condição social dos personagens que, em momento algum, nos lembra que as mazelas de uma sociedade podem, talvez, estar ligadas à total falta de educação, falta esta que leva à falta de cidadania.

Um pai de família, por exemplo, é alcoólatra e capaz de vender as portas e janelas da casa. Ele talvez tenha sífilis, assunto discutido longamente durante uma visita da sua esposa (com três filhas pequenas) a uma assistente social. O papel do governo (Lula), cuja logomarca abre o filme (“Governo Federal – Um Brasil de todos”) ganha destaque com pelo menos um depoimento onde fica claro que o Fome Zero é a único auxílio que tantas famílias têm na sua subexistência.

Ainda mais problemático o filme torna-se quando essas tragédias de vidas privadas e destituídas de cidadania são interrompidas pela voz de Padilha (na locação) fazendo uma pergunta ao seu personagem como, por exemplo: “O senhor quer ter mais um filho?”. Acreditamos que o cinema é bem mais livre e rico de possibilidades do que Garapa poderá levar alguns espectadores a crer, um cinema que usa as amplas possibilidades do meio para falar sobre a condição humana sem necessariamente usar a imagem pelo que ela é, e nada mais além disso.

Sobre cinema, e vendo as imagens em preto e branco ultra-granulado (clichê pós-moderno da realidade dura, de uma imagem crua, ou “crua” numa época da tecnologia de cinema que permite que um adolescente filme em alta definição colorida), e os sons efetivamente “mono” do filme (algo destacado por Padilha na sua apresentação do filme no Cine Star 7, em Potsdamer Platz, onde o filme passou ontem à tarde), e ainda um letreiro final que impõe silêncio sepulcral na sala, é impossível não resgatar um pouco da história do próprio cinema brasileiro através do manifesto de Glauber Rocha, A estética da fome.

A reportagem do JC perguntou a Padilha ao final da sessão sobre como ele teria chegado àquele conceito de crueza usado em Garapa, e se ele pensou na reflexão de Rocha sobre um cinema cuja imagem estaria à altura da identidade cultural de um terceiro mundo que precisa ser retratado.

“Eu nunca li o manifesto de Gláuber. Eu não me interesso por manifestos, não acho que faz parte do meu trabalho dizer a outros colegas cineastas como se deve filmar, estabelecer regras, não obstante o fato de eu respeitar muito Gláuber. O conceito desse filme foi fazê-lo da maneira mais simples possível, subtraindo tudo o que não é essencial ao processo, como cor, um som cru que sai apenas da tela, nenhum efeito digital. Tudo isso reflete a ausência de tudo que aflige essas pessoas, o que explica o conceito por trás desse filme.”

» O repórter viajou a convite do Consulado da Alemanha no Recife

(© JC Online)


Com relação a este tema, saiba mais (arquivo NordesteWeb)


powered by FreeFind