|
O produtor francês
Rémy Kolpa Kopoul
|
Músico Alceu Valença e o amigo,
crítico, DJ e produtor francês Rémy Kolpa Kopoul fazem balanço
de reencontro
Marcos Toledo
mtoledo@jc.com.br
Amigos há três décadas, o cantor e compositor pernambucano Alceu
Valença e o crítico musical, DJ e produtor francês Rémy Kolpa
Kopoul protagonizaram uma série de encontros memoráveis na
última semana. O Bicho Maluco Beleza recebeu o amigo que,
acompanhado de sua comitiva internacional de jornalistas,
produtores e aficionados pela música brasileira, foi agraciado
com várias homenagens. Na sexta-feira passada, a dupla voltou a
se encontrar no hotel Beach Class, em Porto de Galinhas, onde,
por meio de um bate-papo informal, fizeram um balanço de 30 anos
de amizade marcados pela comunhão e, claro, pela boa música.
Alceu, todos sabem, dispensa
apresentações. Aos 62 anos de idade, 40 de carreira, é um
artista que está sempre se reinventando, mas sem deixar sua
essência. Prova disso: 1) As dezenas de milhares de pessoas que
sempre arrasta para seus shows, agora só possíveis no Recife em
palcos como o do Marco Zero, 2) A realização de obras como o
mais recente álbum Ciranda mourisca (Tropicana/Biscoito Fino,
2009), resultado de uma releitura da própria carreira marcado
pela maturidade, sensibilidade e bom gosto musical.
Já Rémy, 60 anos, apesar do
português fluente, com pouquíssimos escorregos, e de demonstrar
conhecimento profundo da música brasileira, especialmente a
nordestina, e muito mais ainda a pernambucana – algo que começou
há exatos 32 anos –, ainda é pouco conhecido dos pernambucanos.
A trajetória de RKK é marcada
pela descoberta e divulgação de artistas pelo mundo, sempre
sobrepujando a obviedade. Ex-crítico musical (e fundador) do
jornal francês Libération, Rémy perdeu o pai quando tinha 7 anos
de idade. Dele herdou três anos depois uma discoteca cujo acervo
trazia discos de Edith Piaf, Yves Montand, Count Basie, Duke
Ellington, Charlie Parker, Django Reinhardt e Bill Halley and
His Comets. A coleção ele mesmo começou a completar participando
de concursos de rádio, outra fonte essencial no início de sua
formação e um veículo no qual também passou a atuar já como
profissional.
Se não fosse jornalista, talvez
fosse arqueólogo ou garimpeiro. Pois foi assim que RKK passou a
se interessar pelo vasto mundo que o esperava mais ainda fora da
França num um período em que talvez apenas poucas cabeças
pensassem no que viria a se tornar a internet. Um hábito que
nunca guardou só para si. Seja como jornalista e, mais
recentemente, como DJ, faz questão de compartilhar tudo aquilo
que considera bacana na música.
Como produtor, realiza
coletâneas, como a recente Latino del futuro (Naïve, 2008), que
traz releitura de música latina por artistas de várias
nacionalidades, entre eles da França, EUA, Colômbia, Cuba,
Jamaica, Inglaterra, Finlândia e Islândia. “É como fazer um
cardápio. É colocar coisas juntas e dar um sabor”, define. Como
crítico, aposta no mesmo tempero. “Tenho uma regra simples de
dizer como eu gosto e porque eu não gosto. Quando você tem o
respeito do ouvinte, do leitor, é porque argumenta”, explica.
“Quando você gosta, é só passar o sabor do que está escutando. É
uma regra simples, mas sempre tenho isso na cabeça. E claro que
a música tem a ver com o que está acerca dela. Tem que passar a
experiência, tem que passar as histórias. Eu gosto de contar as
histórias. É dividir as coisas e abrir as cabeças”.
A relação da geração dos anos 70
e a atual
Na conversa informal entre os
amigos Alceu Valença e Rémy Kolpa Kopoul, eles lembraram a época
em que se conheceram, no fim dos anos 70, e discorreram sobre
suas impressões coletadas ao longos de três décadas vivenciando
a música ao redor do mundo, principalmente em Pernambuco.
RKK recordou que, em 1977, dois
anos antes de conhecer o músico em Paris, fez a primeira viagem
ao Brasil começando a pesquisa por Pernambuco. “Recebi endereços
daqui através da Teca Calazans, que mora na França há décadas.
Fui parar na casa de um jornalista do seu jornal, o Celso
Marconi. Com não sei quantos milhares de discos, mergulhei na
discoteca dele, o que ele tinha, não só de Brasil, de todo o
mundo”, contou. “O motivo foi descobrir o Brasil, simplesmente.
Porque eu tinha me aproximado ao Brasil através dos exilados
políticos na França.”
Entre momentos marcantes dessa
passagem pelo Estado, RKK guardou encontros com a cantora Zélia
Barbosa e Dom Helder Câmara. Juntando essa e mais cinco ou seis
oportunidades em que pode retornar ao Brasil, mais as incursões
dos brasileiros que presenciou na França, Rémy avaliou que em
todas as vezes viu passos marcantes para o estreitamento da
relação cultural entre os dois países. Aqui, chegou a ser
recebido pelo ex-governador Miguel Arraes, lá participou de
shows históricos de brasileiros. Alceu sempre presente.
“Tinha uma percepção parcial da
música brasileira e fiquei mais ligado a particularidades da
música na Bahia e do que acontece no Nordeste, a partir do
Recife”, afirmou RKK. “Descobri a singularidade do que tem aqui,
que não tem igual no Brasil, porque são mais ritmos e expressões
diferentes de qualquer lugar do País.”
O jornalista, que participou de
movimentos políticos na França, nos anos 60 e 70, vê uma ligação
daquela geração com a que despontou nos anos 90. “O lado
subversivo da cultura e da música tem novo visual hoje. Com a
chegada da música eletrônica, com novos ingredientes sintéticos
que vão pegando das raízes, como é o caso do DJ Dolores e
Silvério Pessoa. É uma continuidade muito interessante de uma
afirmação de um lado realmente singular de uma cultura
nordestina”, considera Rémy, que destaca ainda o trabalho de
Antônio Nóbrega, Fred 04, Nação Zumbi, Junio Barreto, Renata
Rosa e Alceu Valença que, para ele, é um artista único.
“Enquanto tiver gente como ele por um lado e gente nova que não
entra num lado uniformizado, que reivindique novos territórios,
sou otimista”, profetiza RKK. (M.T.)
(©
JC Online)
As vozes de Alceu Valença e do
amigo Rémy Kolpa Kopuoul
RÉMY - Meu coração é em pedaços. Meu coração... Concordo total
com que Gilberto Gil já contou: "O melhor lugar do mundo é aqui
e agora". E mais ainda agora, quando é aqui no Brasil.
ALCEU - Conheci Rémy quando ele
estava se interessando pela música brasileira. Estava estudando
a música brasileira, na década de 70, em 1979. Conheci os amigos
dele - ele era redator do Libération -, conheci em Paris...
RÉMY - Era uma turma de
jornalistas franceses muito ligada ao Brasil. Nós éramos muito
juntos. Trocávamos as informações, tudo e, inclusive, a primeira
viagem que fiz ao Brasil, que foi dois anos antes, em 1977,
recebi endereços daqui através da Teca Calazans, que mora na
França há décadas, então fui parar na casa de um jornalista do
seu jornal, o Celso Marconi, que, com não sei quantos milhares
de discos, mergulhei na discoteca dele, o que ele tinha, não só
de Brasil, de todo o mundo. Foi a primeira vez no Brasil e em
Pernambuco. Fiz três meses na Califórnia, depois peguei o avião
para Manaus, peguei o navio para Belém, peguei o avião para
Recife, depois Salvador e Rio de Janeiro. Foi a primeira viagem
no Brasil. O motivo foi descobrir o Brasil, simplesmente. Porque
eu tinha me aproximado ao Brasil através dos exilados políticos
na França. Inclusive um deles sendo pernambucano, que eu queria
rever, Carlos Henrique Maranhão.
ALCEU - Ele (Carlos) estava
morando e estudando cinema lá, em 1979. Encontrava muito ele
quando estava lá.
RÉMY - Dessa primeira viagem,
foi "uma noite em Paris" inesquecível da minha vida. Fui parar
num ex-presídio transformado em museu na cidade (Casa da
Cultura). Encontrei o diretor, que me convidou em casa, com a
mulher falando francês, e descobri que a mulher dele era uma
moça que tinha estudado na França e tinha gravado um disco, mas
na verdade sem ser cantora, e esse disco, de músicas de sertão e
de protesto (Chico Buarque, João do Valle), se tornou um grande
sucesso, totalmente desconhecido no Brasil: Zélia Barbosa.
ALCEU - Zélia Barbosa! Foi
daqui. Cantava ali no TPN (Teatro Popular do Nordeste). Não
sabia que ela tinha ido pra Europa.
RÉMY - Ela gravou um disco
assim por acaso, que se tornou um símbolo da música do Brasil.
Conversando com ela - falava francês e eu pouco português -, o
assunto chegou sobre Dom Helder Câmara. Ela me disse: "Dom
Helder Câmara? Eu faço parte de comunidade de base com ele. Você
quer falar com ele?". Ela ligou, ele estava disponível, acabei
no quartinho dele. Foi um dos encontros mais comoventes da minha
vida, porque, passar duas horas conversando com Dom Helder
Câmara, bom... sabe? Isso foi o primeiro passo com Pernambuco. O
segundo passo foi quando Alceu veio na França, que ele
participou, em 1979, do primeiro festival brasileiro que já
houve na França, em Paris. Dois dias com toda a brasileirada de
Paris mais ele. Foi no Pavillion Baltar. Depois, um outro passo
importante foi quando surgiu o projeto do Bicentenário da
Revolução Francesa, nos Champs-Elysées, em Paris. Fui procurar o
cara que ia chefiar isso, com uma ideia de pôr Pernambuco no
Champs-Elysées. O cara não conhecia aquele som, eu trouxe um
vídeo, ele ficou muito interessado e, duas semanas depois, ele
fez a primeira viagem de tudo, no Pernambuco, e fomos recebido
pelo governador Miguel Arraes, e inventaram um Carnaval de 200
metros, fora da época do Carnaval, só para mostrar para a gente.
Ele ficou superinteressado e chegou um momento que ele teve que
decidir se ia ser América Latina ou África, no Champs-Elysées.
Foi África, mas foi um outro passo importante. Aí, fortaleceu
nossa amizade entre a França e o Brasil. Teve, em 1989, meu
aniversário que, na verdade eu passei por Recife e disse: "Vou
comemorar meu aniversário no Rio de Janeiro". E Alceu ficou puto
- "Como, Rémy, não vai comemorar aqui?". Eu disse: "Non". Aí,
chegou o projeto de turnê de aniversário. Fiz Rio de Janeiro, no
dia seguinte embarquei no avião, Salvador, no dia seguinte
embarquei no avião para aqui. Quando desembarquei do avião aqui,
tinha comitiva, banda de música, boneco, e ele (Alceu)
fantasiado de pierrô, e desfilamos de carro aberto, de Boa
Viagem até Maria Farinha.
ALCEU - Ele conhecia eu aqui, e
conhecia um primo meu, que eu tinha feito uma excursão na
Europa. Eu disse a ele: "Clávio, vai esperar Rémy". Botei uma
banda de música para tocar. Aramis Trindade (o ator) passava
muito tempo lá em casa e estava fazendo O burguês fidalgo. Aí
ele pegou as roupas de O burguês fidalgo e levamos tudo para lá.
Quando ele (Rémy) aparece naquele aeroporto velho, ele fica
procurando e não me encontra, encontra com Clávio. E eu com o
pessoal com walk-talk: "Atacar!". Quando ele saiu, não estava
entendendo nada. Veio uma orquestra para cima dele (Alceu
solfeja início de Cisne branco, hino da Marinha do Brasil). Com
medo da orquestra, ele olhando assim, a orquestra começou a
rodar em torno dele, ele sem entender nada. De repente veio o
povo todo fantasiado, entramos numa carreata, mas não era
Carnaval. Um manto, ele vestido de rei e eu de velho de pastoril
e fomos embora. Quando passamos pela Avenida Boa Viagem, o povo
dava adeus. Por causa de mim também, né? Pensavam que era
Carnaval. O povo veio para ver que porra era aquilo. Uma
loucura. Quando chegou em Maria Farinha, para atravessar, não
tinha a balsa. Preparei aqueles remadores, com aqueles caras
fantasiados do século 17, e fomos para a festa. Era a orquestra
de Duda. E tinha dois bonecos de Olinda na balsa e escondi dele.
Quando veio a balsa já era cinco horas da tarde. Aí, abriram-se
as portas, de repente o frevo comeu no centro.
RÉMY - Eu tinha uma percepção
parcial da música brasileira porque para conhecer isso precisa
de muito tempo, precisa andar na terra, escutar o que acontece.
Fiquei pouco a pouco mais ligado a particularidades da música na
Bahia e do que acontece no Nordeste, a partir do Recife.
Descobri maracatu, caboclinho, xote, coco, tudo isso, a
diferença de cada um, e a riqueza e a singularidade do que tem
aqui, que não tem igual no Brasil, porque são mais ritmos
diferentes, mais expressões diferentes de qualquer lugar do
Brasil. Depois, eu vim aqui uma cinco, seis vezes, também
recebendo discos, entrevistando ou recebendo artistas porque
houve Geraldinho Azevedo, Quinteto Violado... Luiz Gonzaga
recebi pessoalmente em Paris, que tocou junto contigo (fala para
Alceu), em 1986, no ano do Brasil.
ALCEU - A coisa maior que foi
feita pelo Brasil na França foi o Couleur Brésil. O Brasil
perdeu a oportunidade muito grande de mostrar o que é belo do
Brasil, o que é verdadeiro, o que é genuíno. Eu fui para lá
porque briguei com todas as gravadoras. Quando fui para lá, eu
ia acontecer em Paris, tinha certeza absoluta. Mas tinha que
voltar porque ou eu ficava lá tomando caipirinha a vida toda,
curtindo com os amigos e comendo feijoada, ou então voltava e ia
cuidar da minha carreira. Aí vim e aconteceu. Pipocou Coração
bobo. Encontrei com Rémy no festival da Suíça, em Montreux, fui
para Nice, ia acontecer. Só que em 1986 houve a mudança da
diretriz da indústria cultural brasileira de música. Tiraram os
maestros, que eram diretores artísticos, pessoas que gostam de
música, como Rémy, e colocaram gente vendedora de sabonete,
vendedor de bacalhau, executivos frios, que destruíram a música
brasileira e eu não quis me destruir. Por isso, deixei as
gravadoras e fui trabalhar o Brasil pelos interiores. Por isso é
que minha carreira é totalmente diferente. Independe do rádio,
independe de tudo. O Brasil tinha um mercado de US$ 1 bilhão de
dólares com 80% entregue na música MPB, com a diversidade da
música como Fafá de Belém, Fagner, Belchior, Ednardo, Alceu
Valença, Geraldo Azevedo, Elba Ramalho, Zé Ramalho,
Dominguinhos, Djavan, Caetano, Gil, Gal, Moraes Moreira, Chico,
Luiz Gonzaga, Milton, Toquinho, Vinicius de Moraes. Em 1986
cortaram todos, porque a música brasileira tinha todo um perfil
de esquerda ou de nacionalista. Eles tinham medo de cubanização.
Veio uma nova história que destruíram as músicas, o rádio já
virou outra coisa, virou um negócio de tendência e trocaram
Chico Buarque pelo Ursinho Blau Blau. Atualmente há uma nova
tendência, que vem da internet em que as coisas começam a se
misturar de uma outra maneira.
RÉMY - Fui introduzido na
música brasileira pelos exilados, mas vim aqui um pouco depois.
A primeira vez foi em 1977, que ainda era ditadura, mas já não
tão dura. Participei muito desses movimentos na França, em 1968,
nos anos 70, e o que me tocou mesmo foi que aqui houve uma
resistência à ditadura de dois tipos: político, mas também
subversivo no sentido artístico. O tropicalismo, por exemplo, um
Caetano, um Tom Zé, um Gil tiveram uma postura muito
interessante porque não foi diretamente ligada a partidos
políticos. Até no caso de Caetano, que teve antagonismo, mas que
eram dois lados de uma mesma resistência.
ALCEU - Existia uma dicotomia
aí, que eu nunca entendi. Eu achava que poderia conviver uma
música mais tradicional, que era a música do Chico, do Vandré,
que era a música que Elis Regina cantava, com o tropicalismo. Em
determinado momento houve um racha no Partido Comunista, que
ficou mais ao lado dessas coisas de raiz, e as vanguardas
ficaram tentando outras linguagens de resistência e artísticas.
Acho essa briga absolutamente boba, porque dois anos depois
acabou. Quando Caetano voltou de lá já fez um show com Chico.
RÉMY - Para mim, esse lado
subversivo da cultura e da música em si mesma tem novo visual
hoje. Com essa chegada da música eletrônica, com novos
ingredientes sintéticos, mas sintéticos que vão pegando das
raízes, como é o caso do DJ Dolores, ou Silvério Pessoa, é uma
continuidade muito interessante, porque é a continuação de uma
afirmação de um lado realmente singular de uma cultura
nordestina.
ALCEU - O DJ Dolores trabalha
com uma coisa que ele conhece profundamente, que é a rítmica
pernambucana, nordestina - ele é de Sergipe - e introduz outros
elementos, mas usando-os de uma maneira em sintonia com o que
ele quer. O que é detestável chama-se colagem. Isso não é nada.
Quando você consegue misturar os elementos, fica tudo perfeito.
Agora, por que tem todo o tempo no Brasil a mania da mistura?
ALCEU - A questão da pessoa ser
intuitiva é que ela começa a ser problemática. Eu tive uma sorte
terrível de ter nascido em 1946, quando não existia essa porrada
tão grande. Lá em São Bento do Una eu ouvia as coisas da minha
terra de uma maneira natural. Essas coisas não pertenciam a
ninguém, mas ao consciente coletivo. Um cara dava um aboio,
outro cara tocava uma sanfona pé de bode. Aquilo passou para mim
sem o ídolo. O grande problema do artista é o ídolo. Não quero
que ninguém se espelhe em mim. Eu sou meu próprio espelho com
minha loucura.
RÉMY - Alceu é o único artista
que quer ficar inato de influência e não quer ser influenciado
por outro.
ALCEU - Hermeto Pascoal também.
Eu aprendi com Hermeto.
RÉMY - Mas ele me encheu o saco
às vezes porque eu queria que ele escutasse...
ALCEU - O en passant é
fantástico. Para ele (Rémy) não. O DJ é outro papo. Quantas
misturas eu tenho? Eu tenho de José, Severino e Raimundo que
tocavam aboio; do cara que toca sanfona, do cara que toca
rabeca, ouvindo en passant as coisas todas. Estou ouvindo os
Beatles agora, porque meu filho, Rafael Montenegro Valença, está
aprendendo os Beatles na escola. Descobri, inclusive, os plágios
da música brasileira. Tem o Bob Dylan, que era muito famoso, e a
tal da Joan Baez. Chego na Suíça e o cara da televisão pergunta
para mim: "Alceu, o que você acha de cantar depois de Joan
Baez?". E eu disse: "Pergunte o que ela vai achar de cantar
depois de mim". Outra vez foi com Prince, aqui, no Rock in Rio.
Terminei ganhando o prêmio da imprensa mundial com o melhor show
do festival. Dentro do rock, sem fazer rock. Uma coisa que adoro
em Rémy é que ele tem uma noção do geral. Ele conhece a música
africana, árabe, americana, brasileira, cubana, conhece tudo. Se
ficar só em cima de uma pessoa, de um ídolo, vai perder a noção
de tudo.
RÉMY - Antes da tecnologia tem
a curiosidade. Meu trabalho como jornalista, como radialista,
sempre foi o de correr atrás das informações de todo canto do
mundo, recebendo o disco ou indo na terra de qualquer um, juntar
tudo isso e pôr à disposição dos ouvidos, das pessoas. E
incentivar essa curiosidade. Isso é incentivar a tolerância.
Tolerância é a palavra chave.
RÉMY - Adoro o trabalho de
Antônio Nóbrega, porque acho que tem a ver com teatro, com
música. É um agitador. Dentro das novas gerações, DJ Dolores,
Fred 04, Nação Zumbi. Essa geração sacode. Silvério Pessoa tem
um lado da nova geração de Alceu Valença, mas tem também uma
agilidade para usar as novas tecnologias no palco para
transformar um xote em reggae num instante. Ele tem o
conhecimento e a sabedoria que é a tecnologia. O Junio Barreto
também acho muito interessante, porque abre outros caminhos. A
Renata Rosa também. Entre os anos 70 e a metade dos anos 90 não
houve uma renovação muito grande. No Brasil existe uma
singularidade que pouca gente nota. Os artistas que têm uma
posição internacional todos têm mais de 60 anos. É muito
engraçado isso num país tão jovem.
ALCEU - O Brasil não se
preocupou em se colocar lá fora. E essas pessoas foram por conta
delas, através do exílio e depois deles mesmos. Nunca houve
interesse da indústria do disco de internacionalizar a música
brasileira.
RÉMY - Está numa fase muito
interessante. Quando vejo no Marco Zero Alceu cantando, olho um
povo participando disso, que tem 20, 22 anos. E para esse povo
Alceu não é um vovô.
ALCEU - E não sou, porque meu
filho mais novo tem 7 anos.
RÉMY - Enquanto tiver gente
como ele (Alceu), por um lado, e gente nova que não entra num
lado uniformizado, que venha reivindicar novos territórios, sou
otimista.
PLUS RÉMY
FORMAÇÃO - Meu pai morreu
quando eu tinha 7 anos. A partir dos 10 anos eu tive a
autorização da minha mãe de futucar na discoteca de meu pai. Era
Edith Piaf, Yves Montand; também muito jazz - Count Basie, Duke
Ellington; bebop - Charlie Parker; e Django Reinhardt, cigano.
Ele (o pai) morreu em 1956 e tinha um disco, um single, de Rock
around the clock, de Bill Halley. Fiquei muito honrado, porque
meu pai morreu em 1956, com 41 anos, e comprou um disco de rock.
Ele tinha ouvidos muito abrangentes. Isso eu ganhei dele direto.
Ganhei com a discoteca, ganhei também escutando rádio, porque
minha cultura básica de música era rádio, fazia (participava de)
concurso na rádio para ganhar meus discos. Eu tinha 14 anos.
Minha formação foi realmente muito ampla.
O CRÍTICO - Tenho uma regra
simples de dizer como eu gosto e porque eu não gosto. Quando
você tem o respeito do ouvinte, do leitor, é porque argumenta.
Quando você gosta, é passar o sabor do que está escutando. É uma
regra simples, mas sempre tenho isso na cabeça. E claro que a
música tem a ver com o que está acerca dela. Tem que passar a
experiência, tem que passar as histórias. Eu gosto de contar as
histórias. É dividir as coisas e abrir as cabeças.
O PRODUTOR - Eu produzo
coletâneas. É como fazer um cardápio. É colocar coisas juntas e
dar um sabor.
FUTURO - Devo voltar em maio.
Não sei se vou passar por Pernambuco. É capaz de ir para São
Luís, no Maranhão.
GRATIDÃO - Fui homenageado na
casa dele (Alceu) e no palco do Marco Zero, que foi muito
emocionante, porque me deu a oportunidade de agradecer ao povo
pernambucano de ter recebido não só eu como minha comitiva.
(©
JC Online)
|