DELLANO RIOS
Repórter
Cinco anos após sua morte, a obra do poeta Patativa
do Assaré encontra espaço em editoras locais e nacionais
A vida e a obra de Patativa do Assaré se prestam a múltiplas
leituras. Uma conversa com as pessoas que conviveram com ele, em
Assaré, revelam um personagem identificado com os valores de sua
terra, com a vida do campo. Leitura diferente é a dos estudiosos que
se debruçaram sobre a obra, que acabaram por imprimir uma marca de
sofisticação em sua criação.
Há, no entanto, pontos de convergência. O mais expressivo deles é a
capacidade de criação ininterrupta, associada a uma memória
prodigiosa. Patativa sabia cada um de seus livros de cor. Conhecia
cada verso de seus poemas publicados, nos 13 livros que compõem sua
bibliografia básica. O impresso se apresenta como síntese, em
oposição à abundância do oral.
A voz se fez letra
Até o começo da década de 1950, Patativa do Assaré pouco escrevia
seus versos. Com exceção dos cordéis editados, o poeta confiava suas
criações à memória. Por incentivo do latinista José Arraes de
Alencar, que o ouvira improvisar na Rádio Araripe, o poeta organizou
sua primeira coleção de poemas. O próprio Alencar viabilizou a
publicação do primeiro livro de Patativa - “Inspiração Nordestina”,
de 1956.
O livro contribuiu para que a fama de Patativa aumentasse - e
superasse as divisas do Estado. Ainda assim, só foi reeditado 11
anos depois.
Mas foi na década de 1970, que o poeta viu sua obra tomar vulto na
forma de livros. No começo da década, o intelectual J. Figueiredo
Filho lançou por conta própria uma segunda coletânea de seus versos,
seguida no final da década por outra, que veio a se tornar seu livro
mais conhecido - “Cante lá que eu canto cá”.
A essa altura, Patativa já era um autor conhecido e festejado,
sobretudo, nos meios intelectuais de Fortaleza e do Cariri. O
resultado foi a multiplicação de edições, algumas apresentando
materiais inéditos, enquanto outras tentavam esboçar um panorama da
criação do poeta de Assaré.
O desafio do cordel
Poeta popular, Patativa do Assaré teve uma sorte diferente de muitos
de seus pares. Cordelistas viam suas criações desaparecerem aos
poucos, graças à precariedade do suporte disponível (o cordel, em
geral, impresso em papel barato e de pouca qualidade). Muito da
produção de Patativa do Assaré, como cordelista, também se perdeu.
Há 10 anos, este lado menos conhecido da obra foi retomado por dois
lançamentos. Em 1999, foi lançada a primeira edição de “Cordéis”,
organizada pelo pesquisador Gilmar de Carvalho, professor do Curso
de Comunicação Social da UFC, e uma das maiores autoridades no tema.
No ano seguinte, foi a vez da antologia compilada pela francesa
Sylvie Debs, da Universidade de Estrasburgo.
Os livros traziam uma mostra do que sobreviveu no formato folheto.
Há ali um aspecto mais narrativo da obra, com o poeta assumindo o
papel de cronista da realidade sertaneja. Foi exatamente o Patativa
do Assaré, cordelista que a UFC elegeu para sua lista de livros do
Vestibular em 2005. Uma versão do livro organizado por Gilmar de
Carvalho (agora “Cordéis e outros poemas”) foi o primeiro livro de
um poeta popular a figurar na lista da universidade. A coletânea
ainda está entre os livros que podem ser cobrados para o concurso
vestibular 2009.
Em 2002, Gilmar de Carvalho apresentou um inédito do poeta, como
anexo de seu livro de ensaios “Patativa do Assaré pássaro liberto”.
“O crime de Cariús” foi escrito e publicado como folheto em 1946.
Sob o pseudônimo Alberto Cipaúba, relatou um crime de morte
acontecido em 1942. O cordel mostra um Patativa que faz às vezes de
jornalista.
BIBLIOGRAFIA
1956 - Inspiração Nordestina (Borsoi Editor)
1970 - Patativa do Assaré: Novos poemas comentados
(independente), organizado por J. Figueiredo Filho
1978 - Cante lá que eu canto cá (Editora Vozes)
1988 - Ispinho e Fulô (Secult/Ioce)
1991 - Balceiro: Patativa e outros poetas do Assaré
(Secult/Ioce)
1994 - Aqui tem coisa (Secult)
1999 - Cordéis (Edições UFC)
2000 - Cordel (Hedra), organizado por Sylvie Debs
2001 - Balceiro 2: Patativa e Outros Poetas do
Assaré (Secult/ Terceira Margem)
2003 - Balceiro 3: Patativa e Outros Poetas do
Assaré (A Provícia Edições)
(©
Diário do Nordeste)
Poeta leva
arte ao Interior
IRACEMA SALES
Repórter
Patativa contribuiu para o
reconhecimento da cultura popular dos artistas no Estado
A
contribuição da poética de Patativa do Assaré para o reconhecimento da
cultura popular produzida por artistas do Interior do Estado é inegável.
Além de abrir uma discussão acerca de outro aspecto importante no que
diz respeito à arte popular: a autoria. Por ter como uma das principais
características a antigüidade e a tradição, era bastante recorrente a
apropriação de obras de artistas populares por artistas dos centros
urbanos, sendo utilizado como desculpa o argumento do domínio público.
Entretanto, a história vem mudando nos últimos anos. Embora as ações da
Secretaria da Cultura do Ceará (Secult) no Interior sejam antigas, ´as
primeiras eram colonizadoras´, lembra Oswald Barroso. Na época dos
coronéis, conta o estudioso, existiam caravanas que levavam cultura ao
Interior. ´Eram realizadas apresentações de peças´.
Com o redimensionamento do trabalho da Secult, principalmente, no fim da
década de 1980, o Interior acaba sendo descoberto como um centro
produtor de cultura. Neste aspecto, Patativa do Assaré teve uma
importância para a interiorização cultural e esta troca entre artistas
urbanos e do sertão. É justamente esta compreensão que faz com que as
manifestações continuem vivas e surjam novos talentos também.
O pesquisador afirma: ´Existia um mundo inteligente no Interior do
Estado´. O cineasta Rosemberg Cariry reconhece que as artes cearenses
ganharam um novo impulso com a então secretária Violeta Arraes, que
assumiu a Pasta em 1988. A ligação da cultura produzida no Cariri com a
Europa, promovida por Violeta Arraes, contribuiu para dar dimensão
universal às artes produzidas não apenas no Cariri onde Patativa estava
inserido.
´Hoje, a troca é de lá pra cá´, revela Oswald Barroso, reconhecendo a
influência dos artistas do Interior na produção artística da Capital. O
caminho estava aberto e outros secretários continuaram o trabalho de
interiorização cultural, na década de 1990. A região do Cariri, rica por
suas manifestações, foi a primeira a ser beneficiada com esta nova forma
de promoção cultural no Estado.
Na gestão do secretário Nilton Almeida, por exemplo, foram implantados
16 equipamentos culturais no Interior, dentre eles, o Memorial Patativa
do Assaré. Conforme Nilton Almeida, o equipamento é para ser
compreendido na perspectiva de infra-estrutura cultural. Ou seja, capaz
de fomentar ações para a promoção da arte daquela região. Não é
destinado apenas à realização de eventos, pontua.
“O memorial tem uma representação importante para o Patativa e sua
relação com o imaginário das pessoas”, completa o jornalista Nilton
Almeida, que esteve à frente da Secult no período de 1998 a 2002.
Reconhece a existência da interação entre os artistas, enfatizando a
criação de uma ponte entre o Interior e Fortaleza no que diz respeito à
produção artístico cultural.
A interiorização cultural é outro fator a ser considerado para a difusão
da arte de Patativa. ´No fim dos anos 1980 e início dos 1990, Patativa
passou a ser reconhecido, oficialmente, como um dos grandes ícones não
apenas da cultura popular, mas também como um poeta erudito, artífice de
rimas e métricas perfeitas´, constata Rosemberg.
Desta maneira, Patativa do Assaré contribuiu para promover a ligação
entre a arte popular e a erudita, além de aproximar os artistas do
Interior com os da Capital. Esta aproximação é inerente ao fazer
artístico. Uma das funções ou justificativas da existência da arte é o
seu poder de transformar o mundo através da interpretação da natureza. E
a poesia de Patativa seguia à risca este preceito, sobretudo, porque o
poeta tinha uma forte ligação com a natureza, em especial a sua Serra de
Santana.
Patativa retirou da terra natal os elementos para compor sua arte, cujos
versos exaltam o sertão e sua gente, formada na sua maior parte por
pessoas analfabetas, que se guiavam pelo ouvido e a intuição. Oswald
Barroso chama a atenção para a tradição oral, são histórias do reino do
faz-de-conta, ou seja, fruto da imaginação dos seus autores que falavam
de reis, rainhas e de amores impossíveis. A fonte criativa era a
intuição, deixando de lado a razão e o intelecto. Atualmente, críticos
de arte, como Rudolf Arnheim (1904-2007), defendem a intuição como
elemento para compreensão e criação. ´Os melhores versos de Patativa são
os de circunstâncias, líricos, espontâneos e sem pretensão literária´ e
mostrando essa relação estrita ente arte e natureza. ´A poesia não é
fenômeno de erudição, mas de inspiração´, portanto independe do grau de
letramento do artista.
A tendência da arte, hoje, é o rompimento com a modernidade, que teve
como principal marca a racionalidade. Neste sentido, a poética de
Patativa do Assaré continua atual, uma vez que pregava este encontro ou
reencontro do homem com a natureza. Além da aproximação das
manifestações artísticas. As artes tradicionais buscam elementos da arte
erudita e vice-versa.
Artista recria a estética nordestina
Patativa do Assaré nasceu em 1909, no sertão do Cariri e sua
chegada ao mundo coincide com o início de um dos séculos mais
conturbados e efervescentes em termos de descobertas e transformações da
história da humanidade. Na Europa, em especial na Itália, começava o
Futurismo, movimento artístico e literário que sacudiu o universo da
arte a partir da publicação do manifesto futurista do poeta italiano
Filippo Marinetti, no jornal francês ´Le Figaro´, em 20 de fevereiro de
1909.
O movimento atingiu todas as formas de produção artísticas, além de
originar outros movimentos modernistas. É justamente no contexto da arte
moderna e contemporânea que pode ser enquadrada a poética de Patativa do
Assaré. Diferente dos trovadores medievais e dos cantadores das feiras
nordestinas, o artista conseguiu registrar a sua arte, fazendo com que
não caísse no domínio público pela falta da identificação da autoria ou
que se perdesse no tempo.
A modernidade trouxe os meios de comunicação que contribuíram para o
difusão e registro da sua poesia, embora ele próprio defendesse a força
do verso declamado. Na brecha aberta pelos modernistas, dentre outras
denominações que acabaram desembocando na chamada arte contemporânea,
que admite variadas formas de manifestações, é que se pode enquadrar a
poética de Patativa do Assaré.
Não se pode negar as dificuldades que os artistas chamados populares
encontraram para o reconhecimento de suas obras, principalmente em
outras épocas. A arte considerada erudita é aquela de raiz européia,
apresentada em museus. A arte popular levou tempo para ser aceita por
ser uma arte tachada de tradicional e não possuir a chancela da
academia. A arte de Patativa serve, hoje, de referência a novos artistas
nordestinos.
O cineasta Rosemberg Cariry conheceu o poeta ainda adolescente, na
década de 1960. ´Acompanhei Patativa do Assaré nas feiras, e ouvia
também os seus recitais na Rádio Araripe´. Em contato com o movimento
artístico do Crato, que reunia jovens compositores, escritores e
autores, Rosemberg resolveu fundar o movimento de arte e cultura ´Por
Exemplo´.
O poeta de Assaré foi convidado a participar de shows, recitais e
performances teatrais. ´Patativa foi muito próximo desta geração que, no
Cariri, fazia arte de vanguarda, amava os Beatles, os Rolling Stones, a
contracultura e juntava-se à cultura popular, em suas contestações´. A
tradição e a modernidade, o regional e o universal agitavam-se em nós,
em insolúvel e criativo conflito. O cineasta destaca que foi nessa
efervescência cultural que Patativa construiu sua arte, oscilando entre
o erudito e o popular. Marco Antonio Gonçalves, doutor em Antropologia
Social pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), fala desta relação no artigo: ´Cordel Híbrido, Contemporâneo e
Cosmopolita´.
Conforme o autor, o que se percebe com o ressurgimento do cordel ou do
popular no contexto do novo milênio é, justamente, a possibilidade de
construção de um discurso híbrido, associado aos movimentos de
vanguarda. Como exemplos, o grupo pernambucano ´Cordel do Fogo
Encantado´, que bebe na fonte do poeta para compor suas letras, assim
como a Sociedade dos Cordelistas Malditos de Juazeiro que se posicionam
contrários à imagem de um Nordeste matuto, estilizado. Para o
antropólogo, Patativa constrói ´um não-lugar´ para o sertão e para o
Nordeste. Assim, cai por terra o mito de ser Patativa o poeta matuto,
arremata Rosemberg. Alguns críticos relacionam a poesia de Patativa com
a dos ´rappers´ cariocas.
(©
Diário do Nordeste)
Clerton Martins e Henrique Rocha falam dos significados da obra de
Patativa
A
obra de Patativa do Assaré tem como principais características a
interpretação e o registro do espaço natural onde ele viveu. As
temáticas e conflitos encontrados em sua poesia estão intimamente
associados ao ambiente ao qual pertenceu e à sua vivência cotidiana
de agricultor.
O tempo de Patativa dedicado ao trabalho no campo é o mesmo dedicado
a construir suas rimas, acertar suas métricas e afinar seu ritmo.
Fica-se assim sem saber o que era ócio criador ou o que era
trabalho, ou que, sabiamente, fazem os homens sensíveis: transformam
tempo monótono em tempos ricos de re-criação.
Como observou Gilmar de Carvalho, Patativa foi o “camponês de mão
grossa, e fina sensibilidade que encontrava na comunhão com a terra
a força que seu verso emanava”. É a partir deste sentido de
apropriação de lugar através da poesia, que destacamos alguns temas
recorrentes na poesia de Patativa que fazem de sua produção
literária um referencial descritivo para o leitor e revelador dos
sentidos do poeta, na apropriação dos ambientes na sua memória.
A poesia de Patativa é impregnada de força telúrica revelada, ora
pela permanência de sua força oral, ora pela distinção em que os
poemas são grafados, conservando as características principais da
fala. Ele possuía uma visão cosmológica de seu lugar, um sentido de
apropriação que o fez permanecer a vida toda no ambiente onde se
identificava e se inspirava, se reconhecia e podia exercer sua ética
sertaneja.
A modernidade e seus impactos não escaparam à observação de Patativa
que assumiu uma forma de medição entre sua experiência humana
individual e a experiência coletiva. A forma incisiva com a qual
Patativa trata as relações de trabalho em sua poesia, em particular,
o sistema fundiário, fez com que ele chegasse a ser considerado
subversivo.
Mesmo correndo o risco de ser tachado de comunista, situação que
rebatia, prontamente, Patativa não poupou críticas à dominação
econômica sofrida pelos trabalhadores rurais. Uma poesia
comprometida com a terra, porque é nela que ele investe seu tempo e
trabalho. Foi especialmente durante a lida na roça que criou boa
parte de sua obra.
Porém, o trabalho associado à condição do homem rural no interior
nordestino, não é visto pelo poeta sempre sob a perspectiva do
sacrifício e das relações de sujeição. Podemos ver alguns sinais da
ética sertaneja defendida por Patativa, bem como referências à
realidade do trabalho do vaqueiro na fazenda de gado, como o ofício
passado de pai pra filho, fidelidade ao patrão (não por
subserviência, mas pelo esquema de recompensa do trabalho através
das partilhas).
O processo de apropriação do ambiente por Patativa do Assaré remete
à transformação do espaço em lugar significativo a partir da
experiência do poeta que evoca as características intrínsecas de um
espaço que é transformado em lugar. A extensão da apropriação pode
ser observada em processos de identificação espacial e composição
simbólica. Desta forma, na leitura de sua obra é possível, sem muito
esforço, entender a dimensão da importância do ambiente na
constituição estética de sua poesia.
A diversidade temática de sua produção é marcante, revelando seu
interesse pelos acontecimentos do cotidiano local, mas também do
mundo global. Este sentido de ser e estar no mundo produziu
conteúdos de onde se pode extrair situações de sofrimento, prazer e
desprazer que podem ser enxergadas nas entrelinhas do discurso
poético de Patativa.
A interatividade em Patativa tem um sentido que remete à própria
história de vida deste personagem pela incessante lida do
poeta-agricultor com o seu ambiente de inspiração artística. Esta
vivência com seu lugar natural proporcionou a Patativa um domínio e
conhecimento do seu espaço e conseqüente apropriação imperativa.
Chegou a dizer, muitas vezes, que não lhe agradava a idéia de
comercializar sua poesia, algo que nos soa como uma associação ao
seu lugar que não poderia ser negociado.
O universo descrito por Patativa do Assaré revela-se como um vasto
campo de possibilidades de entendimento e de despertar de sensações.
Sua obra poética mostra que, mesmo percorrendo caminhos tão
peculiares como é o da poesia popular - gerada a partir da oralidade
e que na transcrição para o suporte gráfico procura manter as
características originais da fala -, é possível articular
interseções entre um conhecimento destituído de formalidade e
apegado a emoções com o conhecimento resultado da elaboração
teóricas.
CLERTON MARTINS E HENRIQUE ROCHA
Pesquisadores
Clerton Martins é doutor Psicologia e professor da Unifor; e
Henrique Rocha é professor das Faculdades Cearenses.
(©
Diário do Nordeste)
Patativa 100 Anos
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