O poeta dá o conselho
: "Seja como os lobos : more num covil e só mostre à canalha das
ruas os seus dentes afiados.Viva e morra fechado como um
caracol.Diga sempre não à escória eletrônica".
Caçadores de belos versos,tremei de arrependimento : quem
nunca leu um poema de Ledo Ivo,por preguiça,desinformação ou
enfado,deve se penitenciar deste crime de lesa-literatura o mais
rapidamente possível.
Um exemplo ? É difícil encontrar uma declaração de princípios
tão bela quanto "A Queimada" :
"Queime tudo o que puder :
as cartas de amor
as contas telefônicas
o rol de roupas sujas
as escrituras e certidões
as inconfidências dos confrades ressentidos
a confissão interrompida
o poema erótico que ratifica a impotência
e anuncia a arteriosclerose
os recortes antigos e as fotografias amareladas.
Não deixe aos herdeiros esfaimados
nenhuma herança de papel.
Seja como os lobos : more num covil
e só mostre à canalha das ruas os seus dentes afiados.
Viva e morra fechado como um caracol.
Diga sempre não à escória eletrônica.
Destrua os poemas inacabados,os rascunhos,
as variantes e os fragmentos
que provocam o orgasmo tardio dos filólogos e escoliastas.
Não deixe aos catadores do lixo literário nenhuma migalha.
Não confie a ninguém o seu segredo.
A verdade não pode ser dita".
O que o velho lobo terá a dizer a um repórter forasteiro que
for procurá-lo no covil ? Aos cartógrafos empenhados em mapear
as rotas da poesia brasileira neste início de século,diga-se que
o lobo vive num apartamento do sétimo andar de um prédio da rua
Fernando Ferrari,no bairro de Botafogo,Rio de Janeiro. Ao
contrário do que os versos podem fazer supor,o homem não é uma
fera de garras afiadas.
Ei-lo : sentado numa poltrona da sala,o lobo Ledo vai fazer,a
pedido do repórter,uma expedição ao País da Memória diante do
gravador ligado. O cenário que circunda o Covil do Lobo é um
convite à inspiração. Quando quer descansar a retina das mazelas
do mundo,o lobo Ledo precisa caminhar apenas cinco passos. É a
distância entre a sala e a extremidade da varanda deste
apartamento.Lá fora,a beleza escandalosa de um céu sem nuvens
pinta de azul a vista da praia de Botafogo. A localização do
apartamento é invejável. Parece ter sido escolhida a dedo por um
poeta.Uma confidência lítero-hidráulica : do banheiro do
apartamento do lobo é possível vislumbrar a imagem do Cristo
Redentor de braços abertos sobre a Guanabara.Não é para qualquer
um.
O poeta posa para as fotos na varanda. Parece ligeiramente
incomodado pela lente da máquina. O sorriso aberto transmuta-se
numa expressão repentinamente carrancuda um décimo de segundo
antes do clique da máquina.
As lembranças dos ídolos que povoam os corredores do Museu das
Admirações de poeta vão se sucedendo,aos borbotões : com os
gestos agitados de quem fala para uma platéia invisível,o
pequenino Ledo Ivo reconstitui,com frases precisas,momentos
marcantes da convivência com Carlos Drummond de
Andrade,Graciliano Ramos,Manoel Bandeira e João Cabral de Melo
Neto,gente que virou verbete obrigatório nas enciclopédias.
Justiça se faça : aos setenta e oito anos de idade,Ledo Ivo
já colheu as glórias daquele país que Ariano Suassuna chama de
"o Brasil oficial" : a Academia Brasileira de Letras
concedeu-lhe,por unanimidade,a cadeira número 10,no não tão
distante ano de 1986. Mas o "Brasil real",aquele que passa ao
largo dos salões acadêmicos,não conhece Ledo Ivo tanto quanto o
poeta merece. Dificilmente o Lobo seria reconhecido na rua. Não
é lido tanto quanto deveria ser. Aos caçadores de
pérolas,recomenda-se a leitura da última pepita da mina do lobo
Ledo : "O Rumor da Noite",publicado recentemente pela Nova
Fronteira.
O Ledo Ivo que responde com entusiasmo ao precário
questionário do repórter é um homem afável. O poeta que desponta
nas entrelinhas dos versos é um lobo solitário,um ermitão que
prefere ver a humanidade à distância. A ode à solidão - que ele
já escrevera nos versos definitivos do poema "A Queimada" -
repete-se no não menos belo "A Passagem" :
"Que me deixem passar - eis o que peço
diante da porta ou diante do caminho.
E que ninguém me siga na passagem.
Não tenho companheiros de viagem
nem quero que ninguém fique ao meu lado.
Para passar,exijo estar sozinho,
somente de mim mesmo acompanhado.
Mas caso me proíbam de passar
por seu eu diferente ou indesejado
mesmo assim eu passarei.
Inventarei a porta e o caminho
e passarei sozinho".
O Lobo é um apóstolo confesso da beleza.Reage com
compreensível enfado à faina dos que preferem criar teses sobre
a poesia :
- Sou um esteta porque nunca li tratados de estética -
disse,num volume autobiográfico há anos esgotado ("Confissões de
um Poeta").
Quando começa a falar do assunto que lhe consome todas as
energias - a criação literária -,o alagoano Ledo Ivo vai
alinhando as frases com a precisão de um ourives e a rapidez de
uma metralhadora giratória. É incapaz de fazer concessões a
vulgaridades gramaticais na hora de construir uma sentença. O
lobo Ledo aparentemente concede à linguagem falada o mesmo
cuidado que devota à linguagem escrita.O Português
agradece,comovido. O poeta já confessou que sente abalos
sísmicos em suas florestas interiores ao ouvir confrades
pronunciarem impropriedades como "de maneiras que....". Se
alguém cometer o sacrilégio de misturar "tu" com "você" diante
do lobo,certamente escapará de uma admoestação,porque o homem é
afável,mas cairá vinte pontos no conceito do poeta.
O Recife ocupa um extenso capítulo na memória afetiva do lobo
- que deu de presente à cidade um poema escrito na juventude
(“Amar mulheres,várias/Amar cidade,só uma – Recife”). Um detalhe
: temeroso de despertar ciúmes bairristas em seus conterrâneos
alagoanos, Ledo Ivo jamais incluiu o poema em homenagem ao
Recife em seus livros. O cântico de amor à cidade estaria
inédito até hoje,se não tivesse sido divulgado por amigos do
poeta.
Tradutor de Rimbaud e Dostoiévski,o lobo Ledo carrega,pelas
décadas afora,as marcas da infância em Maceió :
"Na tarde de domingo,volto ao cemitério velho de Maceió
onde os meus mortos jamais terminam de morrer
de suas mortes tuberculosas e cancerosas
que atravessam as maresias e as constelações
com as suas tosses e gemidos e imprecações
e escarros escuros
e em silêncio os intimo a voltar a esta vida
em que desde a infância eles viviam lentamente
com a amargura dos dias longos colada às suas existências
monótonas.
(...) Digo aos meus mortos : Levantai-vos,
voltai a este dia inacabado
que precisa de vós,de vossa tosse persistente e de vossos gestos
enfadados
e de vossos passos nas ruas tortas de Maceió.
Retornai aos sonhos insípidos
e às janelas abertas sobre o mormaço. Na tarde de domingo,entre
os mausoléus
que parecem suspensos pelo vento
no mar azul
o silêncio dos mortos me diz que eles não voltarão.
Não adianta chamá-los.No lugar em que estão,não há retorno
Apenas nomes em lápides.Apenas nomes.E o barulho do mar".
A nostalgia do tempo irremediavelmente sepultado nos velhos
calendários marca não apenas os melhores poemas de Ledo Ivo,mas
também
suas confissões autobiográficas :
- Sou um sobrevivente na passagem entre o dia e a noite.Onde
estão as figuras de antigamente - em que estrelas,em que túmulos
se esconderam ? Gari implacável,a vida varre os sonhos dos
homens e,na praça vazia,vagam os fantasmas dos fracassos
dissimulados e dos gordos perjúrios.Sozinho na grande cidade que
engole as promessas dos homens,vejo-me passar de repente no
jovem poeta desconhecido que atravessa o meu caminho.Deixo de
ser eu mesmo para ser,por um instante,o jovem poeta sem nome.
Que ele seja fiel à sua promessa de agora,eis o que peço.Que ele
seja uma dessas criaturas para as quais nada é perdido,segundo a
lição de Henry James.Mas a quem dirigir esse pedido ? Os deuses
inexistentes não me ouvem.À vida cega e surda ? Ao mar longínquo
e mudo ? O jovem poeta Ledo Ivo dilui-se na sombra da tarde.E
anoitece”.
Graciliano Ramos,João Cabral de Melo Neto,Carlos Drummond de
Andrade e Manoel Bandeira vão entrar em cena agora como verbetes
vivos da imaginária enciclopédia do Lobo Ledo.
Gravando !
PRIMEIRA ESTAÇÃO : O DURÃO GRACILIANO RAMOS CHORA AO SE
DESPEDIR DA VIDA
GMN : A imagem de Graciliano Ramos, como homem seco e
intratável,corresponde à verdade ?
Ledo Ivo : “Graciliano Ramos era rústico e intratável. Nascemos
no mesmo estado. Quando menino,como primeiro da turma no grupo
escolar,fui apresentado a Graciliano,na época secretário de
Educação. Pôs a mão carinhosamente na minha cabeça. Quando ele
publicou “Vidas Secas”, eu,”menino prodígio” em
Maceió,escrevi,em 1938,um artigo sobre o livro. Aquilo passou.
Quando vim para o Rio, fazer vestibular de Direito, minha mãe me
disse “vá visitar Heloísa” - a mulher do Graciliano Ramos,àquela
altura,aos cinquenta anos de idade,uma figura importante na
literatura brasileira. Durante nossa conversa,ele abriu uma
gaveta e disse : “Quando publiquei “Vidas Secas” em Alagoas,só
uma pessoa falou do meu livro : um menino de 14 anos.....”.
A relação de Graciliano Ramos com Alagoas era de amor e
ódio,porque ele tinha saído do Estado de cabeça raspada,jogado
no porão de um navio. É curiosíssimo como duas pessoas tão
diferentes como eu e Graciliano Ramos puderam se relacionar.
Devo ter aprendido com ele muitas coisas,como,por exemplo,a
correção lingüística que,dizem,existe em minha prosa.
Graciliano Ramos era,sim,uma pessoa rústica.Em toda a literatura
brasileira,ele só tinha três, quatro admirações,além de Machado
de Assis, a quem considerava um negro metido a inglês : José
Lins do Rego,Rachel de Queiroz e Jorge Amado. Em poesia,admirava
Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, por ordem do
Partido Comunista (risos).
Notei,na casa de Graciliano Ramos,um livro de poesia
autografado,fechado e intocado. Toda vez que eu ia à casa de
Graciliano,dizia a ele : “Você deveria abrir esse livro ! ”. E
ele : “Já falei com Heloísa várias vezes para abrir esse livro,
mas essa mulher…” (risos) .
Era como se competisse à Heloísa Ramos a função de abrir o
livro.Se não me engano,era um volume das poesias completas de
Augusto Frederico Schmidt”.
GMN : De toda essa convivência com Graciliano Ramos, a melhor
herança foi a obsessão com a correção gramatical ?
Lêdo Ivo: “A herança - pungente - é ver que a glória de
Graciliano é uma glória póstuma. O que aprendi com Graciliano
Ramos foi ter fidelidade ao ofício de escritor. Quem era
Graciliano Ramos quando convivi com ele ? Um grande escritor,mas
ainda não plenamente reconhecido - essa é que é a verdade. Os
livros que ele lançara estavam esgotados. José Olympio não
reeditava. Em conversas íntimas,Graciliano chamava José Olympio
de “esse filho da puta - que vive editando Lourival Fontes e
Getúlio Vargas.....” (N: Lourival Fontes era o chefe do
Departamento de Imprensa e Propaganda durante a ditadura Vargas)
. O que eu via ali,em Graciliano, era a amargura de um homem que
foi tirado do ninho natal – Alagoas. Note-se que três livros de
Graciliano foram escritos em Alagoas : “Caetés”, “São Bernardo”
e “Angústia” . Se ele não tivesse saído de Alagoas, ficaria como
uma coisa misteriosa. Por quê? Por que será que em um pequeno
Estado,como Alagoas, um sujeito escreveu três grandes romances ?
Depois é que veio a experiência carcerária – a única coisa que o
Rio,a metrópole,deu a ele. Graciliano vivia de pequenos “bicos
literários”,vivia corrigindo textos alheios. Trabalhava como
revisor.
Qual foi,então,a grande impressão que Graciliano Ramos me deu ?
A fidelidade ao ofício,algo que se viu também em Machado de
Assis. São escritores que não esperavam nenhuma recompensa,
porque a própria obra seria a recompensa. Graciliano não pensava
em Academia,não pensava em prêmios literários,não pensava em
glória. Eu trabalhava em jornal naquela época. Jamais Graciliano
Ramos ou José Lins do Rego me pediram que publicasse uma nota
sobre eles.
GMN : O desleixo com a glória imediata foi,então,uma atitude que
o senhor herdou de Graciliano Ramos ?
Lêdo Ivo : “Uma característica de Graciliano Ramos -que me
orgulha- é a pobreza. Era um escritor que andava de ônibus.
Vivia-se num Brasil diferente.Naquele tempo, só Carlos Drummond
de Andrade tinha um carro - oficial. Os outros eram Augusto
Frederico Schmidt e Jorge de Lima. Eram os três escritores que
tinham carro ! Um negócio impressionante,porque todo mundo
andava de bonde ou de ônibus. Não havia feriado. A José Olympio
ficava aberta aos sábados até seis horas da tarde. Era um mundo
diferente,o da vida literária, marcada pela existência de
suplementos literários.
Mas havia ,em Graciliano Ramos,um detalhe que me impressionava :
o problema da formação literária. Eu ficava impressionado com o
fato de que a formação literária de Graciliano Ramos era – de
certa maneira - muito reduzida. Baseava-se nos brasileiros
Machado de Assis e Aluísio Azevedo – um autor de quem ele
gostava -,no português Eça de Queiroz e nos russos Tolstói,
Dostoievski e Gorki. Com esse pequeno mundo de leitor,
Graciliano Ramos fez uma uma obra grandiosa. Nunca leu Marcel
Proust,por exemplo. Quando eu perguntava por que,ele dizia :
“Não leio viados ! ” (risos).
Quando o visitei pela última vez,no hospital,ele chorou,porque
sabia que ia morrer. Enquanto chorava,falava -e muito – sobre a
mãe.O hospital ficava aqui ao lado,onde hoje é este edifício
(Ledo aponta para fora do apartamento).
Aquele foi nosso último encontro,porque eu estava de partida
para Paris. Fui me despedir. Graciliano estava esquálido.De vez
em quando,falava coisas desconexas. Contava que a mãe,quando
casou,levou as bonecas para casa – um negócio curioso.
O choro de Graciliano ficou como uma lembrança marcante,porque
já trazia a saudade da vida. Eu senti ali que,por mais que ele
dissesse que odiava a vida,ele,na verdade,amava viver. O que
matou Graciliano foi um câncer no pulmão. Era um fumante de
cigarros Selma.Só escrevia bebendo cachaça. Jorge de Lima também
morreu de câncer no pulmão,mas nunca fumou.
Os homens não morrem de doenças : morrem de morte”.
SEGUNDA ESTAÇÃO : O POETA ESPERA
HÁ SESSENTA ANOS PELO LEITOR
GMN : O senhor escreveu em suas memórias : “Vivo escrevendo,
mas o trágico é que escrever não é viver”. Com que
freqüência,então,o senhor tem a sensação de estar substituindo a
vida pela escrita?
Lêdo Ivo: “É um drama comum a todo e qualquer escritor este
sentimento de que estamos vivendo,sim,mas essa vida se destina
somente a acumular experiências para a obra literária. Já a
quase totalidade das pessoas se limita a viver,porque não dispõe
de linguagem. Trago um mistério inicial em minha biografia : por
que logo eu, numa família de onze,revelou a vocação e o destino
para a escrita,numa família que não tinha pendores literários ?
Sempre tenho a impressão de que toda a vida de um escritor é
estuário onde se acumula a matéria que se transformará em obra
literária.
O escritor é,então,uma pessoa condenada não a viver,mas a
escrever.
Fausto Cunha - grande crítico,que notou,em minha procedência
literária,a influência de poetas malditos como Rimbaud,Verlaine
e Baudelaire – me disse : “O grande erro de sua vida é que você
não morreu aos vinte anos.Se tivesse morrido moço,teria deixado
“Ode e Elegia”, “As Imaginações”, e “Acontecimento do Soneto”.
Então, seria um poeta como Castro Alves ou Casemiro de Abreu
!.Vida longa atrapalha a biografia !”.
João Cabral me disse a mesma coisa. Eu respondi : “Prefiro ser o
Victor Hugo das Alagoas – o poeta que vive até os oitenta anos
!”. Prefiro o mistério dos poetas que,como Drummond e Manuel
Bandeira,tiveram uma vida longa e uma obra igualmente longa”.
GMN : Ariano Suassuna - que foi homenageado no carnaval aqui no
Rio - disse que já tinha recebido a homenagem do “Brasil
oficial”, ao entrar para a Academia Brasileira de Letras e
estava recebendo ali,no sambódromo,a homenagem do que ele chama
de “Brasil Real”. O senhor – que já foi homenageado pelo “Brasil
Oficial” ao ser recebido por unanimidade na Academia Brasileira
de Letras - sente falta do reconhecimento do “Brasil Real”,,já
que não é tão conhecido como poeta como deveria ?
Lêdo Ivo: “O poeta inglês John Mansfield diz que já viu o azarão
no jóquei ganhar o prêmio, já viu flor brotar da pedra, já viu
coisas amáveis feitas por homens de rosto feio. “Eu também
espero” – diz ele. Confesso que o problema do reconhecimento
vasto não me preocupa. A vida literária se faz pela diversidade
e pela multiplicidade. Não se sabe se o escritor de pouco
público de hoje será o escritor de grande público de amanhã.
Um escritor pode ser obscuro e desconhecido hoje e famoso e
glorioso amanhã. Você pode também estar dentro da literatura e
um dia ser expulso ! São coisas que não me preocupam. O que me
preocupa é a criação literária. Já que sou uma criatura dotada
de linguagem, quero me exprimir. Mas sei que uma obra só se
completa com a existência do outro. Há sessenta anos estou
esperando por esse leitor.
Um dia ele haverá de aparecer”.
GMN : O poema “A Queimada” – aquele que fala do lobo no covil -
é uma declaração de princípios de que o escritor deve ser,no fim
das contas,um solitário ?
Lêdo Ivo: “O escritor deve ser um solitário solidário.A
verdade,como digo no poema,não pode ser dita”.
GMN : O senhor reclama daqueles escritores que só brilham em
congressos....
Lêdo Ivo: “Oswaldo de Andrade – de quem fui muito amigo até
brigarmos – me procurou,magoado,porque tinha sido expulso do
Partido Comunista.Os comunistas,então, não o deixaram participar
do Congresso dos Escritores de São Paulo. Eu disse a ele: “É
besteira ! . Nietzsche nunca participou de um congresso de
escritores” (risos)…
GMN: Por que o senhor diz que detesta escritores que consideram
a criação poética “um suplício” ? .
Lêdo Ivo: “Tenho horror desses camaradas que passam o tempo todo
dizendo que gemem e suam na hora de escrever. A minha criação
literária é uma felicidade. Quando escrevo, parece que as coisas
já vêm prontas,organizadas subconscientemente. Pensa que
“capino” o meu texto. Mas o mjeu texto vem espontaneamente.Não
tenho nenhuma simpatia por escritores que cortam. A minha
simpatia maior é pelos escritores que acrescentam !.
João Cabral uma vez me disse que passava noites acordado, com
angústia. Eu dizia “Você só diz que passa noites acordado para
ver se me causa inveja, mas não causa não!”.
GMN : Ao contrário do que dizia Carlos Drummond de
Andrade,escrever não é “cortar palavras”, mas acrescentar ?
Lêdo Ivo: “Um escritor francês disse que o bom escritor é aquele
que “enterra uma palavra por dia”. Para mim,o bom escritor é o
que desenterra uma palavra por dia ! . Porque o escritor lida
com um patrimônio lingüístico. De vez em quando o brasileiro
ressuscita palavras esquecidas”.
GMN : Por que afinal de contas o senhor não inclui em seus
livros o tão citado poema sobre o Recife ?
Lêdo Ivo: Em primeiro lugar, porque os alagoanos protestariam.
Eu tinha dezesseis anos quando escrevi o poema .
“Amar mulheres,várias
amar cidade,só uma – Recife.
E assim mesmo com as suas pontes
E os seus rios que cantam
E seus jardins leves como sonâmbulos
E suas esquinas que desdobram os sonhos de Nassau”
O poema reflete a descoberta do Recife por um alagoano. Porque
Recife tem um lado cosmopolita – que me impressionou muito. O
meu pai era pernambucano. A família Ivo é pernambucana. Eu era
considerado meio pernambucano por ser ligado ao grupo do crítico
Willy Lewin,nos anos quarenta.Recife foi a cidade de minha
primeira formação literária. Fazíamos poemas nas mesas do
Lafayette,numa época de boemia. O poema sobre o Recife ficou
desaparecido até 1947,quando chegou às mãos de Mauro Mota – que
o publicou no Diário de Pernambuco (ou terá sido no Jornal do
Commercio). O destino de um poema é curioso. A gente escreve um
poema; ele ganha vida própria,começa a circular.
Guardo a lembrança de um conselho que Joaquim Cardozo me deu :
ele dizia que eu deveria ser um poeta alagoano,assim como ele
era um poeta pernambucano. O sentimento do berço tinha grande
importância para ele”.
TERCEIRA ESTAÇÃO : DRUMMOND,O GRANDE POETA SECRETO,ENTRA EM CENA
GMN : Qual é a grande lembrança que o senhor traz da convivência
com Carlos Drummond de Andrade ?
Lêdo Ivo: “O que me impressionou em Drummond, já no primeiro
encontro, foi um certo “fechamento” interior. Não se entregava.
Era como se vivesse insulado em si mesmo. Há em Drummond algo
que é “intransmissível”. Tive essa sensação de
intransmissibilidade.
Eu levei meus primeiros poemas para Drummond,no gabinete em que
ele trabalhava,no prédio do Ministério da Educação,no centro do
Rio. Depois que leu, ele até chamou a atenção de outros
escritores para mim. Em seguida,vieram as rusgas,porque havia
divisões políticas naquele tempo.
A coisa mais impressionante que Drummond me disse foi num de
nossos últimos encontros. Um certo poeta brasileiro - de quem
não quero dizer o nome - proclamou-se herdeiro de Drummond.
Quando me encontrei com ele, disse: “Como é que vai o herdeiro?”
. E ele : “O herdeiro de um poeta é o poeta diferente do modelo.
O meu herdeiro será um poeta inteiramente diferente de mim : é
esta a lição da poesia”.
O herdeiro de Olavo Bilac foi Mário de Andrade.Os herdeiros são
os diferentes. São até os adversos : não são os assemelhados. É
a grande lição de Drummond que ficou em mim : ele não espera ter
um clone como herdeiro. (risos) O que Drummond esperava era o
“anti-clone”.
GMN : Nesse primeiro encontro, o senhor - que viria a se
considerar um lobo no poema “A Queimada” - teve a sensação de
que o Drummond era o “urso polar”,como ele disse que era num dos
poemas ?
Lêdo Ivo: “Tive essa sensação. Drummond tinha uma vida amorosa
muito escondida - que depois,infelizmente, foi violada pela
imprensa.
Eu via,em Drummond,um grande poeta secreto. Naquela época, 1940,
Drummond não tinha a notoriedade que ganhou depois. O próprio
Manuel Bandeira pensava que o grande poeta brasileiro daquela
época fosse Augusto Frederico Schmidt. Porque o Schmidt enrolava
todo mundo (risos). Schmidt até pensou em fazer um poema sobre a
descoberta do Brasil,mas depois Drummond veio com a Rosa do Povo
e acabou com a festa”.
QUARTA ESTAÇÃO : MANUEL BANDEIRA ENSINA QUE O
POETA PRECISA SER CULTO
GMN : O que ficou da amizade com Manuel Bandeira ?
Ledo Ivo: “Minha ligação com Manuel Bandeira foi profunda. De
todos os poetas, talvez o que mais me tenha marcado e ensinado
foi Manuel Bandeira. Quando eu era menino, mandei poemas para
ele. Recebi de volta um cartãozinho em que ele tocou em um ponto
que ainda hoje permanece na poesia: “Há muita magia verbal em
seus poemas”.
Depois percebi que, para mim, a operação poética é como se fosse
um encantamento da linguagem – uma magia. Sou um poeta que acha
que a poesia é o uso supremo da linguagem.Bandeira fez esta
descoberta em meu momento inicial. Deu-me lições perenes : por
exemplo,a de que o poeta deve ser um intelectual culto. Só a
cultura tem condições de abrir caminhos. Ao poeta,não basta
apenas ter talento e vocação. Por que o poeta deve ser realmente
um homem culto ? Porque a poesia é um sistema milenar de
expressão. É preciso conhecer os mestres. A criação poética não
é,portanto,um problema só de sensibilidade. É um problema de
cultura.
Somente o vasto conhecimento da poesia e da literatura
é que permite ao poeta exprimir-se.
A fidelidade à literatura deve ser o emblema do escritor.
Devemos continuar segurando o estandarte. Vivemos um tempo de
mudanças. Somos uma civilização de massas, uma civilização
eletrônica, uma civilização consumista. Tudo alterou a posição
do escritor e do poeta no Brasil.
Já não temos aqueles poetas populares de que Drummond foi o
último grande exemplo.O poeta vive hoje em uma época de
anonimato. Os ícones são diferentes,os gurus,são outros. A
linguagem literária hoje compete com a linguagem eletrônica, o
CD-Rom, o cinema,o disco . Mas,há alguma coisa que só a poesia
tem condições de dizer. A poesia,então,existirá sempre,como
linguagem específica,porque só ela pode dizer,sobre a condição
humana,algo que não pode ser dito de nenhuma outra maneira. O
cinema e a televisão lidam de uma maneira diferente”.
GMN : O poeta, então, deve se resignar a ser anônimo, nesse
mundo dominado pela fama e pela mídia eletrônica?
Lêdo Ivo: “A função do poeta na sociedade é escrever poemas.A
notoriedade é secundária”.
GMN : O senhor tem uma certa sensação de deslocamento por ser um
poeta em uma sociedade que não dá tanto valor aos poetas?
Lêdo Ivo: “Pelo contrário ! Para mim, seria inconcebível ter
aparecido antes ou ter aparecido depois. Como poeta ,surgi no
momento certo.Tenho um grande sentimento da minha
contemporaneidade.O mundo atual habita os meus poemas.A função
do poeta é,também,celebrar o mundo em que vive. Não tenho
nostalgia pelo passado. Não gostaria de ter nascido no
passado,assim como não gostaria de ter nascido no futuro”.
QUINTA ESTAÇÃO : JOÃO CABRAL DÁ
DE PRESENTE A LEDO UM EPITÁFIO
EM FORMA DE POESIA
GMN : Do que o senhor ouviu de João Cabral de Melo Neto, qual
foi a grande lição ?
Lêdo Ivo: “João Cabral me deu a lição da diferença entre os
poetas.Cada poeta é diferente.As estéticas dos poetas são até
inconcebíveis. Como são diferentes os caminhos para fazer a
mesma coisa ! . O que mais me impressiona em João Cabral é ele
ser saudado sempre como “o poeta da razão”, no Brasil. Para mim,
João Cabral de Melo Neto é o poeta da “anti-razão”,o poeta da
obsessão, o poeta das coisas ocultas,o poeta das coisas
sibilinas, herméticas. A poesia que ele deixou é complexa,mas se
abre para o grande acesso popular, o que é curioso.
Uma vez,João Cabral me disse: “Nós estamos fazendo uma obra
literária. Procuramos fazer uma obra literária o maior
possível.De repente, lá em Nova Iguaçu ,a essa hora,
anonimamente, alguém pode estar fazendo a obra com que nós
sonhamos”.
GMN : Para o senhor - que se considera “um homem de muitas
perguntas e quase nenhuma resposta” - qual é a grande pergunta,
a grande perplexidade que até hoje o atormenta ?
Lêdo Ivo: “A perplexidade é estar no mundo – com todas essas
perguntas que se acumulam; o fato de ser transitório; a
existência e não-existência de Deus; o problema da condição
humana. Vivo num mundo em que quase não há resposta.Não sei onde
começo e onde termino. Sequer sei se existo,no sentido de ter
uma existência nítida,com fronteiras definidas.Talvez o meu
mundo seja o mundo da ambigüidade.
Drummond chamou a minha poesia de
”múltipla”. É uma frase que ilumina mais uma existência poética
do que muitos rodapés. Quando publiquei “Confissões de um
Poeta”, Hélio Pellegrino me telefonou para dizer que ficou
impressionado com o clima de procura que há em todo o livro.
Como era psicanalista e poeta,Hélio Pellegrino disse que minha
descoberta estava exatamente nessa procura.
Vivo nessa perpétua indecisão.O que me impressiona é que essa
procura tenha durado tanto; não tenha acabado ainda”.
GMN : Há em seus textos uma certa obsessão com a finitude.Qual
foi o primeiro espanto que o senhor teve diante da morte?
Lêdo Ivo: “Venho de uma família numerosa. Tenho um irmão que
morreu, o chamado “anjinho”, aquele que morre novo.Outro irmão
meu chamado Éber, morreu aos oito anos. Numa família
nordestina,numerosa,a morte vive sempre rodeando as
pessoas.Quando menino, eu gostava de visitar cemitérios. Mas
censuro a morte !. Como sou uma criatura do aqui e do agora,fico
impressionado com a morte,porque ela faz com que a gente já não
esteja aqui”.
Talvez venha da infância o sentimento de que a vida é provisória
e instantânea.É um relâmpago. Além de tudo,há o mistério da
existência : por que será que uns morrem cedo,outros morrem
tarde e outros não morrem nunca ? “.
GMN : O senhor faz,em um de seus textos,uma referência a uma
caminhada solitária pelas alamedas do Cemitério São João
Batista.O que é que o senhor estava fazendo no cemitério ?
Lêdo Ivo: “Devo ter ido me despedir de um amigo.Não fui para
visitar o cemitério. O engraçado é que João Cabral escreveu o
meu epitáfio em versos que ele nunca incluiu em livro. O que
João queria era fazer um livro só de epitáfios de amigos.
Terminou não fazendo.
João foi um grande amigo meu,mas tínhamos temperamentos
diferentes. Enquanto ele ia para um lugar, eu ia para outro.
Nunca nos encontramos - nem esteticamente. Dizia que eu falava
muito; achava que só a morte é que me reduziria ao silêncio.
O epitáfio que João Cabral criou para mim é este :
“Aqui repousa
Livre de todas as palavras
Ledo Ivo,
Poeta,
Na paz reencontrada
de antes de falar
E em silêncio,o silêncio
de quando as hélices
param no ar “.
(©
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