Neste sábado(14), Glauber Rocha (1939-1981) faria
70 anos. Mas, qual seria a idade do seu pensamento neste 14 de março de
2009? Caberiam rugas e cabelos brancos em sua mente veloz?
Quem conviveu com o cineasta, que hoje recebe homenagens não questiona a
loquacidade de seu intelecto nem seu poder de renovação. Glauber, disse
certa vez o poeta Ferreira Gullar, “queria o novo do novo”. Não ao acaso,
era definido como um criador visionário, “sempre com soluções que se
antecipavam aos acontecimentos”, como lembra o jornalista e escritor João
Carlos Teixeira Gomes, que o conheceu nos anos 50, ambos alunos do Colégio
Central.
João Carlos pensa de forma matemática para afirmar que Glauber é uma equação
bem resolvida: “Se era um gênio, como poderia envelhecer?” O artista
plástico Sante Scaldaferri está convicto de que Glauber “é um desses homens
que nascem a cada cem anos”, e que sua genialidade “ainda não foi superada.
Tenho visto bons filmes e documentários, mas tenho que admitir: falta um
toque. O toque de gênio”, sublinha. E o artista, que participou do cinema
glauberiano de todas as maneiras – como ator, cenógrafo, produtor e, às
vezes, só como um observador, no set de filmagem – gosta de se perguntar: “O
que ele faria com uma câmera na mão, uma ideia na cabeça e toda essa
tecnologia disponível hoje ? Sabe, penso muito nisso...”, confidencia.
"Somente uma cultura da fome, minando suas próprias
estruturas, pode superar-se qualitativamente: a mais nobre manifestação
cultural da fome é a violência"
Polêmico, político, irreverente, genial, hermético e
apaixonado, Glauber Rocha é o mais importante nome da história do cinema
nacional. Idealizador do movimento conhecido como Cinema Novo, realizador de
filmes de vanguarda e livros até hoje utilizados por universidades do mundo
inteiro, o cineasta baiano dedicou sua vida à idéia de unir política e arte
em película.
Glauber Pedro de Andrade Rocha nasceu em 1938, em Vitória da Conquista,
interior do estado da Bahia. Primeiro filho de Adamastor Bráulio Silva Rocha
e Lúcia Mendes de Andrade Rocha, mudou-se com a família para Salvador em
1947, onde passou a estudar num rígido colégio religioso.
Apesar da vocação para o cinema e teatro (aos 13 anos já havia participado
de programas de rádio sobre o assunto), resolve estudar direito na
universidade. Nesta época, além de participar de programas de leitura de
poesias nacionais, escreveu para jornais de esquerda e revistas
especializadas em cinema. Em 1959 relaiza seu primeiro filme, o curta
metragem"Pátio", utilizando sobras de material de "Redenção", de Roberto
Pires (primeiro longa-metragem baiano).
Nessa época escreveu periodicamente como crítico de cinema em diversos
jornais nacionais. Seu primeiro longa-metragem foi "Barravento" (1961), em
que começou somente como produtor executivo, assumindo a direção e o roteiro
após conflitos entre o diretor Luis Paulino dos Santos e o resto da equipe.
O filme foi finalizado no Rio de Janeiro, onde o diretor teve os primeiros
contatos outros jovens cineastas que ajudariam a gerar o movimento Cinema
Novo.
O filme, premiado na Tchecoslováquia, deu oportunidade para que Glauber
lançasse seu primeiro livro teórico (Revisão Crítica do Cinema Brasileiro) e
o segundo longa metragem. Em 1963 começa a filmar no interior da Bahia "Deus
e o Diabo na Terra do Sol", fita considerada marco inicial do Cinema Novo.
Em novembro de 1965 Glauber é preso juntamente com outros intelectuais que
protestavam contra o regime militar em frente ao Hotel Glória, no Rio de
Janeiro, sede de uma reunião da OEA (Organização dos Estados Americanos).
Na prisão, começou a esboçar o roteiro de um outro marco na sua carreira:
"Terra em Transe" (1967), alegoria política e urbana que se passa na
fictícia república de Eldorado. Proibido em todo o território nacional por
ser considerado subversivo, o filmeé premiado em Cannes, Locarno e Cuba.
Glauber, através de seus filmes e textos teóricos, torna o movimento do
cinema nacional conhecido e reverenciado por todas as vanguardas mundiais.
Seu próximo filme, "O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro" (1969), é
novamente premiado em Cannes. Pouco antes de receber o prêmio de melhor
diretor, o cineasta recebeu um telefonema de Pedro Fages, produtor
cinematográfico de Barcelona, oferecendo cem mil dólares para a realização
de um filme a ser rodado na Espanha, sobre qualquer tema, com total
liberdade criativa. Glauber realiza "O Leão de Sete Cabeças", um de seus
filmes mais revolucionários e herméticos, em apenas 22 dias.
Na década de 70 vem o exílio do diretor, e Glauber parte para rodar filmes
na África, Espanha, Chile, Cuba e Itália, dando continuidade ao movimento de
um cinema extremamente politizado, seguindo uma estética particular. No
regresso ao Brasil, em 77, fez um polêmico documentário sobre o funeral de
Di Cavalcanti - que teve sua exibição pública proibida pela família do
pintor e amigo do cineasta baiano - e "A Idade da Terra".
O lançamento do filme foi prejudicado pela péssima recepção em Veneza, onde
Glauber agrediu o cineasta Louis Malle e a direção do festival. Por causa do
escândalo, o filme fica de fora do Festival de Cinema Ibérico e
Latino-Americano de Biarritz. Doente desde março de 81, o cineasta é
internado em Portugal para tratamento de problemas broncopulmonares. Em 21
de agosto, é trazido de volta ao Rio de Janeiro, onde morre logo depois de
ser internado.
Homenageado em todo o mundo, Glauber Rocha e sua obra cinematográfica e
intelectual são usadas como fonte de estudos sobre cinema nacional até os
dias de hoje. Marco indiscutível no cinema mundial, o diretor é também alvo
de livros, teses, documentários, biografias e retrospectivas que destacam,
entre outras coisas, a importância do Cinema Novo para a cinematografia
nacional.
Glauber Rocha
faria 70 anos hoje e é sempre difícil traduzir uma fração crível da sua
importância como lenda real da expressão artística brasileira, em grande
parte através do cinema. Se a noção de filme brasileiro tivesse uma
constituição oficialmente outorgada, ela teria sido escrita por Rocha via
seu texto histórico A estética da fome. Se o cinema nacional e
latino-americano tivesse um deus, ele provavelmente seria Glauber Rocha, um
deus iconoclasta crente de que a bateria em uma banda seria o que a montagem
é para o cinema.
Glauber é
hoje uma história real e uma lenda, ambas ricas em medidas iguais, e abertas
para a desconstrução, a dilapidação e a desmitificação. Artista claro e
evidente com um discurso eletrizante quando falava ou escrevia sobre o
cinema e as sociedades, o fato de ele não ser exatamente adotado como esse
deus, ou reconhecido oficialmente como redator da nossa constituição
fílmica, apenas reflete as saudáveis discordâncias que existem entre os que
separam fato de lenda, dos que têm fé religiosa e os que se vêem ateus. Mais
ainda, sua rejeição por alguns faz sentido pelo simples fato de a arte ser
uma entidade livre de regras e autoridades.
No último
Festival de Berlim, por exemplo, o cineasta José Padilha, diretor de Tropa
de Elite, mostrou pela primeira vez o seu documentário Garapa, sobre a fome
no Brasil e no mundo. Filmado cruamente em preto-e-branco, Padilha respondeu
a uma indagação glauberiana colocada por essa mesma reportagem sobre o
conceito de filmar a fome, e se, por um acaso, ele teve em mente as idéias
de Glauber sobre a representação da pobreza, tão discutidas no cinema
brasileiro.
“Nunca li o
manifesto de Glauber. Eu não me interesso por manifestos, não acho que faz
parte do meu trabalho dizer a outros colegas cineastas como se deve filmar,
estabelecer regras, não obstante o fato de eu respeitar muito Glauber”,
respondeu Padilha, com base no seu próprio trabalho.
A resposta
nos lembra o debate histórico sobre Cidade de Deus, em que ficou tanto claro
que as idéias de Glauber ainda podem fazer muito sentido para cineastas e
críticos, como causar rejeição numa outra plataforma dos que fazem o cinema.
O debate
também ilustrou indiretamente o tema controvertido da já citada fé religiosa
numa virtual santidade de Glauber, uma vez que reações típicas da religião
eram sentidas toda vez que alguém admitia corajosa e constrangedoramente
“não gostar de Glauber nem do seu cinema”.
Ainda hoje, a
frase é recebida com o mesmo tipo de choque que fiéis numa igreja ou templo
teriam ao ouvir de alguém que “Deus não existe”, e o tom de sacrilégio foi
repetido ano passado quando o humorista Marcelo Madureira foi ouvido
gritando no Cine Odeon, durante sessão da dureza inconteste que é A idade da
Terra, a frase “Glauber é uma merda!”.
É muito fácil
admirar a trajetória de Glauber e seu legado, assim como diminuir o seu
impacto, especialmente quando ele é utilizado como o metro com o qual
procedimentos são medidos num cinema brasileiro como o feito atualmente no
ano 2000, onde uma comédia de papelão como Se eu fosse você 2 conquista
quase seis milhões de espectadores. Tudo depende do quão benéfica a
influência de Glauber pode ser no campo das imagens e das ideias pela manhã,
ou o quão equivocada ela pode ser interpretada à tarde.
A longevidade
das suas ideias sobreviveram fortes ao quase sumiço de circulação dos seus
filmes ao longo dos últimos 15 anos. Só nesta década que um trabalho de
restauração e reapresentação dos seus filmes ofereceu a oportunidade de a
mais nova geração de cinéfilos ter acesso decente aos filmes. Esse projeto
chamado Coleção Glauber Rocha está sendo bancado pela Petrobras, Cinemateca
Brasileira e Estúdios Mega, e dirigido por Paloma Rocha, sua filha, e Joel
Pizzini, realizador e pesquisador do legado de Glauber. Da filmografia, já
foram restaurados e lançados em 35mm e DVD (de excelente qualidade) Deus e o
diabo na terra do Sol (1964), Terra em transe (1967), O Dragão da Maldade
contra o Santo Guerreiro (1969) e A idade da terra (1980), seu último filme.
Curiosamente,
o trabalho de manutenção e expansão da memória de Glauber não existe apenas
na recuperação dos filmes. Paloma e Pizzini, que são casados, têm realizado
filmes que abordam de forma acurada o universo do artista, como o sólido
relato factual Anabasys. Paula Gaitan, por outro lado, viúva de Glauber,
fez, há dois anos, um dos mais belos retratos impressionistas sobre a
mística em torno de Glauber na profunda reflexão em imagens e sons que é
Diário de Cintra, que aborda a fase final da sua vida.
Dono de um
estilo único de filmar, e impossível de citar ou imitar sob o risco de
vermos um pastiche grotesco (há inúmeros, especialmente em escolas de
cinema), o cinema de Glauber Rocha traz uma carga impressionante de
sincretismo num Brasil colado pelas culturas européia, negra e indígena.
A riqueza
dessas imagens, aliás, não funciona apenas dentro de uma compreensão
distanciada e intelectualizada, mas também numa explosão de montagem e
câmera que gera uma certa tristeza ao sabermos que, mesmo deflagrando um sem
número de debates e conquistando admiradores naturais no País e no exterior,
seu cinema nunca realmente encontrou eco no grande público.
Um caso em
questão, e que ilustra algo dessa incompreensão: a simples menção à morte de
Glauber Rocha em 22 de agosto de 1981, aos 42 anos, nos lembra um dos seus
mais belos e grandes filmes, um curta-metragem, Di. Aqui, ele filmou uma
celebração à alegria de viver em toda a sua energia no enterro do seu amigo,
o artista plástico Di Cavalcanti, cujo velório aconteceu no Museu de Arte
Moderna do Rio de Janeiro.
“Ninguém
assistiu ao formidável enterro de sua última quimera, somente a ingratidão,
essa pantera, foi sua companheira inseparável”, fala Glauber ao abrir seu
filme que muito incomodou a família Cavalcanti. Eles não entenderam a
atitude artística de respeito para com o amigo morto e de uma crueza
agressiva para com as formalidades da morte.
O filme está
disponível no You Tube, e ver Di hoje, dia em que Glauber faria 70 anos,
seria uma lembrança viva da sua energia criativa.