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Glauber Rocha faria 70 anos neste sábado, 14 de
março
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Há 70 anos e um dia, nascia o homem que mudaria
radicalmente a cara do cinema brasileiro: Glauber de Andrade Rocha,
criador da estética da fome e pajé-mor do cinema novo, movimento que
resolveu enxergar o Brasil com lentes acuradas
Henrique Araújo
especial para O POVO
É janeiro de 1965. O
cineasta Glauber Rocha lê A Eztetyka da Fome, a tese
basilar do Cinema Novo. O cenário é Gênova, na Itália. À
platéia que se deslocara até a V Rassegna del Cinema
Latino-Americano, o cineasta brasileiro dispara em seu
jorro habitual: “Para o observador europeu, os processos
de criação artística do mundo subdesenvolvido só
interessam na medida que satisfazem sua nostalgia do
primitivismo”. Minutos antes, havia dito que “nem o
latino comunica sua verdadeira miséria ao homem
civilizado nem o homem civilizado compreende
verdadeiramente a miséria do latino”. A tese é curta, e
Glauber a arremata secamente: “Nossa originalidade é
nossa fome. Assim, somente uma cultura da fome, minando
suas próprias estruturas, pode superar-se
qualitativamente: e a mais nobre manifestação cultural
da fome é a violência”.
Glauber Rocha tinha 26 anos e algumas polêmicas no
currículo quando, no mesmo ritmo alucinado da prosa
poética e desagregadora de Guimarães Rosa, emendou: para
o europeu, a miséria é apenas um dado formal no seu
campo de interesse. É provável que o diretor de Deus e o
Diabo na Terra do Sol tenha feito a plateia arredondar
os lábios e exprimir – em francês, inglês, castelhano,
alemão, polonês, italiano - uma interjeição qualquer que
denotasse espanto, susto, êxtase. É provável. Porque, do
mesmo modo que o cinema do baiano Glauber Rocha
desconcertava, suas palavras punham a descoberto as
relações de poder que delimitavam a indústria do cinema.
Mas que protocolos regiam o cinema de Glauber Rocha?
Ninguém saberia dizer senão o próprio Glauber. E era
exatamente isso que ele fazia. “Interessa-me polemizar”,
dissera certa vez o cineasta. O agitador e intelectual
assentava o verbo em terreno fértil.
Fosse vivo, esse mesmo Glauber Rocha teria completado 70
anos no último sábado, 14 de março. Irreprimível que
era, talvez o aguardasse um bolo enorme com setenta
velas estacadas em forma de mandacarus. Mas Glauber
morreu de infecção broncopulmonar em 22 de agosto de
1981, no Rio de Janeiro. Contra todas as expectativas, o
gênio luzidio brilhou intensamente por 42 anos e depois
cessou. Glauber morreu algumas horas após retornar de
Portugal para o Brasil ao lado da esposa, a também
cineasta Paula Gaetán. Antes, deixou uma carta-bomba: A
idade da terra, seu último filme.
Neste domingo, o Vida & Arte Cultura conversa com amigos
de Glauber (o escritor e jornalista Zuenir Ventura e o
cineasta Geraldo Sarno), colegas de geração (a
professora de Teoria Literária na UFRJ Heloísa Buarque
de Hollanda), familiares (o sobrinho João Rocha, a irmã
Paloma Rocha e a mãe, dona Lúcia, cujo aniversário de 90
anos foi comemorado em 16 de janeiro último), críticos
(Ruy Gardnier, editor da revista Contracampo, e Firmino
Holanda, professor da Casa Amarela Eusélio Oliveira) e
teóricos (Ismail Xavier, professor da Escola de
Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo e autor
de O discurso cinematográfico: a opacidade e a
transparência). O objetivo é um só: rastrear os passos
de Glauber de Andrade Rocha (1939-1981) e entender a
estética insubordinada do maior nome do cinema
brasileiro. (Henrique Araújo)
(©
O Povo)
Glauber no banco dos réus
Glauber Rocha tentou radicalizar o
debate político e estético no Brasil dos anos de 1960. Tanto tempo depois,
quais são os ecos dessa discussão no cinema atual?
Em tom de brincadeira, o cineasta baiano Geraldo Sarno,
71 anos, orgulha-se de um dado em sua vasta carreira:
segundo cálculos próprios, ele assinaria mais
documentários filmados na região do Cariri cearense do
que o próprio Rosemberg Cariry, cineasta local e atual
presidente do Congresso Brasileiro de Cinema.
Documentarista por excelência, Sarno tem outros
predicados menos extravagantes. Um deles é o
documentário Viramundo, de 1965, que investiga a
migração nordestina nos rumos do Sul e Sudeste. Foi ele
o responsável pelo lançamento de Sarno à proa do cinema
nacional. Outro motivo para se envaidecer: o pequeno
volume Glauber Rocha e o cinema latino-americano.
Publicado há 14 anos, o livro trata do nó górdio do
pessoal cinemanovista: por que o debate estético (uma
linguagem e um cinema próprios para os países
terceiro-mundistas) proposto por Glauber Rocha não
campeou mais amplamente?
Jornalista, crítico de cinema e editor da revista
eletrônica Contracampo, Ruy Gardnier, 33 anos, constata:
“Falta à nova geração um polemista da envergadura de
Glauber Rocha”. Embora soe gratuitamente provocativa, a
afirmação tem um sentido histórico profundo e um
objetivo claro: refazer a pergunta que norteou o
trabalho de Sarno. Afinal, que grande cineasta na
atualidade consegue catalisar um debate político e
estético que extrapole o perímetro das academias e dos
nichos especializados? O crítico carioca tem um artefato
explosivo na manga. Para ele, o “cinema brasileiro quer
ser relevante hoje pela bilheteria que alcança e não
pela discussão da linguagem.” Trocando em miúdos: a onda
é falar às multidões e ganhar milhões.
É nesse ponto que Gardnier e Sarno, dois nomes
aparentemente antípodas, se encontram. “Nisso a lição do
Glauber não foi compreendida. O Walter Salles faz filmes
de padrão internacional. Ele mostra um país que vai
buscar esse compadecimento do estrangeiro. Já o Fernando
Meirelles vai buscar a coisa exótica do Brasil”, fala
Gardnier. Segundo o crítico, o cinema de Glauber Rocha
tinha uma marca: ele não era regulado pelo olhar
estrangeiro. Imprevista, a narrativa glauberiana
funda-se na mitologia popular, extraindo dali um gérmen
subversivo. O ensinamento clássico preconizava: um
conteúdo revolucionário requer uma forma revolucionária.
Foi exatamente isso que Glauber perseguiu a sua vida
inteira. “Mesmo artistas que têm uma busca estética mais
forte, como o Luiz Fernando Carvalho, não conseguiram
atingir essa envergadura do Glauber”, considera
Gardnier.
Herança
De um modo ou de outro, é essa herança que vem sendo
pesada e sopesada nos últimos anos. Ao que tudo indica,
Glauber Rocha está no banco dos réus. Os crimes são os
que seguem. Primeiro: o que o cinema de Glauber Rocha
tem a dizer às novas gerações? Segundo: esse debate
político proposto pelo autor dos indigestos Terra em
transe e A idade da terra interessa a quem? Feita
inversamente, a pergunta ganha uma nuance curiosa: a
quem não interessa o debate político proposto em termos
radicais? Por que a cinematografia de Glauber Rocha vem
sendo considerada excessivamente ideologizada e, em
muitos termos, pouco relevante?
Uma personagem controversa entra em cena: o mercado.
Entrevista, a palavra percorre subterraneamente as
respostas de Sarno e Gardnier. Do ponto de vista
estritamente estético, a herança de Glauber Rocha não
tem par. O cineasta baiano foi único. “Como estética, eu
concordo totalmente com o Bressane (o cineasta carioca
Julio Bressane, diretor de Cleópatra), que tem a tese de
que ele não deixou herança nenhuma. Essa fúria estética
é difícil de encontrar hoje.”
Hoje, “é ofensivo se você propõe alguma coisa nesses
termos radicais”, considera Sarno. De acordo com o
cineasta, “o que resta, e que é mal-resolvido, é que o
Glauber travava realmente essa discussão com a
sociedade”. Atualmente, esse debate é atrofiado.
Limita-se a termos de ordem econômica. “Como conseguir
dinheiro, captar, produção, distribuição.” Segundo
Gardnier, embora haja aspectos negativos no espólio do
cinema de Glauber Rocha, não se pode acusá-lo – tese
que, vira e mexe, vem à baila – de preterir o debate com
um público amplo, constituído não apenas por formadores
de opinião. “Que havia cineastas que tinham dificuldade
pra dialogar com o público, isso é verdade. Mas isso não
se aplica ao Glauber Rocha.”
Filha mais velha de Glauber Rocha, a cineasta Paloma
Rocha, 48 anos, resume o quadro: “Quando há exibições
dos filmes do Glauber aqui (no instituto Tempo Glauber,
no Rio de Janeiro) e as escolas trazem os alunos, dois
ou três ficam alucinados. Mas a maioria fica sem
entender nada”. Segundo Paloma, o que há diante da obra
do pai “é um estranhamento de uma pessoa que se depara
com uma obra de arte”. (Henrique Araújo)
(©
O Povo)
Cineasta de várias cabeçasMarcelo Dídimo
Especial para O POVO
O início da década de 1960 foi marcado por uma transição
política no Brasil. O parlamentarismo instalado
emergencialmente em 1961 foi abolido em 1963 através de
um plebiscito, voltando a estabelecer-se o
presidencialismo. O País, no entanto, estava entrando em
crise, e vários grupos exigiam reformas imediatas. O ano
de 1964 marca o começo de um período trágico em nossa
história. Com o golpe, que causou a queda do então
presidente João Goulart, os militares assumiram o poder
e por lá ficaram durante vários anos, instaurando a
ditadura militar.
Essa década foi de extrema importância para o cinema
brasileiro. Inconformados com a situação política, e
para se contrapor à indústria cinematográfica do período
chanchadista e aos filmes da Vera Cruz, alguns cineastas
eclodiram o movimento do Cinema Novo. A partir do início
dos anos 60, os realizadores do Cinema Novo iniciaram
uma campanha de advertência cultural para a realidade
social do país. O movimento estabeleceu uma estrutura
mais sólida e madura em 1962, e nomes do cenário
cinematográfico brasileiro ganharam destaque durante
esse período com produções de extrema importância para o
movimento e para a história do cinema nacional. Entre
eles, Nelson Pereira dos Santos, Paulo César Saraceni,
Luis Sérgio Person, Leon Hirzman, Carlos Diegues, Walter
Lima Júnior, Ruy Guerra, Joaquim Pedro de Andrade e
Glauber Rocha.
Nesse período, Glauber já era apontado como um dos
principais articuladores do Cinema Novo e, certamente,
seu mais ávido defensor. Inquieto por natureza, Glauber
procurava estar presente em quase todos os lugares onde
os interesses do cinema brasileiro estavam em jogo, se
tornando um verdadeiro líder do cinema nacional. Em seus
filmes, Glauber retratou o Brasil de forma singular,
abordando questões polêmicas sob o prisma do ideal
revolucionário e introduzindo em sua narrativa contextos
simbólicos e alegóricos. Junte-se a esta ideologia a
estética da fome e outras estéticas impressas pelo autor
em seus trabalhos.
Personagens foram imortalizados por Glauber e se
tornaram ícones do cinema nacional. Em Terra em Transe,
o jornalista politizado Paulo Martins (Jardel Filho)
confronta o poderoso Porfírio Diaz (Paulo Autran).
Antônio das Mortes (Maurício do Valle), o ávido caçador
de cangaceiros, inicia sua paradoxal saga em Deus e o
Diabo na Terra do Sol e continua sua sina em O Dragão da
Maldade Contra o Santo Guerreiro, filme em que a figura
do professor (Othon Bastos) se torna um inesperado
aliado. E é o próprio Othon quem incorpora e dá vida ao
cangaceiro Corisco, de Deus e o Diabo, que, numa cena
antológica do cinema nacional, encarna Lampião e se
proclama o cangaceiro de duas cabeças: “Virgulino acabou
na carne, mas o espírito está vivo. O espírito está aqui
no meu corpo e agora juntou os dois. Cangaceiro de duas
cabeças, uma por fora, outra por dentro. Uma matando e a
outra pensando. Agora eu quero ver se esse homem de duas
cabeças pode consertar esse sertão.”
Na verdade, Glauber sempre procurou, através de
subjetivas indiretas em seus filmes, externar sua
indignação com o sistema social e político vigente,
contestando o poder federal da época, a ditadura militar
e a censura. Mesmo no exílio, Glauber continuava
inquieto, e enviava cartas aos amigos, escrevia
roteiros, dirigia filmes (Cabeças Cortadas) e fazia
críticas ao doloroso processo pelo qual os brasileiros,
e o país, atravessavam.
O Glauber de duas cabeças - ou várias – pensantes deixou
um legado de filmes, personagens e ideias de valor
inestimável para o Cinema Novo. Muitos o consideram como
o mais importante cineasta do país. Outros contestam a
importância da sua obra. O fato é que Glauber é
incontornável. É impossível falar em cinema nacional sem
perpassar pelo universo glauberiano. E é dentro desse
universo lúdico recheado de simbolismos e personagens
históricos que Glauber deixou sua marca na história do
cinema brasileiro.
Marcelo Dídimo é doutor em cinema pela Unicamp e
professor de Cinema e Audiovisual da Universidade
Federal do Ceará.
(©
O Povo)
Desrazão e
revoluçãoO cinema a serviço da revolução. Em artigo, o pesquisador
Sander Cruz Castelo expõe as premissas básicas e os movimentos teóricos por trás
da força-motriz que propulsiona a cinematografia de Glauber Rocha
Sander Cruz Castelo
Especial para O POVO
Glauber Rocha, revolucionário integral, atuou num tempo
em que o movimento comunista transferira suas bases para
o Terceiro Mundo, ostentando sua força na descolonização
afro-asiática do 2º pós-guerra, na revolução chinesa
(1949) e na cubana (1959). Acreditava-se então numa
terceira via oposta ao liberalismo estadunidense e ao
burocratismo soviético. Era a época do “romantismo
revolucionário”. O operário europeu havendo se aquietado
no interior dos estados de bem-estar europeus,
delineava-se o camponês, personagem intocado pela
“civilização burguesa”, como novo modelo de pureza
revolucionária. Além de Fanon, Mao e Guevara, com suas
elegias da tomada das cidades pela insurgência
campesina, desenhava-se a figura do “rebelde primitivo”
com os contornos do marxismo cultural ou ocidental de
Benjamin, Gramsci e Marcuse, autores para quem a
tradição e os senso comum eram potencialmente
subvertedores se devidamente limados da superfície
conservadora, e os aparelhos dos regimes democráticos
podiam ser instrumentais à tomada do poder.
Com efeito, para Glauber a revolução operar-se-ia no
campo cultural e político. Guerra de movimento e guerra
de posições, como apregoava o filósofo italiano. A
tarefa dos cineastas do mundo subdesenvolvido era a de
traduzir a guerra de guerrilhas tricontinental
guevariana para o campo cinematográfico. No plano
organizacional, com a articulação e autonomia dos
cineastas terceiromundistas no que concerne à produção,
distribuição e exibição, consubstanciadas numa
“Internacional Cinematográfica”. No plano estético,
mediante a assunção da didática e da épica de Eisenstein
e Brecht.
A primeira funcionaria de molde a desalienar a
sociedade, desconstruindo os mitos colonizadores do
imperialismo capitalista, através de uma pedagogia
revolucionária que não economizava no sadismo. A
segunda, por sua vez, serviria para incitar à ação,
estimulando a fabulação de mitos soberanos, adequados à
invenção de um povo, processo a que igualmente não
faltava a violência. Não obstante essa forma difásica de
trabalhar os mitos, ambas, a épica e a didática, eram
necessariamente indissolúveis: a didática desprovida de
épica degeneraria no moralismo paternalista e na
“histeria”, ao passo que a épica carente de didática
resultaria em “esterilidade” formalista.
A fonte da revolução glauberiana era a cultura popular,
entendida não sob a ótica da “razão opressiva” da
burguesia, que a teria despolitizado enquandrando-a no
campo inofensivo do “folclore”, mas sim como linguagem
de “permanente rebelião histórica”.
Destarte, as “raízes índias e negras” seriam as únicas
verdadeiramente revolucionárias na América Latina, onde
a burguesia representava caricatura decadente dos países
colonizadores. Por meio de uma operação antropofágica,
na qual se deglutiria a cultura do colonizador a partir
do terreno do colonizado, produzir-se-ia uma
contraofensiva cultural assemelhada à ação da guerrilha
no plano militar. Com esse fito, Glauber exponenciava o
papel da vanguarda, composta por revolucionários que,
como ele, abandonaram a “razão burguesa” e se fizeram
mediadores entre a revolução vindoura e o “misticismo”
popular, originado da “fome”.
A propósito, Gardies nota que os filmes de Glauber são
estruturalmente ancilados na fórmula elemento novo -
crise – mutação do mediador – mutação futura da
sociedade. Em síntese, os (anti) heróis glauberianos se
qualificariam como intercessores justamente por
atravessarem o ciclo de vida, morte e renascimento
contido nos mitos agrários e solares, antecipando uma
transformação (o “transe”) a ser experenciada no futuro
por toda a coletividade. A função deles, portanto, era a
de conscientizar politicamente os oprimidos, mostrar a
sua força, entregando-lhes em seguida a haste da
bandeira revolucionária, da qual eram os verdadeiros
portadores.
Sander Cruz Castelo é doutorando em Sociologia (UFC)
(sandercruzcastelo@uol.com.br)
(©
O Povo)
Leitor, crítico, cineasta
Glauber de Andrade Rocha nasce no dia 14 de março de
1939, em Vitória da Conquista, Bahia. Primeiro filho de
Adamastor Bráulio Silva Rocha e Lúcia Mendes de Andrade
Rocha.
Três anos depois, Glauber vai para o internato do
colégio presbiteriano 2 de julho, em Salvador. É também
no 2 de Julho que o menino escreve a peça de teatro El
Hilito de Oro, encenada pelo professor Josué de Castro.
No começo da década de 1950, Glauber participa, como
crítico de cinema, do programa Cinema em Close-Up, na
Rádio Sociedade da Bahia. A irmã de Glauber, Ana
Marcelina, morre precocemente de leucemia. Até o fim de
sua vida, Glauber carregará consigo essa marca trágica.
A infância e juventude de Glauber é marcada por
leituras. É bastante conhecida a carta escrita por
Glauber e endereçada ao seu tio, Wilson Mendes de
Andrade. Numa prosa corretíssima, ele, Glauber revela o
desejo de ser escritor. E faz referências às leituras
que vem cultivando: Jorge Amado, Érico Veríssimo,
clássicos da literatura juvenil e filosofia (Nietzsche e
Schopenhauer). Nessa mesma época, Glauber ingressa no
colégio Central da Bahia. Lá, conhece a geração de
jovens poetas, críticos e cineastas com a qual irá
fundar o grupo Mapa e varrer as ruas de Salvador em
madrugadas quentes, percorrendo casas de tolerância ou
debatendo até altas horas da noite no pequeno quarto que
Glauber mantinha no pensionato administrado pela mãe.
Em 1957, Glauber Rocha entra na Faculdade de Direito da
Universidade da Bahia, que cursou durante três anos.
Ainda em 1957, filma Pátio. Em 1958, Glauber trabalha
como repórter no Jornal da Bahia. No ano seguinte,
Glauber se casa com Helena Ignez. No mesmo ano, inicia
as filmagens de seu segundo curta-metragem, o inacabado
Cruz na Praça, cujo roteiro é inspirado em um conto do
próprio Glauber. Nesse mesmo período tem início sua
atividade de crítico de cinema. Publica artigos no
Jornal do Brasil e no Diário de Notícias. Em 1960, ano
em que Glauber filmaria seu primeiro longa-metragem,
Barravento, nasce sua primeira filha, Paloma. Glauber e
Helena se separam um ano depois.
Deus e o diabo na terra do sol é filmado em 1963. O
longa é exibido no Festival de Cannes no ano seguinte.
Ainda em 1963, Glauber escreve Revisão Crítica do cinema
brasileiro e, dois anos depois, o bombástico artigo
Estética da fome. No fim dos anos 1960, Glauber finaliza
O dragão da maldade contra o santo guerreiro, filme pelo
qual ganha a Palma de Ouro de melhor diretor em Cannes.
Em 1970, o cineasta prepara Cabeças cortadas, rodado na
região da Catalunha.
Em 1971 Glauber parte para o exílio. Na Universidade
Columbia, em Nova York, apresenta a tese Eztetyka do
Sonho. Em novembro do mesmo ano, nasce Daniel, seu filho
com Martha Jardim Gomes. No final do ano, viaja para
Cuba, onde permanece um ano e grava, ao lado de Marcos
Medeiros, o filme História do Brasil. O exílio dura até
1976, quando retorna ao Brasil para, no ano seguinte,
receber novamente o Prêmio Especial do Júri em Cannes.
Desta vez, por seu documentário Di Cavalcanti, cujas
cenas mostram o velório e enterro do pintor. No mesmo
ano, morre sua irmã Anecyr. Antes de morrer, em 22 de
agosto de 1981 – sua saúde havia sido comprometida por
uma infecção pulmonar -, Glauber Rocha ainda rodaria um
último filme: A idade da terra.
(©
O Povo)
O pajé da triboQuando desatava a falar, todos ouviam. era um tagarela,
metia-se na vida dos outros. exigia entrega total dos amigos. Esse foi Glauber
de Andrade Rocha
A mãe do Pajé é dona Lúcia, 90 anos recém-inteirados –
agora, com um marca-passo a acompanhar-lhe as idas e
vindas. A irmã do Pajé é Paloma. O sobrinho, João. O
amigo do Pajé é Zuenir. A admiradora, Heloísa. E o Pajé
é Glauber Rocha. Na “geração tribal” descrita pela
professora de Teoria Literária da UFRJ, Heloísa Buarque
de Hollanda, o pai do Cinema Novo também ocupava o lugar
de guardião, comandante, agitador, técnico. Para dona
Lúcia, porém, Glauber foi apenas o menino que preferia
os livros ao jogo de bila na rua.
Para o escritor e jornalista Zuenir Ventura, Glauber foi
bem mais que isso. “Ele era um instigador. Dos seus
amigos, da cultura, do País. Como era muito inquieto,
não podia ver ninguém parado. Sobretudo instigava os
amigos. Ele tinha a capacidade de se apresentar como
exemplo, tinha um grande talento pra dramatização. E
tinha gestos e atitudes que chamavam a atenção. Isso no
cotidiano. Estou falando do cotidiano.” No cotidiano de
dona Lúcia, Glauber foi um menino normal. Apenas gostava
muito de ler. “Com nove anos, lia e escrevia muito. A
vida de Glauber foi escrever e ler. Ele sempre foi uma
pessoa muito consciente do que ele tava fazendo. Foi uma
pessoa que lutou muito por essa cultura”.
A matriarca do clã dos Rocha tem lembranças vívidas do
filho. Quando fecha os olhos, por exemplo, traz à luz:
um dos últimos desejos expressos por Glauber em carta
foi o de que o seu trabalho encontrasse guarida sob o
mesmo teto. “Ele me escreveu dizendo: ‘Mãe, se um dia eu
puder reunir toda a minha obra em um centro cultural...?
E a partir daí a gente assumiu o compromisso”, revela
dona Lúcia por telefone. De passagem pelo instituto
Tempo Glauber, no Rio de Janeiro – lá, o sonho do filho
virou realidade -, a mãe de Glauber Rocha tem um
segredo. Entre rodopios de parte a parte, ela custa a
revelar. Primeiro, diz: gosta de tudo que o filho
aprontou. Depois, falando baixinho, o corpo ainda
convalescendo da cirurgia, conta: “Meu filme predileto
do Glauber é Barravento. Porque ele era ainda um menino.
Tinha 18 anos. Mas eu já dava apoio pra ele”.
A rigor, “barravento” é o tempo da mudança, da
transformação. Até mesmo da violência. E foi isso que
Glauber fez: a seu modo, transformou a família numa
embarcação cujo navegar impreciso sempre foi guiado
pelos ventos do cinema. Na proa, o louco capitão. João
Rocha, sobrinho do cineasta, confirma a tese. O volume
de lembranças reais que João tem do tio é inversamente
proporcional ao peso que o cineasta tem sobre ele.
Inquirido acerca da lembrança mais viva que tem de
Glauber, ele responde: “É muito complicado falar de uma
pessoa que participou tão pouco da minha vida quando
estava vivo e agora, vinte e poucos anos depois de
falecido, está cada vez mais íntimo. Como sobrinho,
guardo um carinho familiar que é abstrato. Carinho pelas
histórias, pelas lembranças que pertencem a outras
pessoas, um respeito que vem de um lugar dentro do meu
labirinto pessoal de imagens e signos”. Quando entra em
cena o Glauber polêmico, agitador, controverso, os
pratos da balança não se alteram. “Como artista, como
pensador, tenho a missão, junto aos meus primos, de
relembrar diariamente suas ideias, seus movimentos e
assim, de certa forma, anular a ausência física dele.”
Para Paloma Rocha, filha mais velha de Glauber, a
permanência do cineasta num patamar qualquer do
inconsciente coletivo deve-se principalmente ao caráter
atemporal de seus filmes. “Acho que o Glauber toca em
questões universais. A luta de classes, por exemplo. A
busca das origens, da liberdade. E por isso os filmes
continuam universais. A obra tem uma estrutura bastante
simples. Você vai ter o ditador, o herói, a personagem
feminina que passa sem dizer nada.” Segundo Paloma, as
mulheres de Glauber no cinema eram enigmáticas. Passavam
ao longe, rasgando de branco a paisagem. Mas sempre
caladas.
Ligada a Glauber Rocha indiretamente, por tabela, já que
o cineasta projetava-se sobre toda uma turma de
intelectuais e artistas que viviam no Rio de Janeiro dos
anos de 1960, Heloísa Buarque de Hollanda tem lembranças
difusas do chefe cinemanovista. Ela recorda o mitológico
réveillon descrito por Zuenir em 1968 – o ano que não
terminou. Nele, Glauber é uma figura franzina, que passa
pela festa como uma das personagens femininas de seus
filmes. Quando recebe de chofre a mesma pergunta feita a
João Rocha (qual a lembrança mais viva que você tem de
Glauber?), a pesquisadora não vacila. É 1981, e Glauber
está sendo velado. Darcy Ribeiro, outro grande amigo do
cineasta, discursa. Suas palavras ganham imediatamente
uma dimensão transcendente. Há um desespero solto no ar
que, de tão grave, pode ser tocado. É palpável, a falta
é sentida a quilômetros dali. “O grande evento
envolvendo Glauber foi sua morte. Pela dramaticidade,
foi único. Era uma cidade órfã. Era muito comovente.
Espiritualmente, todos saímos de lá derrotados. Atrás do
caixão passava Deus e o diabo. Era uma coisa que ele
poderia ter dirigido.” (Henrique
Araújo)
(©
O Povo) |