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No rastro do santo guerreiro

15/03/2009

 

 

Glauber Rocha faria 70 anos neste sábado, 14 de março
 

Há 70 anos e um dia, nascia o homem que mudaria radicalmente a cara do cinema brasileiro: Glauber de Andrade Rocha, criador da estética da fome e pajé-mor do cinema novo, movimento que resolveu enxergar o Brasil com lentes acuradas

Henrique Araújo
especial para O POVO

 
É janeiro de 1965. O cineasta Glauber Rocha lê A Eztetyka da Fome, a tese basilar do Cinema Novo. O cenário é Gênova, na Itália. À platéia que se deslocara até a V Rassegna del Cinema Latino-Americano, o cineasta brasileiro dispara em seu jorro habitual: “Para o observador europeu, os processos de criação artística do mundo subdesenvolvido só interessam na medida que satisfazem sua nostalgia do primitivismo”. Minutos antes, havia dito que “nem o latino comunica sua verdadeira miséria ao homem civilizado nem o homem civilizado compreende verdadeiramente a miséria do latino”. A tese é curta, e Glauber a arremata secamente: “Nossa originalidade é nossa fome. Assim, somente uma cultura da fome, minando suas próprias estruturas, pode superar-se qualitativamente: e a mais nobre manifestação cultural da fome é a violência”.

Glauber Rocha tinha 26 anos e algumas polêmicas no currículo quando, no mesmo ritmo alucinado da prosa poética e desagregadora de Guimarães Rosa, emendou: para o europeu, a miséria é apenas um dado formal no seu campo de interesse. É provável que o diretor de Deus e o Diabo na Terra do Sol tenha feito a plateia arredondar os lábios e exprimir – em francês, inglês, castelhano, alemão, polonês, italiano - uma interjeição qualquer que denotasse espanto, susto, êxtase. É provável. Porque, do mesmo modo que o cinema do baiano Glauber Rocha desconcertava, suas palavras punham a descoberto as relações de poder que delimitavam a indústria do cinema.

Mas que protocolos regiam o cinema de Glauber Rocha? Ninguém saberia dizer senão o próprio Glauber. E era exatamente isso que ele fazia. “Interessa-me polemizar”, dissera certa vez o cineasta. O agitador e intelectual assentava o verbo em terreno fértil.

Fosse vivo, esse mesmo Glauber Rocha teria completado 70 anos no último sábado, 14 de março. Irreprimível que era, talvez o aguardasse um bolo enorme com setenta velas estacadas em forma de mandacarus. Mas Glauber morreu de infecção broncopulmonar em 22 de agosto de 1981, no Rio de Janeiro. Contra todas as expectativas, o gênio luzidio brilhou intensamente por 42 anos e depois cessou. Glauber morreu algumas horas após retornar de Portugal para o Brasil ao lado da esposa, a também cineasta Paula Gaetán. Antes, deixou uma carta-bomba: A idade da terra, seu último filme.

Neste domingo, o Vida & Arte Cultura conversa com amigos de Glauber (o escritor e jornalista Zuenir Ventura e o cineasta Geraldo Sarno), colegas de geração (a professora de Teoria Literária na UFRJ Heloísa Buarque de Hollanda), familiares (o sobrinho João Rocha, a irmã Paloma Rocha e a mãe, dona Lúcia, cujo aniversário de 90 anos foi comemorado em 16 de janeiro último), críticos (Ruy Gardnier, editor da revista Contracampo, e Firmino Holanda, professor da Casa Amarela Eusélio Oliveira) e teóricos (Ismail Xavier, professor da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo e autor de O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência). O objetivo é um só: rastrear os passos de Glauber de Andrade Rocha (1939-1981) e entender a estética insubordinada do maior nome do cinema brasileiro. (Henrique Araújo)
 

(© O Povo)


Glauber no banco dos réus

 

Glauber Rocha tentou radicalizar o debate político e estético no Brasil dos anos de 1960. Tanto tempo depois, quais são os ecos dessa discussão no cinema atual?

Em tom de brincadeira, o cineasta baiano Geraldo Sarno, 71 anos, orgulha-se de um dado em sua vasta carreira: segundo cálculos próprios, ele assinaria mais documentários filmados na região do Cariri cearense do que o próprio Rosemberg Cariry, cineasta local e atual presidente do Congresso Brasileiro de Cinema. Documentarista por excelência, Sarno tem outros predicados menos extravagantes. Um deles é o documentário Viramundo, de 1965, que investiga a migração nordestina nos rumos do Sul e Sudeste. Foi ele o responsável pelo lançamento de Sarno à proa do cinema nacional. Outro motivo para se envaidecer: o pequeno volume Glauber Rocha e o cinema latino-americano. Publicado há 14 anos, o livro trata do nó górdio do pessoal cinemanovista: por que o debate estético (uma linguagem e um cinema próprios para os países terceiro-mundistas) proposto por Glauber Rocha não campeou mais amplamente?

Jornalista, crítico de cinema e editor da revista eletrônica Contracampo, Ruy Gardnier, 33 anos, constata: “Falta à nova geração um polemista da envergadura de Glauber Rocha”. Embora soe gratuitamente provocativa, a afirmação tem um sentido histórico profundo e um objetivo claro: refazer a pergunta que norteou o trabalho de Sarno. Afinal, que grande cineasta na atualidade consegue catalisar um debate político e estético que extrapole o perímetro das academias e dos nichos especializados? O crítico carioca tem um artefato explosivo na manga. Para ele, o “cinema brasileiro quer ser relevante hoje pela bilheteria que alcança e não pela discussão da linguagem.” Trocando em miúdos: a onda é falar às multidões e ganhar milhões.

É nesse ponto que Gardnier e Sarno, dois nomes aparentemente antípodas, se encontram. “Nisso a lição do Glauber não foi compreendida. O Walter Salles faz filmes de padrão internacional. Ele mostra um país que vai buscar esse compadecimento do estrangeiro. Já o Fernando Meirelles vai buscar a coisa exótica do Brasil”, fala Gardnier. Segundo o crítico, o cinema de Glauber Rocha tinha uma marca: ele não era regulado pelo olhar estrangeiro. Imprevista, a narrativa glauberiana funda-se na mitologia popular, extraindo dali um gérmen subversivo. O ensinamento clássico preconizava: um conteúdo revolucionário requer uma forma revolucionária. Foi exatamente isso que Glauber perseguiu a sua vida inteira. “Mesmo artistas que têm uma busca estética mais forte, como o Luiz Fernando Carvalho, não conseguiram atingir essa envergadura do Glauber”, considera Gardnier.

Herança

De um modo ou de outro, é essa herança que vem sendo pesada e sopesada nos últimos anos. Ao que tudo indica, Glauber Rocha está no banco dos réus. Os crimes são os que seguem. Primeiro: o que o cinema de Glauber Rocha tem a dizer às novas gerações? Segundo: esse debate político proposto pelo autor dos indigestos Terra em transe e A idade da terra interessa a quem? Feita inversamente, a pergunta ganha uma nuance curiosa: a quem não interessa o debate político proposto em termos radicais? Por que a cinematografia de Glauber Rocha vem sendo considerada excessivamente ideologizada e, em muitos termos, pouco relevante?

Uma personagem controversa entra em cena: o mercado. Entrevista, a palavra percorre subterraneamente as respostas de Sarno e Gardnier. Do ponto de vista estritamente estético, a herança de Glauber Rocha não tem par. O cineasta baiano foi único. “Como estética, eu concordo totalmente com o Bressane (o cineasta carioca Julio Bressane, diretor de Cleópatra), que tem a tese de que ele não deixou herança nenhuma. Essa fúria estética é difícil de encontrar hoje.”

Hoje, “é ofensivo se você propõe alguma coisa nesses termos radicais”, considera Sarno. De acordo com o cineasta, “o que resta, e que é mal-resolvido, é que o Glauber travava realmente essa discussão com a sociedade”. Atualmente, esse debate é atrofiado. Limita-se a termos de ordem econômica. “Como conseguir dinheiro, captar, produção, distribuição.” Segundo Gardnier, embora haja aspectos negativos no espólio do cinema de Glauber Rocha, não se pode acusá-lo – tese que, vira e mexe, vem à baila – de preterir o debate com um público amplo, constituído não apenas por formadores de opinião. “Que havia cineastas que tinham dificuldade pra dialogar com o público, isso é verdade. Mas isso não se aplica ao Glauber Rocha.”
Filha mais velha de Glauber Rocha, a cineasta Paloma Rocha, 48 anos, resume o quadro: “Quando há exibições dos filmes do Glauber aqui (no instituto Tempo Glauber, no Rio de Janeiro) e as escolas trazem os alunos, dois ou três ficam alucinados. Mas a maioria fica sem entender nada”. Segundo Paloma, o que há diante da obra do pai “é um estranhamento de uma pessoa que se depara com uma obra de arte”. (Henrique Araújo)

(© O Povo)


Cineasta de várias cabeças

Marcelo Dídimo
Especial para O POVO
 

 

O início da década de 1960 foi marcado por uma transição política no Brasil. O parlamentarismo instalado emergencialmente em 1961 foi abolido em 1963 através de um plebiscito, voltando a estabelecer-se o presidencialismo. O País, no entanto, estava entrando em crise, e vários grupos exigiam reformas imediatas. O ano de 1964 marca o começo de um período trágico em nossa história. Com o golpe, que causou a queda do então presidente João Goulart, os militares assumiram o poder e por lá ficaram durante vários anos, instaurando a ditadura militar.

Essa década foi de extrema importância para o cinema brasileiro. Inconformados com a situação política, e para se contrapor à indústria cinematográfica do período chanchadista e aos filmes da Vera Cruz, alguns cineastas eclodiram o movimento do Cinema Novo. A partir do início dos anos 60, os realizadores do Cinema Novo iniciaram uma campanha de advertência cultural para a realidade social do país. O movimento estabeleceu uma estrutura mais sólida e madura em 1962, e nomes do cenário cinematográfico brasileiro ganharam destaque durante esse período com produções de extrema importância para o movimento e para a história do cinema nacional. Entre eles, Nelson Pereira dos Santos, Paulo César Saraceni, Luis Sérgio Person, Leon Hirzman, Carlos Diegues, Walter Lima Júnior, Ruy Guerra, Joaquim Pedro de Andrade e Glauber Rocha.

Nesse período, Glauber já era apontado como um dos principais articuladores do Cinema Novo e, certamente, seu mais ávido defensor. Inquieto por natureza, Glauber procurava estar presente em quase todos os lugares onde os interesses do cinema brasileiro estavam em jogo, se tornando um verdadeiro líder do cinema nacional. Em seus filmes, Glauber retratou o Brasil de forma singular, abordando questões polêmicas sob o prisma do ideal revolucionário e introduzindo em sua narrativa contextos simbólicos e alegóricos. Junte-se a esta ideologia a estética da fome e outras estéticas impressas pelo autor em seus trabalhos.

Personagens foram imortalizados por Glauber e se tornaram ícones do cinema nacional. Em Terra em Transe, o jornalista politizado Paulo Martins (Jardel Filho) confronta o poderoso Porfírio Diaz (Paulo Autran). Antônio das Mortes (Maurício do Valle), o ávido caçador de cangaceiros, inicia sua paradoxal saga em Deus e o Diabo na Terra do Sol e continua sua sina em O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro, filme em que a figura do professor (Othon Bastos) se torna um inesperado aliado. E é o próprio Othon quem incorpora e dá vida ao cangaceiro Corisco, de Deus e o Diabo, que, numa cena antológica do cinema nacional, encarna Lampião e se proclama o cangaceiro de duas cabeças: “Virgulino acabou na carne, mas o espírito está vivo. O espírito está aqui no meu corpo e agora juntou os dois. Cangaceiro de duas cabeças, uma por fora, outra por dentro. Uma matando e a outra pensando. Agora eu quero ver se esse homem de duas cabeças pode consertar esse sertão.”
Na verdade, Glauber sempre procurou, através de subjetivas indiretas em seus filmes, externar sua indignação com o sistema social e político vigente, contestando o poder federal da época, a ditadura militar e a censura. Mesmo no exílio, Glauber continuava inquieto, e enviava cartas aos amigos, escrevia roteiros, dirigia filmes (Cabeças Cortadas) e fazia críticas ao doloroso processo pelo qual os brasileiros, e o país, atravessavam.

O Glauber de duas cabeças - ou várias – pensantes deixou um legado de filmes, personagens e ideias de valor inestimável para o Cinema Novo. Muitos o consideram como o mais importante cineasta do país. Outros contestam a importância da sua obra. O fato é que Glauber é incontornável. É impossível falar em cinema nacional sem perpassar pelo universo glauberiano. E é dentro desse universo lúdico recheado de simbolismos e personagens históricos que Glauber deixou sua marca na história do cinema brasileiro.

Marcelo Dídimo é doutor em cinema pela Unicamp e professor de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Ceará.

(© O Povo)


Desrazão e revolução

O cinema a serviço da revolução. Em artigo, o pesquisador Sander Cruz Castelo expõe as premissas básicas e os movimentos teóricos por trás da força-motriz que propulsiona a cinematografia de Glauber Rocha

Sander Cruz Castelo
Especial para O POVO

Glauber Rocha, revolucionário integral, atuou num tempo em que o movimento comunista transferira suas bases para o Terceiro Mundo, ostentando sua força na descolonização afro-asiática do 2º pós-guerra, na revolução chinesa (1949) e na cubana (1959). Acreditava-se então numa terceira via oposta ao liberalismo estadunidense e ao burocratismo soviético. Era a época do “romantismo revolucionário”. O operário europeu havendo se aquietado no interior dos estados de bem-estar europeus, delineava-se o camponês, personagem intocado pela “civilização burguesa”, como novo modelo de pureza revolucionária. Além de Fanon, Mao e Guevara, com suas elegias da tomada das cidades pela insurgência campesina, desenhava-se a figura do “rebelde primitivo” com os contornos do marxismo cultural ou ocidental de Benjamin, Gramsci e Marcuse, autores para quem a tradição e os senso comum eram potencialmente subvertedores se devidamente limados da superfície conservadora, e os aparelhos dos regimes democráticos podiam ser instrumentais à tomada do poder.

Com efeito, para Glauber a revolução operar-se-ia no campo cultural e político. Guerra de movimento e guerra de posições, como apregoava o filósofo italiano. A tarefa dos cineastas do mundo subdesenvolvido era a de traduzir a guerra de guerrilhas tricontinental guevariana para o campo cinematográfico. No plano organizacional, com a articulação e autonomia dos cineastas terceiromundistas no que concerne à produção, distribuição e exibição, consubstanciadas numa “Internacional Cinematográfica”. No plano estético, mediante a assunção da didática e da épica de Eisenstein e Brecht.

A primeira funcionaria de molde a desalienar a sociedade, desconstruindo os mitos colonizadores do imperialismo capitalista, através de uma pedagogia revolucionária que não economizava no sadismo. A segunda, por sua vez, serviria para incitar à ação, estimulando a fabulação de mitos soberanos, adequados à invenção de um povo, processo a que igualmente não faltava a violência. Não obstante essa forma difásica de trabalhar os mitos, ambas, a épica e a didática, eram necessariamente indissolúveis: a didática desprovida de épica degeneraria no moralismo paternalista e na “histeria”, ao passo que a épica carente de didática resultaria em “esterilidade” formalista.

A fonte da revolução glauberiana era a cultura popular, entendida não sob a ótica da “razão opressiva” da burguesia, que a teria despolitizado enquandrando-a no campo inofensivo do “folclore”, mas sim como linguagem de “permanente rebelião histórica”.

Destarte, as “raízes índias e negras” seriam as únicas verdadeiramente revolucionárias na América Latina, onde a burguesia representava caricatura decadente dos países colonizadores. Por meio de uma operação antropofágica, na qual se deglutiria a cultura do colonizador a partir do terreno do colonizado, produzir-se-ia uma contraofensiva cultural assemelhada à ação da guerrilha no plano militar. Com esse fito, Glauber exponenciava o papel da vanguarda, composta por revolucionários que, como ele, abandonaram a “razão burguesa” e se fizeram mediadores entre a revolução vindoura e o “misticismo” popular, originado da “fome”.

A propósito, Gardies nota que os filmes de Glauber são estruturalmente ancilados na fórmula elemento novo - crise – mutação do mediador – mutação futura da sociedade. Em síntese, os (anti) heróis glauberianos se qualificariam como intercessores justamente por atravessarem o ciclo de vida, morte e renascimento contido nos mitos agrários e solares, antecipando uma transformação (o “transe”) a ser experenciada no futuro por toda a coletividade. A função deles, portanto, era a de conscientizar politicamente os oprimidos, mostrar a sua força, entregando-lhes em seguida a haste da bandeira revolucionária, da qual eram os verdadeiros portadores.

Sander Cruz Castelo é doutorando em Sociologia (UFC) (sandercruzcastelo@uol.com.br)

(© O Povo)


Leitor, crítico, cineasta
Glauber de Andrade Rocha nasce no dia 14 de março de 1939, em Vitória da Conquista, Bahia. Primeiro filho de Adamastor Bráulio Silva Rocha e Lúcia Mendes de Andrade Rocha.

Três anos depois, Glauber vai para o internato do colégio presbiteriano 2 de julho, em Salvador. É também no 2 de Julho que o menino escreve a peça de teatro El Hilito de Oro, encenada pelo professor Josué de Castro.

No começo da década de 1950, Glauber participa, como crítico de cinema, do programa Cinema em Close-Up, na Rádio Sociedade da Bahia. A irmã de Glauber, Ana Marcelina, morre precocemente de leucemia. Até o fim de sua vida, Glauber carregará consigo essa marca trágica.

A infância e juventude de Glauber é marcada por leituras. É bastante conhecida a carta escrita por Glauber e endereçada ao seu tio, Wilson Mendes de Andrade. Numa prosa corretíssima, ele, Glauber revela o desejo de ser escritor. E faz referências às leituras que vem cultivando: Jorge Amado, Érico Veríssimo, clássicos da literatura juvenil e filosofia (Nietzsche e Schopenhauer). Nessa mesma época, Glauber ingressa no colégio Central da Bahia. Lá, conhece a geração de jovens poetas, críticos e cineastas com a qual irá fundar o grupo Mapa e varrer as ruas de Salvador em madrugadas quentes, percorrendo casas de tolerância ou debatendo até altas horas da noite no pequeno quarto que Glauber mantinha no pensionato administrado pela mãe.

Em 1957, Glauber Rocha entra na Faculdade de Direito da Universidade da Bahia, que cursou durante três anos. Ainda em 1957, filma Pátio. Em 1958, Glauber trabalha como repórter no Jornal da Bahia. No ano seguinte, Glauber se casa com Helena Ignez. No mesmo ano, inicia as filmagens de seu segundo curta-metragem, o inacabado Cruz na Praça, cujo roteiro é inspirado em um conto do próprio Glauber. Nesse mesmo período tem início sua atividade de crítico de cinema. Publica artigos no Jornal do Brasil e no Diário de Notícias. Em 1960, ano em que Glauber filmaria seu primeiro longa-metragem, Barravento, nasce sua primeira filha, Paloma. Glauber e Helena se separam um ano depois.

Deus e o diabo na terra do sol é filmado em 1963. O longa é exibido no Festival de Cannes no ano seguinte. Ainda em 1963, Glauber escreve Revisão Crítica do cinema brasileiro e, dois anos depois, o bombástico artigo Estética da fome. No fim dos anos 1960, Glauber finaliza O dragão da maldade contra o santo guerreiro, filme pelo qual ganha a Palma de Ouro de melhor diretor em Cannes. Em 1970, o cineasta prepara Cabeças cortadas, rodado na região da Catalunha.

Em 1971 Glauber parte para o exílio. Na Universidade Columbia, em Nova York, apresenta a tese Eztetyka do Sonho. Em novembro do mesmo ano, nasce Daniel, seu filho com Martha Jardim Gomes. No final do ano, viaja para Cuba, onde permanece um ano e grava, ao lado de Marcos Medeiros, o filme História do Brasil. O exílio dura até 1976, quando retorna ao Brasil para, no ano seguinte, receber novamente o Prêmio Especial do Júri em Cannes. Desta vez, por seu documentário Di Cavalcanti, cujas cenas mostram o velório e enterro do pintor. No mesmo ano, morre sua irmã Anecyr. Antes de morrer, em 22 de agosto de 1981 – sua saúde havia sido comprometida por uma infecção pulmonar -, Glauber Rocha ainda rodaria um último filme: A idade da terra.

(© O Povo)


O pajé da tribo

Quando desatava a falar, todos ouviam. era um tagarela, metia-se na vida dos outros. exigia entrega total dos amigos. Esse foi Glauber de Andrade Rocha

A mãe do Pajé é dona Lúcia, 90 anos recém-inteirados – agora, com um marca-passo a acompanhar-lhe as idas e vindas. A irmã do Pajé é Paloma. O sobrinho, João. O amigo do Pajé é Zuenir. A admiradora, Heloísa. E o Pajé é Glauber Rocha. Na “geração tribal” descrita pela professora de Teoria Literária da UFRJ, Heloísa Buarque de Hollanda, o pai do Cinema Novo também ocupava o lugar de guardião, comandante, agitador, técnico. Para dona Lúcia, porém, Glauber foi apenas o menino que preferia os livros ao jogo de bila na rua.

Para o escritor e jornalista Zuenir Ventura, Glauber foi bem mais que isso. “Ele era um instigador. Dos seus amigos, da cultura, do País. Como era muito inquieto, não podia ver ninguém parado. Sobretudo instigava os amigos. Ele tinha a capacidade de se apresentar como exemplo, tinha um grande talento pra dramatização. E tinha gestos e atitudes que chamavam a atenção. Isso no cotidiano. Estou falando do cotidiano.” No cotidiano de dona Lúcia, Glauber foi um menino normal. Apenas gostava muito de ler. “Com nove anos, lia e escrevia muito. A vida de Glauber foi escrever e ler. Ele sempre foi uma pessoa muito consciente do que ele tava fazendo. Foi uma pessoa que lutou muito por essa cultura”.

A matriarca do clã dos Rocha tem lembranças vívidas do filho. Quando fecha os olhos, por exemplo, traz à luz: um dos últimos desejos expressos por Glauber em carta foi o de que o seu trabalho encontrasse guarida sob o mesmo teto. “Ele me escreveu dizendo: ‘Mãe, se um dia eu puder reunir toda a minha obra em um centro cultural...? E a partir daí a gente assumiu o compromisso”, revela dona Lúcia por telefone. De passagem pelo instituto Tempo Glauber, no Rio de Janeiro – lá, o sonho do filho virou realidade -, a mãe de Glauber Rocha tem um segredo. Entre rodopios de parte a parte, ela custa a revelar. Primeiro, diz: gosta de tudo que o filho aprontou. Depois, falando baixinho, o corpo ainda convalescendo da cirurgia, conta: “Meu filme predileto do Glauber é Barravento. Porque ele era ainda um menino. Tinha 18 anos. Mas eu já dava apoio pra ele”.

A rigor, “barravento” é o tempo da mudança, da transformação. Até mesmo da violência. E foi isso que Glauber fez: a seu modo, transformou a família numa embarcação cujo navegar impreciso sempre foi guiado pelos ventos do cinema. Na proa, o louco capitão. João Rocha, sobrinho do cineasta, confirma a tese. O volume de lembranças reais que João tem do tio é inversamente proporcional ao peso que o cineasta tem sobre ele. Inquirido acerca da lembrança mais viva que tem de Glauber, ele responde: “É muito complicado falar de uma pessoa que participou tão pouco da minha vida quando estava vivo e agora, vinte e poucos anos depois de falecido, está cada vez mais íntimo. Como sobrinho, guardo um carinho familiar que é abstrato. Carinho pelas histórias, pelas lembranças que pertencem a outras pessoas, um respeito que vem de um lugar dentro do meu labirinto pessoal de imagens e signos”. Quando entra em cena o Glauber polêmico, agitador, controverso, os pratos da balança não se alteram. “Como artista, como pensador, tenho a missão, junto aos meus primos, de relembrar diariamente suas ideias, seus movimentos e assim, de certa forma, anular a ausência física dele.”

Para Paloma Rocha, filha mais velha de Glauber, a permanência do cineasta num patamar qualquer do inconsciente coletivo deve-se principalmente ao caráter atemporal de seus filmes. “Acho que o Glauber toca em questões universais. A luta de classes, por exemplo. A busca das origens, da liberdade. E por isso os filmes continuam universais. A obra tem uma estrutura bastante simples. Você vai ter o ditador, o herói, a personagem feminina que passa sem dizer nada.” Segundo Paloma, as mulheres de Glauber no cinema eram enigmáticas. Passavam ao longe, rasgando de branco a paisagem. Mas sempre caladas.

Ligada a Glauber Rocha indiretamente, por tabela, já que o cineasta projetava-se sobre toda uma turma de intelectuais e artistas que viviam no Rio de Janeiro dos anos de 1960, Heloísa Buarque de Hollanda tem lembranças difusas do chefe cinemanovista. Ela recorda o mitológico réveillon descrito por Zuenir em 1968 – o ano que não terminou. Nele, Glauber é uma figura franzina, que passa pela festa como uma das personagens femininas de seus filmes. Quando recebe de chofre a mesma pergunta feita a João Rocha (qual a lembrança mais viva que você tem de Glauber?), a pesquisadora não vacila. É 1981, e Glauber está sendo velado. Darcy Ribeiro, outro grande amigo do cineasta, discursa. Suas palavras ganham imediatamente uma dimensão transcendente. Há um desespero solto no ar que, de tão grave, pode ser tocado. É palpável, a falta é sentida a quilômetros dali. “O grande evento envolvendo Glauber foi sua morte. Pela dramaticidade, foi único. Era uma cidade órfã. Era muito comovente. Espiritualmente, todos saímos de lá derrotados. Atrás do caixão passava Deus e o diabo. Era uma coisa que ele poderia ter dirigido.” (Henrique Araújo)

(© O Povo)


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VÍDEO

Deus e o Diabo na Terra do Sol (trailer original) - Glauber Rocha, 1964

 

 

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