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O Estopim de uma Revolução

30/03/2009

 

 

Foto: Caroline Bittencourt

Nação Zumbi no Citybank Hall, em novembro de 2007

José Teles
teles@jc.com.br

Noite do sábado 8 de abril de 1994. Segunda edição do Abril Pro Rock. O produtor Paulo André anuncia a morte de Kurt Cobain, do Nirvana, banda que mudou a face do rock dos anos 90. Na mesma noite, o divulgador da Sony Music, Fernando Wanderley foi ao Circo Maluco Beleza, onde acontecia o festival, com os primeiros CDs e singles do disco Da Lama ao caos, de Chico Science & Nação Zumbi, que detonaria uma revolução cultural no Recife e mudaria a cara do rock brasileiro. O disco havia sido lançando no dia 30 de março, na sede da Sony, no Rio. Para os jornalistas do Sudeste, que participaram da coletiva de lançamento, Chico Science & Nação Zumbi, era um objeto não-indentificado que pousava na MPB e que eles tentavam decodificar. O crítico, da Folha de S. Paulo Luiz Antônio Giron escreveu na matéria intitulada “Chico Science ‘envenena’ o maracatu”: “O estilo da banda remete a dois LPs lançados em 1988 e notáveis pela experimentação: o Ápice, da banda sorocobana Vzyadoq Moe, e Supercarioca, dos cariocas Picassos Falsos...” Não foram exatamente estas bandas as influências de Chico Science, que ia do Velho Faceta a Afrika Bambaataa.

Não se pode culpar os jornalistas, afinal até os próprios integrantes da banda ainda não haviam digerido as novidades. Até poucos meses antes, o disco era um desejo que mantinham, e estar numa grande gravadora, um sonho. O percussionista Canhoto, que saiu do grupo logo depois da primeira turnê internacional, tinha 16 anos na época. Morava na comunidade de Chão de Estrelas, Zona Norte do Recife, e a primeira vez que viajou para o Sudeste foi em outubro de 1993, quando o grupo começaria a gravar Da lama ao caos, no estúdio Nas Nuvens, de Liminha e Gilberto Gil, um dos mais bem equipados do País na época: “O que mais me deixou impressionado foi o corre-corre do Rio. A loucura dos carros na maior velocidade. Eu estava acostumado a andar devagar em Peixinhos, de repente, lá estou ali na cidade imensa. Depois teve o estúdio, os artistas que vinham assistir às gravações. Lembro que Os Paralamas estiveram lá, Lulu Santos”, conta Canhoto. Na sua ingenuidade, ele levou para o estúdio baquetas improvisadas, de pedaços de cabo-de-vassoura: “Minha primeira baqueta de verdade foi Barone, do Paralamas, quem me deu”.

O disco chegou mais depressa do que todos eles esperavam. Até o final de 1993, quase todo mundo que participava do Lamento Negro, cerca de 18 músicos, podia tocar com o Nação Zumbi. Pácua, e Maureliano (depois no Via Sat), Maia, Louro, Santana. “Não tinha membro fixo. Chico dizia traz uns caras que a gente vai tirar um som. Mas era muita gente e definimos que o grupo teria oito integrantes. Jorge du Peixe entrou quando a banda estava assinando com a Sony. Otto, tocava na Mundo Livre e na Nação Zumbi, então Chico convenceu ele a ficar com a Mundo Livre. Assim o grupo ficou definido”, conta Gilmar Bola Oito, o responsável por levar Chico Science, seu colega na Empresa Municipal de Processamento de Dados (Emprel), para conhecer o samba-reggae Lamento Negro, em Peixinhos.

(© JC Online)


Uma trajetória Meteórica

Integrantes e ex-integrantes lembram como se deu de forma incrivelmente rápida - com dinheiro entrando e muitas viagens - o sucesso da banda

José Telesteles@jc.com.br

Quando surgiu a possibilidade de gravar o primeiro disco da Nação Zumbi pela Sony Music, o percussionista Gilmar Bola Oito teve que enfrentar um dilema, para poder seguir com a banda para o Rio: demitir-se do emprego na empresa de processamento de dados da prefeitura. “Chico continuou lá, com licença sem vencimento. Eu tinha entrado pela janela, e não podia fazer isso. Quando contei ao meu pai que ia trabalhar só com música foi um drama. ‘Mas meu filho, como você faz um negócio desses? Deixar um emprego público, seguro?’”, lembra Bola Oito. Ele não imaginava o que o futuro reservava ao seu filho e aos outros mangueboys.

Bola Oito também demorou a assimilar o novo status de contratado de uma multinacional do disco. “A gente ficou hospedado num hotel na avenida Atlântica. Não foi mole. Um cara feito Gira, que morava numa palafita em Peixinhos de repente se viu hospedado num hotel de luxo em Copacabana. Mas para todo mundo, tudo era novidade, inclusive para o (produtor de Da lama ao caos) Liminha. No começo ele não entendeu a banda. Era nova aquela coisa de um grupo sem bateria, sem chimbal, nem prato. Foi dureza para ele. Somente uns 15 dias mais tarde foi que ele começou a entender que era na verdade cinco pessoas que tocavam como se fossem uma bateria”, lembra o percussionista. (Nota: a reportagem tentou entrar em contato com Liminha, inclusive mandando e-mail, como sugeriu a secretaria do seu estúdio, mas não teve retorno).

Chico Science teceu várias críticas à produção de Liminha, por achar que a percussão poderia ter ficado mais forte, com o mesmo impacto que produz ao vivo. Hoje, o guitarrista Lúcio Maia contesta as críticas do amigo.“Acho que a gente foi inconsequente, porque nem nós mesmos entendíamos exatamente o que queria no estúdio. Liminha foi muito importante e hoje tenho outra visão. Antes de Liminha pensamos em convidar Arto Lindsay, mais por causa daquela banda dele, em Nova Iorque, a D.N.A. Mas acho que Arto também não teria entendido o som da banda. E quanto à percussão, a gente usava uns tambores meia-boca, baratos, que não ajudavam”, diz Lúcio Maia, defendendo o trabalho de Liminha. “Tem que ver que a gente era moleque de subúrbio, e com Liminha tivemos o maior aprendizado. Ele foi muito importante, ter trabalhado com ele foi uma maneira de enxergar melhor o processo de gravação. Tanto que no segundo disco, a gente já estava produzindo com ajuda de Bid (que estava começando como produtor)”, continua o guitarrista.

Paulo André Pires, que passou a trabalhar com Chico Science & Nação Zumbi quando o grupo fazia a pre-gravação de Da lama ao caos, já conhecia bem o grupo, que tocou no Abril Pro Rock em 1993. “Eu havia ido falar com um executivo da Sony, tentava conseguir um emprego como divulgador, quando encontrei os caras com o pessoal da gravadora. Naquele tempo eles já estavam meio estranhados com Jujuba, que era o empresário da Nação Zumbi. Houve um estresse entre eles em Salvador. Sei que descolei um show para o grupo em Maria Farinha. Fui pegar o pessoal em Peixinhos, depois em Rio Doce, no trajeto para o Janga, Chico contou que estavam assinando com a Sony e precisando de um produtor. Topei na hora, e me ofereci para trabalhar com eles em tempo integral”.

Paulo André lembra que o som do Chico Science & Nação Zumbi a princípio causava uma certa estranheza: “A turma conhecia a banda pelo que tocava na novela, A praieira, que era uma ciranda, mas parecia ser também uma coisa meio rock, meio axé. Quando ouviam o resto do disco era outra coisa. Mas a banda no palco arrebatava a platéia pela força da música”.

O produtor ressalta que o impacto causado pelo Da lama ao caos foi algo inédito no Brasil:.“Nenhum outro artista brasileiro até então havia conseguido lançar seu disco de estréia no exterior, como aconteceu com Chico Science. Quando a gente esteve em Nova Iorque, para aquele show no Central Park, fizemos outras apresentações, no SOB (Sounds of Brazil), no JVC Jazz Festival e no CBGB. De repente chega David Byrne, com a namorada, de bicicleta, para ver o show. Depois, eu, Gilmar, Chico e Toca tivemos uma reunião com ele e Byrne queria lançar Da lama ao caos pelo selo dele, o Luaka Bop. Seria legal lançar com ele, mas a Sony foi que lançou o disco lá fora, na América do Norte, Japão, Europa”.

Da mesma forma como o disco teve edições em outros países, a banda conseguiu uma meteórica aceitação no circuito internacional. “A primeira turnê durou de julho a agosto, fizemos 31 shows por cinco países, e não tocávamos para brasileiros. Lembro que quando fizemos Montreux, tocamos com The Specials, uma das bandas que influenciaram Chico, e a Ohio Players. Noutro palco estava rolando a noite brasileira, com Timbalada, Gal Costa e acho que João Bosco. Foi aí que aconteceu a invasão da Timbalada. Os caras tinham feito o show deles, e vieram para o da gente, e literalmente, invadiram na marra o palco, sem que a banda quisesse”.

O atual secretário de Cultura da cidade do Recife, Renato L foi um dos arquitetos do manguebeat. Ele não chegou a assistir às sessões de Da lama ao caos, porém conhecia todas as músicas, esteve inclusive presente quando algumas foram compostas: “Chico vivia mostrando o caderno em que ele escrevia as letras. Cantarolava as músicas”. Renato L, o chamado Ministro da Informação do manguebeat, encontrava-se com o grupo quando este se reuniu com o pessoal da Sony. “Eles achavam que por ter tambores, como vinha do Nordeste, então o pessoal fazia axé. Quando começaram a discutir sobre quem seria o produtor eu falei: por mim seria Rick Rubin (da gravadora Def Jam), porque ele dará potência aos tambores. Os meninos queriam Arto Lindsay, mas ninguém foi contra Liminha. Estavam todos animados porque naquela época gravar um disco já era um feito. Inclusive, o nome Da lama ao caos existia antes do disco, foi uma festa que a gente fez. Mas esta coisa dos tambores eu imaginava que daria problemas porque os produtores brasileiros naquele tempo não tinham know-how para gravar som grave. Não sei se era exigência do padrão do que se fazia aqui, mas acho que ficou devendo na potência dos tambores”, comenta Renato, que inaugura no mês que vem, no Pátio de São Pedro, um Memorial Chico Science.

Lúcio Maia recorda que eles ficaram excitados com o estúdio, com os equipamentos. “Chico fixou excitado com as possibilidades, viu que poderia utilizar tudo que imaginou. Da lama ao caos é um álbum muito denso, tem muita informação, estava à frente do seu tempo, tanto que só passou a ser reconhecido de verdade de uns cinco anos para cá. O que acho importante nele, é que a gente não estava só fazendo música, como todas bandas, havia uma idéia por trás do trabalho da gente. Até hoje não consigo fazer uma música ‘arroto’, tenho que sedimentar alguma idéia com ela”, diz Lúcio. O guitarrista reconhece a importância de Da lama ao caos como catalizador de várias mudanças acontecidas na cultura pernambucana nos anos 90: “Mas não nos consideramos líderes. Fomos privilegiados porque gravamos antes. A gente saiu na frente e trouxe todo mundo que já fazia alguma coisa. Então a partir dele o Recife se tornou um núcleo cultural, ou como alguns artistas dizem pra gente, Marisa Monte, Rodrigo Amarante, um universo de informações”.

Quem veio logo depois de Chico Science & Nação Zumbi, com um disco igualmente surpreendente, foi a Mundo Livre S/A com Samba esquema noise, pelo selo Banguela, da Warner Music. Esperava-se que Fred Zeroquatro, inseparável amigo de Science, fizesse uma participação em Da lama ao caos, o que até aconteceu, mas não no estúdio: “Fui a duas sessões, e tive que ir para o Rio a fim de assinar a autorização para Rios pontes e overdrives e Computadores fazem arte. Participei de Da lama ao caos de uma forma curiosa. Lúcio pegou caxumba e me pagaram as passagens para substitui-lo num show que a banda ia fazer no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio, um show com o repertório do Da lama ao caos, que eu conhecia todo. Lembro que pirei, porque os meninos tinham recebido um adiantamento da Sony e Lúcio comprou um Fender Telecaster novinha. Eu nunca tinha antes tocado com um instrumento com uma qualidade daquelas, poderoso. Lembro que tinha um bocado de artistas na platéia, Marcelo D2, Edu K”.

No ano seguinte, Chico Science & Nação Zumbi gravaria Afrocibederlia, oficialmente produzido por Bid, mas que, na realidade, teve produção da própria banda: “Bid era muito inexperiente, nunca havia produzido nenhum disco antes. Ele e a banda fizeram o disco, e acabaram estourando o orçamento. Eu estava no Recife, e Jorge Davison, da Sony, mandou passagens para mim, só para me dar uns esporros, avisou que a banda iria pagar o que foi gasto a mais, por causa da inconsequência do grupo”, lembra Paulo André. Mesmo assim foi tão ou mais elogiado quanto Da lama ao caos. Lúcio Maia tem outra opinião: “Acho que Da lama ao caos é um grande disco, melhor do que o Afrocibederlia, porque Chico, Eu, Jorge, Gilmar, todo mundo, teve o tempo de uma vida inteira para pensar nele”.  

(© JC Online)


Confiança da banda era vista como arrogância

Chico Science & Nação Zumbi tinham uma autoconfiança que para os executivos da gravadora parecia arrogância. Eles se espantaram quando Chico exigiu que a arte da capa fosse feita no Recife. “Nenhum de nós dizia que o manguebeart era um movimento, mas um coletivo, a gente trabalhava em cooperativa. Então a capa teria que ser feita aqui”, diz Helder Aragão que, com Hilton Lacerda, formava a dupla de designers Dolores & Morales. Ele lembra, rindo, da primeira reunião com o pessoal do marketing da Sony: “Eles chegaram na Imago, (agência de fotografia), de Fred Jordão, trazendo umas capas de disco para servir de modelo. Uma delas era do Asa de Águia, uma que tem uma guitarra e uma pomba. Só que os meninos queriam uma coisa meio sombria. Fizemos um caranguejo em tons cinza. Os casas da Sony não gostaram, botei mais uma corzinha. A foto do caranguejo processada por computador. A idéia de usar tecnologia digital era uma forma de estar incluído no que acontecia de moderno no mundo. Não tinha nem como imprimir. Fomos à Ítalo Bianchi onde havia uma impressora que permitia a impressão. No single, a patola do caranguejo levantada, meio fálica, foi idéia de Hilton Lacerda”, recorda Hélder.

O caranguejo que está na capa do disco foi trazido pelo hoje secretário de Cultura Renato L, que comprou uma corda inteira de crustáceos e levou para a Imago. Era Renato também quem atiçava o caranguejo para ele ser fotografado com a patola levantada. Fred Jordão, o autor da foto da capa e do encarte também ri quando lembra da confusão que causaram no pessoal do marketing da Sony. “A referência que eles tinham era de música baiana. Uma das capas que trouxeram era de um disco de Angélica”, diz. Jordão revela que, apesar de toda insistência dos mangueboys em manter o projeto original, no Rio, o marketing da Sony acabou mexendo na arte. “As fotos do encarte, por exemplo, foram distorcidas por computador, a capa tinha menos cores. O que ficou como capa foi um trabalho ruim, acho que foi de sacanagem. Tanto que depois quando fizemos o trabalho da Mundo Livre o pessoal da gravadora não aceitou. Curioso é que a revista da Gol, uns três meses atrás, publicou uma matéria sobre as melhores capas do rock nacional, e Da lama ao caos está na lista”, continua Fred Jordão. Hélder Aragão, ou melhor, DJ Dolores vai ainda mais longe na crítica à gravadora: “Capa do disco foi feita a partir do lay-out que fizemos. Eles não usaram a arte final”.

E a corda de caranguejo trazida por Renato L? “Acabou numa caranguejada, com muita cerveja”, revela Fred Jordão.

(© JC Online)


A PRIMEIRA GERAÇÃO MANGUE

José Teles
teles@jc.com.br

Como o guitarrista Lúcio Maia afirmou na matéria sobre a gravação do disco Da lama ao caos (publicada acima), Chico Science & Nação Zumbi nunca se arvoraram a líder de movimento algum, apenas saiu na frente, gravou primeiro. O trabalho dos mangueboys foi o desenvolvimento de um processo. As ideias de várias pessoas que se conheceram, não raro por acaso, e comungavam da mesma vontade de mudar a face cultural do Recife, em particular, e de Pernambuco em geral.

O sergipano Hélder Aragão, por exemplo, veio para o Recife em 1984, com 18 anos. Não conhecia ninguém na cidade: “Escolhi o Recife porque era a metrópolis da região. Uns dois dias depois que cheguei, ali na Mesbla, que ficava cheio de gente na calçada, cruzei com uma menina bem bonita comprando o disco Combat rock, do Clash. Conversei com ela, que era amiga de Fred e de Renato L, que um dia foi na minha casa. Ao olhar meus discos, viu o primeiro o do Clash. O disco tinha sido dele, tava assinado dentro da capa. Um carioca que ele conhecia, pediu uns discos emprestados e vendeu. Fred já tinha a Mundo Livre, e eu passei a ser meio que o designer da turma. Bolava cartazes, panfletos”.

Helder, ou DJ Dolores, fez parte da inseparável turma que se reunia em apartamentos na rua da Aurora, ou no bar Cantinho das Graças, da qual faziam parte, entre outros, Renato L, H.D. Mabuse, Xico Sá, Fred Zeroquatro, Jorge du Peixe. Para DJ Dolores, o embrião do manguebeat está nos anos 80, quando houve uma leva de DJs fazendo festas na cidade. Muitos futuros mangueboys foram DJs: “Antes destas festas, o que se tinha pra fazer era assistir a filmes de Fassbinder, Visconti...” As festas aconteciam em geral no Bairro do Recife, ainda repleto de cabarés e prostitutas: “O pessoal discotecava bastante no Adílias’place: “A mulher que tomava conta do lugar fazia a gente pagar pelos quartinhos, porque a freguesia das meninas caía”, continua Dolores.

Foi numa destas festas, no Atitude Noturna, que a uma estudante de publicidade chamada Maria Duda aproximou-se de Chico Science: “Era uma casa que funcionava ali perto da Praça Chora Menino. O DJ era um gringo, acho que austríaco. Quem ficava na portaria era um cara totalmente tatuado. Conheci Chico porque a gente tinha uma amiga em comum, Ângela”, conta Duda, que por algum tempo foi chamada de “Musa do manguebeat”. Ela namorou pouco mais de dois anos com Science, mas eram vistos sempre juntos, inclusive nas primeiras turnês da banda: “Eu era a única namorada que viajava com eles, e acho que isto causava um certo incômodo, porque eu dava opiniões. Os caras eram muito inexperientes, eu olhava os contratos e dizia o que achava”, conta Duda, atualmente na curadoria do memorial Chico Science, que deve ser inaugurado em abril, no Pátio de São Pedro, coincidentemente com um dos personagens da história, Renato L, como secretário de Cultura da manguetown, algo que não se sonhava nem nas mais viajadas elucubrações dos mangueboys.

Segundo Jujuba, primeiro empresário do Chico Science & Nação Zumbi, que hoje trabalha em produção de vídeo em Brasília, o afastamento dele do grupo começou com um desentendimento com Chico Science,que teve Duda como pivô: “A banda ia fazer um show em Salvador e só mandaram passagens para o grupo e o empresário. Porém Chico e Duda eram muito apegados, e ele queria que ela fosse com a banda, e eu de ônibus. Discutimos e aí não tive mais clima para continuar trabalhando com a banda”. Duda diz que ouviu falar do caso: “Mas se aconteceu mesmo, nunca chegou a mim. Não sei se procede”.

Durante a gravação de Da lama ao caos, ela esteve algumas vezes no Nas Nuvens: “Mas não acompanhei a gravação inteira. Naquele tempo eu ainda estudava na UFPE e não podia ficar muito tempo viajando”. De Chico Science, Duda tem mais do que recordações. Ele escreveu muito para ela, poemas, em sua maioria: “Estão numa caixinha, São coisas muito pessoais, acho que nunca vou querer publicar”, diz Duda.

Para a maioria dos que participaram da movimentação da época, o manguebeat foi, parafraseando o samba de Paulinho da Viola, um rio que passou em suas vidas, e eles se deixaram levar. Roger de Renor havia aberto a Soparia, no Polo Pina, quando o manguebeat estava sendo arquitetado por Fred, Science & cia. A música da Soparia a princípio eram chorinhos, tocados pelo grupo de Walmir Chagas, mas logo seria o ponto de encontro de toda uma geração. Foi na Soparia onde Roger conheceu Chico Science: “Paulo André fez lá na Sopa a primeira reunião do Abril Pro Rock e Chico veio com Farfan. Fiz logo depois do Abril um show com eles, o Som do Mangue no Pina, com Mundo Livre S/A e Chico Science & Nação Zumbi. E aí ficamos amigos. Mas sempre digo que era uma amizade mais ligada por laços estéticos, porque a gente se via mais nos bares. Chico gostava, por exemplo, das minhas fantasias de Carnaval. Foi no Carnaval, numa Soparia que armei em Olinda, que ele chegou e contou que estava fazendo uma música com meu nome. Disse que achei arretado, porque assim ia pegar todas as mulheres, devia até pagar royalties a ele. Pelo contrário, a música tocou muito, e até hoje neguinho me para na rua, mala quer conversar comigo, e mulher que é bom, nada. Ele é quem devia ter me pago”, brinca. A música em questão é Macô, gravada em dueto com Gilberto Gil, no Afrocibederlia, e cantada no Abril Pro Rock de 1996. O rosto de Roger fantasiado de flor está estampado no encarte.

“Chico para mim é uma lembrança forte. Eu ligo, por exemplo, o último show dele no Recife, no Clube Português, com o nascimento do meu filho que aconteceu na mesma ocasião”, diz Roger, lembrando que quando Chico e a banda voltaram da primeira viagem ao exterior, aos Estados Unidos, ele havia comprado um Landau: “Chico pirou com o carro e comprou um igual. O meu era mais conservado. Em compensação, o dele tinha acessórios, som, luzes, que valiam mais do que o carro. Ele gostava do Landau porque lhe lembrava os carrões daqueles negões americanos do Brooklyn”.

Discreto, calado, mas maquinando ideias o tempo inteiro. Este é o rápido perfil de H.D Mabuse. O cérebro eletrônico do manguebeat. A antena podia estar enterrada na lama, mas os bits e chips eram fornecidos por ele. Mabuse morou com Chico Science e Fred Zeroquatro no Edifício Capibaribe na rua da Aurora. Quando os mangueboys diziam que tinham interesse por, entre outros, teoria do caos, esta era uma influência direta de Mabuse: “Naquele tempo eu vivia lendo sobre a teoria do caos, o título do Da lama ao caos deve ter vindo destas leituras minhas, que compartilhava com o pessoal”, diz Mabuse. Quando ele conheceu Chico Science na rádio universitária, onde Renato L e Zeroquatro apresentavam o programa Décadas, descobriu que ambos moravam em Olinda: “Ele em Rio Doce, eu em casa Caiada. Começamos a nos visitar, trocar ideias e surgiu o Bom Tom Rádio, um grupo experimental formado por mim no baixo, Jorge du Peixe na bateria eletrônica e Chico nos vocais. Outros caras tocaram com a gente, Fabinho da Eddie, Spider. Fizemos shows, mas não gravamos disco. Tem alguma coisa por aí feita em cassete. A cidade, por exemplo, era do repertório do Bom Tom Rádio. Nele, usei pela primeira um computador, mas muito primitivo, anterior ao 286, nem tinha HD. Mas trouxe para gente esta ideia de que computador é apenas uma caixa, quem manipula ele é que faz as coisas acontecerem”, diz Mabuse.

(© JC Online)


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