Noite do
sábado 8 de abril de 1994. Segunda edição do Abril Pro Rock. O produtor
Paulo André anuncia a morte de Kurt Cobain, do Nirvana, banda que mudou a
face do rock dos anos 90. Na mesma noite, o divulgador da Sony Music,
Fernando Wanderley foi ao Circo Maluco Beleza, onde acontecia o festival,
com os primeiros CDs e singles do disco Da Lama ao caos, de Chico Science &
Nação Zumbi, que detonaria uma revolução cultural no Recife e mudaria a cara
do rock brasileiro. O disco havia sido lançando no dia 30 de março, na sede
da Sony, no Rio. Para os jornalistas do Sudeste, que participaram da
coletiva de lançamento, Chico Science & Nação Zumbi, era um objeto
não-indentificado que pousava na MPB e que eles tentavam decodificar. O
crítico, da Folha de S. Paulo Luiz Antônio Giron escreveu na matéria
intitulada “Chico Science ‘envenena’ o maracatu”: “O estilo da banda remete
a dois LPs lançados em 1988 e notáveis pela experimentação: o Ápice, da
banda sorocobana Vzyadoq Moe, e Supercarioca, dos cariocas Picassos
Falsos...” Não foram exatamente estas bandas as influências de Chico
Science, que ia do Velho Faceta a Afrika Bambaataa.
Não se pode
culpar os jornalistas, afinal até os próprios integrantes da banda ainda não
haviam digerido as novidades. Até poucos meses antes, o disco era um desejo
que mantinham, e estar numa grande gravadora, um sonho. O percussionista
Canhoto, que saiu do grupo logo depois da primeira turnê internacional,
tinha 16 anos na época. Morava na comunidade de Chão de Estrelas, Zona Norte
do Recife, e a primeira vez que viajou para o Sudeste foi em outubro de
1993, quando o grupo começaria a gravar Da lama ao caos, no estúdio Nas
Nuvens, de Liminha e Gilberto Gil, um dos mais bem equipados do País na
época: “O que mais me deixou impressionado foi o corre-corre do Rio. A
loucura dos carros na maior velocidade. Eu estava acostumado a andar devagar
em Peixinhos, de repente, lá estou ali na cidade imensa. Depois teve o
estúdio, os artistas que vinham assistir às gravações. Lembro que Os
Paralamas estiveram lá, Lulu Santos”, conta Canhoto. Na sua ingenuidade, ele
levou para o estúdio baquetas improvisadas, de pedaços de cabo-de-vassoura:
“Minha primeira baqueta de verdade foi Barone, do Paralamas, quem me deu”.
O disco
chegou mais depressa do que todos eles esperavam. Até o final de 1993, quase
todo mundo que participava do Lamento Negro, cerca de 18 músicos, podia
tocar com o Nação Zumbi. Pácua, e Maureliano (depois no Via Sat), Maia,
Louro, Santana. “Não tinha membro fixo. Chico dizia traz uns caras que a
gente vai tirar um som. Mas era muita gente e definimos que o grupo teria
oito integrantes. Jorge du Peixe entrou quando a banda estava assinando com
a Sony. Otto, tocava na Mundo Livre e na Nação Zumbi, então Chico convenceu
ele a ficar com a Mundo Livre. Assim o grupo ficou definido”, conta Gilmar
Bola Oito, o responsável por levar Chico Science, seu colega na Empresa
Municipal de Processamento de Dados (Emprel), para conhecer o samba-reggae
Lamento Negro, em Peixinhos.
Integrantes e ex-integrantes lembram como se deu de forma incrivelmente
rápida - com dinheiro entrando e muitas viagens - o sucesso da banda
José Telesteles@jc.com.br
Quando surgiu a possibilidade de gravar o primeiro disco da Nação Zumbi
pela Sony Music, o percussionista Gilmar Bola Oito teve que enfrentar um
dilema, para poder seguir com a banda para o Rio: demitir-se do emprego na
empresa de processamento de dados da prefeitura. “Chico continuou lá, com
licença sem vencimento. Eu tinha entrado pela janela, e não podia fazer
isso. Quando contei ao meu pai que ia trabalhar só com música foi um drama.
‘Mas meu filho, como você faz um negócio desses? Deixar um emprego público,
seguro?’”, lembra Bola Oito. Ele não imaginava o que o futuro reservava ao
seu filho e aos outros mangueboys.
Bola Oito também demorou a assimilar o novo status de contratado de uma
multinacional do disco. “A gente ficou hospedado num hotel na avenida
Atlântica. Não foi mole. Um cara feito Gira, que morava numa palafita em
Peixinhos de repente se viu hospedado num hotel de luxo em Copacabana. Mas
para todo mundo, tudo era novidade, inclusive para o (produtor de Da lama ao
caos) Liminha. No começo ele não entendeu a banda. Era nova aquela coisa de
um grupo sem bateria, sem chimbal, nem prato. Foi dureza para ele. Somente
uns 15 dias mais tarde foi que ele começou a entender que era na verdade
cinco pessoas que tocavam como se fossem uma bateria”, lembra o
percussionista. (Nota: a reportagem tentou entrar em contato com Liminha,
inclusive mandando e-mail, como sugeriu a secretaria do seu estúdio, mas não
teve retorno).
Chico Science teceu várias críticas à produção de Liminha, por achar que
a percussão poderia ter ficado mais forte, com o mesmo impacto que produz ao
vivo. Hoje, o guitarrista Lúcio Maia contesta as críticas do amigo.“Acho que
a gente foi inconsequente, porque nem nós mesmos entendíamos exatamente o
que queria no estúdio. Liminha foi muito importante e hoje tenho outra
visão. Antes de Liminha pensamos em convidar Arto Lindsay, mais por causa
daquela banda dele, em Nova Iorque, a D.N.A. Mas acho que Arto também não
teria entendido o som da banda. E quanto à percussão, a gente usava uns
tambores meia-boca, baratos, que não ajudavam”, diz Lúcio Maia, defendendo o
trabalho de Liminha. “Tem que ver que a gente era moleque de subúrbio, e com
Liminha tivemos o maior aprendizado. Ele foi muito importante, ter
trabalhado com ele foi uma maneira de enxergar melhor o processo de
gravação. Tanto que no segundo disco, a gente já estava produzindo com ajuda
de Bid (que estava começando como produtor)”, continua o guitarrista.
Paulo André Pires, que passou a trabalhar com Chico Science & Nação Zumbi
quando o grupo fazia a pre-gravação de Da lama ao caos, já conhecia bem o
grupo, que tocou no Abril Pro Rock em 1993. “Eu havia ido falar com um
executivo da Sony, tentava conseguir um emprego como divulgador, quando
encontrei os caras com o pessoal da gravadora. Naquele tempo eles já estavam
meio estranhados com Jujuba, que era o empresário da Nação Zumbi. Houve um
estresse entre eles em Salvador. Sei que descolei um show para o grupo em
Maria Farinha. Fui pegar o pessoal em Peixinhos, depois em Rio Doce, no
trajeto para o Janga, Chico contou que estavam assinando com a Sony e
precisando de um produtor. Topei na hora, e me ofereci para trabalhar com
eles em tempo integral”.
Paulo André lembra que o som do Chico Science & Nação Zumbi a princípio
causava uma certa estranheza: “A turma conhecia a banda pelo que tocava na
novela, A praieira, que era uma ciranda, mas parecia ser também uma coisa
meio rock, meio axé. Quando ouviam o resto do disco era outra coisa. Mas a
banda no palco arrebatava a platéia pela força da música”.
O produtor ressalta que o impacto causado pelo Da lama ao caos foi algo
inédito no Brasil:.“Nenhum outro artista brasileiro até então havia
conseguido lançar seu disco de estréia no exterior, como aconteceu com Chico
Science. Quando a gente esteve em Nova Iorque, para aquele show no Central
Park, fizemos outras apresentações, no SOB (Sounds of Brazil), no JVC Jazz
Festival e no CBGB. De repente chega David Byrne, com a namorada, de
bicicleta, para ver o show. Depois, eu, Gilmar, Chico e Toca tivemos uma
reunião com ele e Byrne queria lançar Da lama ao caos pelo selo dele, o
Luaka Bop. Seria legal lançar com ele, mas a Sony foi que lançou o disco lá
fora, na América do Norte, Japão, Europa”.
Da mesma forma como o disco teve edições em outros países, a banda
conseguiu uma meteórica aceitação no circuito internacional. “A primeira
turnê durou de julho a agosto, fizemos 31 shows por cinco países, e não
tocávamos para brasileiros. Lembro que quando fizemos Montreux, tocamos com
The Specials, uma das bandas que influenciaram Chico, e a Ohio Players.
Noutro palco estava rolando a noite brasileira, com Timbalada, Gal Costa e
acho que João Bosco. Foi aí que aconteceu a invasão da Timbalada. Os caras
tinham feito o show deles, e vieram para o da gente, e literalmente,
invadiram na marra o palco, sem que a banda quisesse”.
O atual secretário de Cultura da cidade do Recife, Renato L foi um dos
arquitetos do manguebeat. Ele não chegou a assistir às sessões de Da lama ao
caos, porém conhecia todas as músicas, esteve inclusive presente quando
algumas foram compostas: “Chico vivia mostrando o caderno em que ele
escrevia as letras. Cantarolava as músicas”. Renato L, o chamado Ministro da
Informação do manguebeat, encontrava-se com o grupo quando este se reuniu
com o pessoal da Sony. “Eles achavam que por ter tambores, como vinha do
Nordeste, então o pessoal fazia axé. Quando começaram a discutir sobre quem
seria o produtor eu falei: por mim seria Rick Rubin (da gravadora Def Jam),
porque ele dará potência aos tambores. Os meninos queriam Arto Lindsay, mas
ninguém foi contra Liminha. Estavam todos animados porque naquela época
gravar um disco já era um feito. Inclusive, o nome Da lama ao caos existia
antes do disco, foi uma festa que a gente fez. Mas esta coisa dos tambores
eu imaginava que daria problemas porque os produtores brasileiros naquele
tempo não tinham know-how para gravar som grave. Não sei se era exigência do
padrão do que se fazia aqui, mas acho que ficou devendo na potência dos
tambores”, comenta Renato, que inaugura no mês que vem, no Pátio de São
Pedro, um Memorial Chico Science.
Lúcio Maia recorda que eles ficaram excitados com o estúdio, com os
equipamentos. “Chico fixou excitado com as possibilidades, viu que poderia
utilizar tudo que imaginou. Da lama ao caos é um álbum muito denso, tem
muita informação, estava à frente do seu tempo, tanto que só passou a ser
reconhecido de verdade de uns cinco anos para cá. O que acho importante
nele, é que a gente não estava só fazendo música, como todas bandas, havia
uma idéia por trás do trabalho da gente. Até hoje não consigo fazer uma
música ‘arroto’, tenho que sedimentar alguma idéia com ela”, diz Lúcio. O
guitarrista reconhece a importância de Da lama ao caos como catalizador de
várias mudanças acontecidas na cultura pernambucana nos anos 90: “Mas não
nos consideramos líderes. Fomos privilegiados porque gravamos antes. A gente
saiu na frente e trouxe todo mundo que já fazia alguma coisa. Então a partir
dele o Recife se tornou um núcleo cultural, ou como alguns artistas dizem
pra gente, Marisa Monte, Rodrigo Amarante, um universo de informações”.
Quem veio logo depois de Chico Science & Nação Zumbi, com um disco
igualmente surpreendente, foi a Mundo Livre S/A com Samba esquema noise,
pelo selo Banguela, da Warner Music. Esperava-se que Fred Zeroquatro,
inseparável amigo de Science, fizesse uma participação em Da lama ao caos, o
que até aconteceu, mas não no estúdio: “Fui a duas sessões, e tive que ir
para o Rio a fim de assinar a autorização para Rios pontes e overdrives e
Computadores fazem arte. Participei de Da lama ao caos de uma forma curiosa.
Lúcio pegou caxumba e me pagaram as passagens para substitui-lo num show que
a banda ia fazer no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio, um show com o
repertório do Da lama ao caos, que eu conhecia todo. Lembro que pirei,
porque os meninos tinham recebido um adiantamento da Sony e Lúcio comprou um
Fender Telecaster novinha. Eu nunca tinha antes tocado com um instrumento
com uma qualidade daquelas, poderoso. Lembro que tinha um bocado de artistas
na platéia, Marcelo D2, Edu K”.
No ano seguinte, Chico Science & Nação Zumbi gravaria Afrocibederlia,
oficialmente produzido por Bid, mas que, na realidade, teve produção da
própria banda: “Bid era muito inexperiente, nunca havia produzido nenhum
disco antes. Ele e a banda fizeram o disco, e acabaram estourando o
orçamento. Eu estava no Recife, e Jorge Davison, da Sony, mandou passagens
para mim, só para me dar uns esporros, avisou que a banda iria pagar o que
foi gasto a mais, por causa da inconsequência do grupo”, lembra Paulo André.
Mesmo assim foi tão ou mais elogiado quanto Da lama ao caos. Lúcio Maia tem
outra opinião: “Acho que Da lama ao caos é um grande disco, melhor do que o
Afrocibederlia, porque Chico, Eu, Jorge, Gilmar, todo mundo, teve o tempo de
uma vida inteira para pensar nele”.
Chico Science &
Nação Zumbi tinham uma autoconfiança que para os executivos da gravadora
parecia arrogância. Eles se espantaram quando Chico exigiu que a arte da
capa fosse feita no Recife. “Nenhum de nós dizia que o manguebeart era um
movimento, mas um coletivo, a gente trabalhava em cooperativa. Então a capa
teria que ser feita aqui”, diz Helder Aragão que, com Hilton Lacerda,
formava a dupla de designers Dolores & Morales. Ele lembra, rindo, da
primeira reunião com o pessoal do marketing da Sony: “Eles chegaram na
Imago, (agência de fotografia), de Fred Jordão, trazendo umas capas de disco
para servir de modelo. Uma delas era do Asa de Águia, uma que tem uma
guitarra e uma pomba. Só que os meninos queriam uma coisa meio sombria.
Fizemos um caranguejo em tons cinza. Os casas da Sony não gostaram, botei
mais uma corzinha. A foto do caranguejo processada por computador. A idéia
de usar tecnologia digital era uma forma de estar incluído no que acontecia
de moderno no mundo. Não tinha nem como imprimir. Fomos à Ítalo Bianchi onde
havia uma impressora que permitia a impressão. No single, a patola do
caranguejo levantada, meio fálica, foi idéia de Hilton Lacerda”, recorda
Hélder.
O caranguejo que
está na capa do disco foi trazido pelo hoje secretário de Cultura Renato L,
que comprou uma corda inteira de crustáceos e levou para a Imago. Era Renato
também quem atiçava o caranguejo para ele ser fotografado com a patola
levantada. Fred Jordão, o autor da foto da capa e do encarte também ri
quando lembra da confusão que causaram no pessoal do marketing da Sony. “A
referência que eles tinham era de música baiana. Uma das capas que trouxeram
era de um disco de Angélica”, diz. Jordão revela que, apesar de toda
insistência dos mangueboys em manter o projeto original, no Rio, o marketing
da Sony acabou mexendo na arte. “As fotos do encarte, por exemplo, foram
distorcidas por computador, a capa tinha menos cores. O que ficou como capa
foi um trabalho ruim, acho que foi de sacanagem. Tanto que depois quando
fizemos o trabalho da Mundo Livre o pessoal da gravadora não aceitou.
Curioso é que a revista da Gol, uns três meses atrás, publicou uma matéria
sobre as melhores capas do rock nacional, e Da lama ao caos está na lista”,
continua Fred Jordão. Hélder Aragão, ou melhor, DJ Dolores vai ainda mais
longe na crítica à gravadora: “Capa do disco foi feita a partir do lay-out
que fizemos. Eles não usaram a arte final”.
Como o
guitarrista Lúcio Maia afirmou na matéria sobre a gravação do disco Da lama
ao caos (publicada acima), Chico Science & Nação
Zumbi nunca se arvoraram a líder de movimento algum, apenas saiu na frente,
gravou primeiro. O trabalho dos mangueboys foi o desenvolvimento de um
processo. As ideias de várias pessoas que se conheceram, não raro por acaso,
e comungavam da mesma vontade de mudar a face cultural do Recife, em
particular, e de Pernambuco em geral.
O sergipano
Hélder Aragão, por exemplo, veio para o Recife em 1984, com 18 anos. Não
conhecia ninguém na cidade: “Escolhi o Recife porque era a metrópolis da
região. Uns dois dias depois que cheguei, ali na Mesbla, que ficava cheio de
gente na calçada, cruzei com uma menina bem bonita comprando o disco Combat
rock, do Clash. Conversei com ela, que era amiga de Fred e de Renato L, que
um dia foi na minha casa. Ao olhar meus discos, viu o primeiro o do Clash. O
disco tinha sido dele, tava assinado dentro da capa. Um carioca que ele
conhecia, pediu uns discos emprestados e vendeu. Fred já tinha a Mundo
Livre, e eu passei a ser meio que o designer da turma. Bolava cartazes,
panfletos”.
Helder, ou DJ
Dolores, fez parte da inseparável turma que se reunia em apartamentos na rua
da Aurora, ou no bar Cantinho das Graças, da qual faziam parte, entre
outros, Renato L, H.D. Mabuse, Xico Sá, Fred Zeroquatro, Jorge du Peixe.
Para DJ Dolores, o embrião do manguebeat está nos anos 80, quando houve uma
leva de DJs fazendo festas na cidade. Muitos futuros mangueboys foram DJs:
“Antes destas festas, o que se tinha pra fazer era assistir a filmes de
Fassbinder, Visconti...” As festas aconteciam em geral no Bairro do Recife,
ainda repleto de cabarés e prostitutas: “O pessoal discotecava bastante no
Adílias’place: “A mulher que tomava conta do lugar fazia a gente pagar pelos
quartinhos, porque a freguesia das meninas caía”, continua Dolores.
Foi numa
destas festas, no Atitude Noturna, que a uma estudante de publicidade
chamada Maria Duda aproximou-se de Chico Science: “Era uma casa que
funcionava ali perto da Praça Chora Menino. O DJ era um gringo, acho que
austríaco. Quem ficava na portaria era um cara totalmente tatuado. Conheci
Chico porque a gente tinha uma amiga em comum, Ângela”, conta Duda, que por
algum tempo foi chamada de “Musa do manguebeat”. Ela namorou pouco mais de
dois anos com Science, mas eram vistos sempre juntos, inclusive nas
primeiras turnês da banda: “Eu era a única namorada que viajava com eles, e
acho que isto causava um certo incômodo, porque eu dava opiniões. Os caras
eram muito inexperientes, eu olhava os contratos e dizia o que achava”,
conta Duda, atualmente na curadoria do memorial Chico Science, que deve ser
inaugurado em abril, no Pátio de São Pedro, coincidentemente com um dos
personagens da história, Renato L, como secretário de Cultura da manguetown,
algo que não se sonhava nem nas mais viajadas elucubrações dos mangueboys.
Segundo
Jujuba, primeiro empresário do Chico Science & Nação Zumbi, que hoje
trabalha em produção de vídeo em Brasília, o afastamento dele do grupo
começou com um desentendimento com Chico Science,que teve Duda como pivô: “A
banda ia fazer um show em Salvador e só mandaram passagens para o grupo e o
empresário. Porém Chico e Duda eram muito apegados, e ele queria que ela
fosse com a banda, e eu de ônibus. Discutimos e aí não tive mais clima para
continuar trabalhando com a banda”. Duda diz que ouviu falar do caso: “Mas
se aconteceu mesmo, nunca chegou a mim. Não sei se procede”.
Durante a
gravação de Da lama ao caos, ela esteve algumas vezes no Nas Nuvens: “Mas
não acompanhei a gravação inteira. Naquele tempo eu ainda estudava na UFPE e
não podia ficar muito tempo viajando”. De Chico Science, Duda tem mais do
que recordações. Ele escreveu muito para ela, poemas, em sua maioria: “Estão
numa caixinha, São coisas muito pessoais, acho que nunca vou querer
publicar”, diz Duda.
Para a
maioria dos que participaram da movimentação da época, o manguebeat foi,
parafraseando o samba de Paulinho da Viola, um rio que passou em suas vidas,
e eles se deixaram levar. Roger de Renor havia aberto a Soparia, no Polo
Pina, quando o manguebeat estava sendo arquitetado por Fred, Science & cia.
A música da Soparia a princípio eram chorinhos, tocados pelo grupo de Walmir
Chagas, mas logo seria o ponto de encontro de toda uma geração. Foi na
Soparia onde Roger conheceu Chico Science: “Paulo André fez lá na Sopa a
primeira reunião do Abril Pro Rock e Chico veio com Farfan. Fiz logo depois
do Abril um show com eles, o Som do Mangue no Pina, com Mundo Livre S/A e
Chico Science & Nação Zumbi. E aí ficamos amigos. Mas sempre digo que era
uma amizade mais ligada por laços estéticos, porque a gente se via mais nos
bares. Chico gostava, por exemplo, das minhas fantasias de Carnaval. Foi no
Carnaval, numa Soparia que armei em Olinda, que ele chegou e contou que
estava fazendo uma música com meu nome. Disse que achei arretado, porque
assim ia pegar todas as mulheres, devia até pagar royalties a ele. Pelo
contrário, a música tocou muito, e até hoje neguinho me para na rua, mala
quer conversar comigo, e mulher que é bom, nada. Ele é quem devia ter me
pago”, brinca. A música em questão é Macô, gravada em dueto com Gilberto
Gil, no Afrocibederlia, e cantada no Abril Pro Rock de 1996. O rosto de
Roger fantasiado de flor está estampado no encarte.
“Chico para
mim é uma lembrança forte. Eu ligo, por exemplo, o último show dele no
Recife, no Clube Português, com o nascimento do meu filho que aconteceu na
mesma ocasião”, diz Roger, lembrando que quando Chico e a banda voltaram da
primeira viagem ao exterior, aos Estados Unidos, ele havia comprado um
Landau: “Chico pirou com o carro e comprou um igual. O meu era mais
conservado. Em compensação, o dele tinha acessórios, som, luzes, que valiam
mais do que o carro. Ele gostava do Landau porque lhe lembrava os carrões
daqueles negões americanos do Brooklyn”.
Discreto,
calado, mas maquinando ideias o tempo inteiro. Este é o rápido perfil de H.D
Mabuse. O cérebro eletrônico do manguebeat. A antena podia estar enterrada
na lama, mas os bits e chips eram fornecidos por ele. Mabuse morou com Chico
Science e Fred Zeroquatro no Edifício Capibaribe na rua da Aurora. Quando os
mangueboys diziam que tinham interesse por, entre outros, teoria do caos,
esta era uma influência direta de Mabuse: “Naquele tempo eu vivia lendo
sobre a teoria do caos, o título do Da lama ao caos deve ter vindo destas
leituras minhas, que compartilhava com o pessoal”, diz Mabuse. Quando ele
conheceu Chico Science na rádio universitária, onde Renato L e Zeroquatro
apresentavam o programa Décadas, descobriu que ambos moravam em Olinda: “Ele
em Rio Doce, eu em casa Caiada. Começamos a nos visitar, trocar ideias e
surgiu o Bom Tom Rádio, um grupo experimental formado por mim no baixo,
Jorge du Peixe na bateria eletrônica e Chico nos vocais. Outros caras
tocaram com a gente, Fabinho da Eddie, Spider. Fizemos shows, mas não
gravamos disco. Tem alguma coisa por aí feita em cassete. A cidade, por
exemplo, era do repertório do Bom Tom Rádio. Nele, usei pela primeira um
computador, mas muito primitivo, anterior ao 286, nem tinha HD. Mas trouxe
para gente esta ideia de que computador é apenas uma caixa, quem manipula
ele é que faz as coisas acontecerem”, diz Mabuse.