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Tentativa de diálogo crítico com a obra de Glauber

30/03/2009

 

 

Foto: Ronaldo Theobald

Glauber Rocha
 

Anabasys refere-se ao último filme do cineasta, A Idade da Terra, e é codirigido por sua filha, Paloma

Luiz Carlos Merten

Ao fazer um documentário sobre A Idade da Terra (1980), último filme de Glauber Rocha, sua filha, Paloma, e o cineasta Joel Pizzini não hesitaram em chamá-lo de Anabasys. Por pelo menos dois motivos. Anabasys era o título pretendido por Glauber para essa que acabou sendo a sua obra-testamento, e que provocou escândalo no Festival de Veneza daquele ano. Acabou preferindo, com vantagens, chamá-lo A Idade da Terra. Assim, o documentário presta uma homenagem póstuma ao título preterido. Mas há outro motivo: Anabasys é o título da obra de Xenofonte (427-355 a. C.) e se refere à batalha de 10 mil mercenários de Ciro contra seu irmão Artaxerxes.

A palavra grega quer dizer "ascensão". Tem muito a ver com a complexa última obra de Glauber Rocha, essa alegoria final de um Brasil dilacerado, com seus "Cristos" à deriva em uma Brasília alucinada. Glauber tinha a pretensão de entender o Brasil profundo, em seus alicerces inconscientes, e isso o levou a uma estética do sonho, com esse filme de estrutura complexa e fragmentária. Compreender para redimir.

Anabasys é mais do que um documentário sobre esse filme - é tentativa de diálogo com ele. Recorre a entrevistas com personagens, mas entra também em contato com os próprios materiais desse e de outros trabalhos de Glauber. Põe em evidência, e em questão, a obra do cineasta baiano em seu conjunto.

E, ao dialogar com o trabalho de Glauber, Anabasys opta por uma linguagem que é a do próprio cineasta. Quer dizer, recusa a função didática que seria "explicar" uma obra complexa traduzindo-a para uma linguagem simples. E que, no limite, a trairia. Ao contrário, faz um comentário que tende a se agregar à leitura do próprio filme de Glauber Rocha. Passa a ser um capítulo, ou um apêndice, de A Idade da Terra. Pode ser visto de forma autônoma, embora o lógico fosse assistir aos dois filmes em conjunto, quando um pudesse remeter ao outro, e enriquecê-lo.
 

(© Estadão)


Anabazys e o resgate de um Glauber (des)conhecido

Por Ana Martinelli

A cinematografia de um país se constrói por muitos caminhos: a descoberta de novos talentos, incentivos à produção, distribuição no circuito comercial e nos festivais, mas também se faz pela constante revisão, resgate e em fazer acessível os filmes ao público, sejam eles feitos ontem ou há décadas.

Parece bastante lógico o raciocínio, mas a consciência da necessidade de restaurar e resgatar filmes e obras de cineastas ainda é uma discussão recente no país. O restauro da obra fílmica de Glauber Rocha é um dos projetos que retoma a importância desta questão.

Concebido como extra para o DVD duplo de A Idade da Terra, o documentário Anabazys não tinha a pretensão de virar uma obra independente com Glauber Rocha sobre seu próprio cinema e trajetória, conta ao Cineclick Joel Pizzini, co-diretor do filme com Paloma Rocha e curador do projeto de restauro.

"Fomos levados a fazer o filme e chegou um momento em que o documentário para o DVD transbordou a própria mídia. O material chegou ao Marco Müller, diretor do Festival de Veneza, encantado com o que viu, convidou o filme para a mostra Horizontes no 64º Festival de Veneza,em 2007." Pizzini disse ainda que a partir daí a montagem foi revista amplificando sua abordagem.

Para quem acompanhou de perto ou conhece mais profundamente a trajetória de Glauber Rocha, o convite pode parecer uma contradição, considerando a participação polêmica que A Idade da Terra e seu autor tiveram no mesmo festival 27 anos antes, um dos temas que Anabazys contempla.

O assunto é tratado com bastante naturalidade por Paloma Rocha e Pizzini: "O que aconteceu foi um ataque às posições políticas do autor, houve um pré-conceito violento, pouco se falou sobre o filme, efetivamente na época ele não foi entendido". Mas o próprio Pizzini comenta certa mea culpa do festival que programou A Idade da Terra, a cópia restaurada, para ser o filme de encerramento.

O cinema de autor e a "terrível" década de 80

A década de 80 foi um período bastante complicado para o cinema, especialmente o experimental. Depois dos efervescentes movimentos de contracultura, nas décadas de 60 e 70, como a Nouvelle Vague, na França, o Novo Cinema Alemão, o Underground, nos Estados Unidos e, no Brasil, o Cinema Novo e o Marginal, a produção experimental perdeu espaço e os autores começam a ser cooptados pelos grandes estúdios.

O estopim para o protesto que teve até passeata ao Palácio dos Festivais, em Veneza, foi justamente a escolha dos ganhadores. Naquele ano, foram premiados dois filme de autores consagrados, Atlantic City, de Louis Malle, e Glória, de John Cassavetes, com filmes encabeçados por grandes estúdios e cuja linguagem estava, segundo Rocha, aquém de seus autores, considerando-os filmes menores e acusando o festival de ‘ter se vendido aos americanos’, Glauber Rocha saiu abalado e morreu menos de um ano depois, em 1981.

"Foi uma época terrível para a autoria, um retrocesso, um tipo de cinema estava morrendo. E foi neste cenário que Glauber apresentou um filme de ruptura total: questionando o que é o cinema, o que é o espetáculo, qual o sentido das coisas, para que fazer um filme correto, alinhado com a lógica do espetáculo e da catarse", analisa Pizzini. "Esse cinema mais artístico sobrevive até hoje, mas está restrito a pequenos circuitos de arte".

Esse é um dos motivos alegados pelo qual Pizzini e Paloma foram levados a fazer Anabazys, a necessidade de contextualizar a época e as condições nas quais o filme foi produzido e a recepção de público e crítica.

Ruptura Total

"Sou um artista coletivista que está aberto; um anti-artista. Sou uma pessoa do povo. Sou um camponês de Vitória da Conquista. A Idade da Terra seguirá o mesmo itinerário de outros filmes, criará polêmica, será odiado, será amado."
Glauber Rocha

Em Anabazys, Carlos Caetano, assistente de direção de A Idade da Terra, declara que Rocha confidenciou-o que tinha consciência de que o filme só seria entendido "daqui a 25 anos". Talvez essa consciência, aliada à de que morreria cedo, segundo Pizzini, tenha colaborado para que filme recebesse o título de filme-testamento.

Nesse sentido, há vários fatores que podem levar a este entendimento: a ruptura com o Cinema Novo, depois que o mesmo foi institucionalizado, e com a Embrafilme, da qual foi um dos fundadores; o exílio; o manifesto da Eztétyca do Sonho; o próprio processo de produção feito com muita liberdade, incorporando não-atores e amigos.

"É um filme feito como se fosse o primeiro, com uma proposta de ruptura permanente. Nele, Glauber ‘se lixou’ para essa coisa de fazer um filme bem acabado, rigoroso, com o timing, dentro da lógica de que o filme tem que ter uma curva dramática, catarse" , diz Pizzini. Abordando estes aspectos, Anabazys resgata uma parte da história de Glauber Rocha menos conhecida e estudada, esta segunda fase de seu cinema, pós-Cinema Novo, pouco ou sequer vista pelo público.

Anabazys estreiou na sexta-feria (27/3) em São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia.

(© CineClick)


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Paloma Rocha apresenta o filme Anabazys

 

 

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