Foto:
Ronaldo Theobald
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Glauber Rocha
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Anabasys refere-se ao último filme do
cineasta, A Idade da Terra, e é codirigido por sua filha, Paloma
Luiz Carlos Merten
Ao fazer um documentário sobre A Idade da
Terra (1980), último filme de Glauber Rocha, sua filha, Paloma, e o
cineasta Joel Pizzini não hesitaram em chamá-lo de Anabasys. Por pelo
menos dois motivos. Anabasys era o título pretendido por Glauber para
essa que acabou sendo a sua obra-testamento, e que provocou escândalo no
Festival de Veneza daquele ano. Acabou preferindo, com vantagens,
chamá-lo A Idade da Terra. Assim, o documentário presta uma homenagem
póstuma ao título preterido. Mas há outro motivo: Anabasys é o título da
obra de Xenofonte (427-355 a. C.) e se refere à batalha de 10 mil
mercenários de Ciro contra seu irmão Artaxerxes.
A palavra grega quer dizer "ascensão". Tem muito a ver com a complexa
última obra de Glauber Rocha, essa alegoria final de um Brasil
dilacerado, com seus "Cristos" à deriva em uma Brasília alucinada.
Glauber tinha a pretensão de entender o Brasil profundo, em seus
alicerces inconscientes, e isso o levou a uma estética do sonho, com
esse filme de estrutura complexa e fragmentária. Compreender para
redimir.
Anabasys é mais do que um documentário sobre esse filme - é tentativa de
diálogo com ele. Recorre a entrevistas com personagens, mas entra também
em contato com os próprios materiais desse e de outros trabalhos de
Glauber. Põe em evidência, e em questão, a obra do cineasta baiano em
seu conjunto.
E, ao dialogar com o trabalho de Glauber, Anabasys opta por uma
linguagem que é a do próprio cineasta. Quer dizer, recusa a função
didática que seria "explicar" uma obra complexa traduzindo-a para uma
linguagem simples. E que, no limite, a trairia. Ao contrário, faz um
comentário que tende a se agregar à leitura do próprio filme de Glauber
Rocha. Passa a ser um capítulo, ou um apêndice, de A Idade da Terra.
Pode ser visto de forma autônoma, embora o lógico fosse assistir aos
dois filmes em conjunto, quando um pudesse remeter ao outro, e
enriquecê-lo.
(©
Estadão)
Anabazys e o resgate de um Glauber
(des)conhecido
Por Ana Martinelli
A cinematografia de um país se constrói
por muitos caminhos: a descoberta de novos talentos, incentivos à
produção, distribuição no circuito comercial e nos festivais, mas também
se faz pela constante revisão, resgate e em fazer acessível os filmes ao
público, sejam eles feitos ontem ou há décadas.
Parece bastante lógico o raciocínio, mas a consciência da necessidade de
restaurar e resgatar filmes e obras de cineastas ainda é uma discussão
recente no país. O restauro da obra fílmica de Glauber Rocha é um dos
projetos que retoma a importância desta questão.
Concebido como extra para o DVD duplo de A Idade da Terra, o
documentário Anabazys não tinha a pretensão de virar uma obra
independente com Glauber Rocha sobre seu próprio cinema e trajetória,
conta ao Cineclick Joel Pizzini, co-diretor do filme com Paloma
Rocha e curador do projeto de restauro.
"Fomos levados a fazer o filme e chegou um momento em que o documentário
para o DVD transbordou a própria mídia. O material chegou ao Marco
Müller, diretor do Festival de Veneza, encantado com o que viu, convidou
o filme para a mostra Horizontes no 64º Festival de Veneza,em
2007." Pizzini disse ainda que a partir daí a montagem foi revista
amplificando sua abordagem.
Para quem acompanhou de perto ou conhece mais profundamente a trajetória
de Glauber Rocha, o convite pode parecer uma contradição, considerando a
participação polêmica que A Idade da Terra e seu autor tiveram no
mesmo festival 27 anos antes, um dos temas que Anabazys
contempla.
O assunto é tratado com bastante naturalidade por Paloma Rocha e
Pizzini: "O que aconteceu foi um ataque às posições políticas do autor,
houve um pré-conceito violento, pouco se falou sobre o filme,
efetivamente na época ele não foi entendido". Mas o próprio Pizzini
comenta certa mea culpa do festival que programou A Idade da
Terra, a cópia restaurada, para ser o filme de encerramento.
O cinema de autor e a "terrível" década de 80
A década de 80 foi um período bastante complicado para o cinema,
especialmente o experimental. Depois dos efervescentes movimentos de
contracultura, nas décadas de 60 e 70, como a Nouvelle Vague, na
França, o Novo Cinema Alemão, o Underground, nos Estados Unidos
e, no Brasil, o Cinema Novo e o Marginal, a produção experimental perdeu
espaço e os autores começam a ser cooptados pelos grandes estúdios.
O estopim para o protesto que teve até passeata ao Palácio dos
Festivais, em Veneza, foi justamente a escolha dos ganhadores. Naquele
ano, foram premiados dois filme de autores consagrados, Atlantic City,
de Louis Malle, e Glória, de John Cassavetes, com filmes
encabeçados por grandes estúdios e cuja linguagem estava, segundo Rocha,
aquém de seus autores, considerando-os filmes menores e acusando o
festival de ‘ter se vendido aos americanos’, Glauber Rocha saiu abalado
e morreu menos de um ano depois, em 1981.
"Foi uma época terrível para a autoria, um retrocesso, um tipo de cinema
estava morrendo. E foi neste cenário que Glauber apresentou um filme de
ruptura total: questionando o que é o cinema, o que é o espetáculo, qual
o sentido das coisas, para que fazer um filme correto, alinhado com a
lógica do espetáculo e da catarse", analisa Pizzini. "Esse cinema mais
artístico sobrevive até hoje, mas está restrito a pequenos circuitos de
arte".
Esse é um dos motivos alegados pelo qual Pizzini e Paloma foram levados
a fazer Anabazys, a necessidade de contextualizar a época e as
condições nas quais o filme foi produzido e a recepção de público e
crítica.
Ruptura Total
"Sou um artista coletivista que está aberto; um anti-artista. Sou uma
pessoa do povo. Sou um camponês de Vitória da Conquista. A Idade da
Terra seguirá o mesmo itinerário de outros filmes, criará polêmica,
será odiado, será amado."
Glauber Rocha
Em Anabazys, Carlos Caetano, assistente de direção de A Idade
da Terra, declara que Rocha confidenciou-o que tinha consciência de
que o filme só seria entendido "daqui a 25 anos". Talvez essa
consciência, aliada à de que morreria cedo, segundo Pizzini, tenha
colaborado para que filme recebesse o título de filme-testamento.
Nesse sentido, há vários fatores que podem levar a este entendimento: a
ruptura com o Cinema Novo, depois que o mesmo foi institucionalizado, e
com a Embrafilme, da qual foi um dos fundadores; o exílio; o manifesto
da Eztétyca do Sonho; o próprio processo de produção feito com
muita liberdade, incorporando não-atores e amigos.
"É um filme feito como se fosse o primeiro, com uma proposta de ruptura
permanente. Nele, Glauber ‘se lixou’ para essa coisa de fazer um filme
bem acabado, rigoroso, com o timing, dentro da lógica de que o
filme tem que ter uma curva dramática, catarse" , diz Pizzini. Abordando
estes aspectos, Anabazys resgata uma parte da história de Glauber
Rocha menos conhecida e estudada, esta segunda fase de seu cinema,
pós-Cinema Novo, pouco ou sequer vista pelo público.
Anabazys estreiou na sexta-feria (27/3)
em São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia.
(©
CineClick)
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