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O jogo da ficção e da realidade

31/03/2009

 

 

Cena de Moscou
 

Moscou, de Eduardo Coutinho, propõe uma reflexão sobre limites do imaginário

Luiz Zanin Oricchio

Depois de Jogo de Cena, que será apresentado no Festival É Tudo Verdade, Eduardo Coutinho aprofunda sua pesquisa sobre as relações entre o real e o imaginário. O título agora é Moscou, que pode, à primeira vista, ser descrito como relato dos ensaios do Grupo Galpão, de Belo Horizonte, da peça As Três Irmãs, de Chekhov. O diretor (da peça) é Enrique Diaz e, nesse nível de leitura, Moscou pode ser entendido como um filme de bastidores. A peça atrás da peça, ou seja, o pequeno teatro montado entre as pessoas para que o teatro de verdade aconteça.

Tudo, no entanto, é muito mais sutil e profundo. O texto de Chekhov é longo. Por isso, o diretor Enrique Diaz e o elenco (e o próprio Coutinho, que aparece em cena) concordam que terão de trabalhar com excertos, com um extrato da peça, reunindo as três irmãs, alguns homens que as rodeiam, e uma profunda nostalgia. De quê? Em primeiro lugar, da capital. Eles estão numa província distante e esperam voltar para Moscou. Mas, mais profundamente, nostalgia de alguns momentos, saudades de si mesmas. Bem à maneira de Chekhov, há mais sensações, climas, do que "acontecimentos" em si.

Mas, além disso, o diretor pede alguns exercícios para sensibilizar os atores, flexões emocionais para que se disponham melhor à atuação. O que pede? Que relatem algo de seus conflitos na atualidade. Pode ser o medo, ou a relação com os filhos que não vai bem. Pode ser, no fundo, qualquer coisa, desde que se dê como ponto pacífico que o ser humano é conflitado com os outros e consigo mesmo por definição. Mas quem está falando? Os personagens de Chekhov, através do texto, ou são os atores que falam de si mesmos? Onde a verdade? Onde a ficção? Claro, estamos aqui de novo no ambiente de Jogo de Cena - as atrizes interpretam os casos reais que escutaram ou falam de si? O que não quer dizer que um filme seja a continuação de outro; apenas refletem um mesmo momento do artista.

No fim, por intermédio da estrutura da representação, Coutinho repropõe uma velha máxima do imaginário artístico. Conforme a frase latina - "de te fabula narratur", de Horácio: a história que está sendo contada fala de você. É o que, no fundo, justifica o nosso envolvimento com algo que, em aparência, nada tem a ver conosco. Por que nos importaríamos com três irmãs nostálgicas, numa província russa, diálogos de uma velha peça de teatro escrita em 1900? Simples: porque as irmãs criadas por Chekhov falam de nós. Falam de sentimentos, esperanças, dores e mesquinharias que pertencem a todos nós, ao nosso patrimônio simbólico comum.

Coutinho cria um espaço cênico de pura indeterminação. A fotografia, muito expressiva, facilita o vai e vem entre os (pelo menos) dois planos da narrativa. E a relação intersubjetiva, por ser sempre ambivalente, facilita a entrada do espectador no jogo. Afinal, ele, como os atores, é parte daquilo. Mas, ao mesmo tempo em que nos seduz, o filme nos afasta com técnicas anti-ilusionistas. Se desejamos nos deixar seduzir e fascinar por aquilo que vemos, logo nos é mostrada a equipe técnica, a filmar, com os microfones suspensos para captar as vozes dos atores.

Somos lembrados de que tudo é encenação. E nos emocionamos assim mesmo. Ou, melhor: nos emocionamos porque sabemos que se trata de uma encenação. No interior desse acervo comum das emoções humanas somos, ao mesmo tempo, sujeitos e objetos. Moscou é mais um filme excepcional de Eduardo Coutinho. E não nos peçam para dizer se é documentário ou ficção. A pergunta já não cabe.

(© Estadão)


Crítica/cinema/"Moscou"

Coutinho retorna ao teatro para entender como nasce a ficção

Documentário híbrido, exibido hoje no É Tudo Verdade, acompanha com mestria um ensaio de peça de Tchekov

SÉRGIO RIZZO
CRÍTICO DA FOLHA

Espinha dorsal de "Jogo de Cena" (2007), o flerte de Eduardo Coutinho com o teatro se torna namoro firme em "Moscou". Com isso, o diretor prossegue em sua caminhada tangencial à ficção, de acordo com o formato híbrido que já experimentara em seu filme mais célebre, "Cabra Marcado para Morrer" (1984). Desde então, seus filmes são inquietas explorações das confluências e dos contrastes entre duas constantes que caracterizam o documentário: é tudo verdade -como observa o título do longa inacabado de Orson Welles que o festival adotou como nome-, mas, ao mesmo tempo, é tudo representação. Investigar as máscaras que vestimos para compor nossos papéis e os discursos que usamos para convencer os outros de que somos quem acreditamos ser (ou talvez nem mesmo acreditemos, mas queiramos ser) está na raiz de "Santo Forte" (1999) e "Edifício Master" (2002), entre outros.

Em "Jogo de Cena", a estratégia de construção de personagens -que passa a incluir palco e atrizes profissionais- cria uma espécie de labirinto a partir da sobreposição de camadas de representação, das quais o espectador só toma consciência quando uma história se repete pela primeira vez. Na abertura de "Moscou", a impressão é a de que estamos no mesmo território de incertezas e de ambiguidades.

Um homem nos mostra uma foto, que diz ser da capital russa, e fala sobre a sua experiência pessoal com aquele cenário -a dor, por exemplo, de retornar ao local e ver destruído o cinema que frequentava.

Dessa vez, no entanto, a caixa-preta está aberta. Coutinho entra em cena para explicar o princípio do jogo: um texto de ficção ("As Três Irmãs", de Tchekov), um grupo de teatro profissional (o Galpão, de Belo Horizonte), um diretor escolhido a partir de indicações dos atores (Enrique Díaz).

Terreno seguro? Em termos. Em três semanas de ensaios, não é propriamente a peça que se ergue; enquanto o elenco caminha em direção a uma tentativa de montagem, com leitura de cenas, laboratórios e outros recursos, o filme -ele, sim, a autêntica obra em progresso- se transforma em voyeur. A personalidade de "Moscou", com suas câmeras espalhadas por salas de trabalho, camarins e qualquer outro lugar onde haja um ator, se assemelha à de uma criança que procura entender de onde nasce a ficção, por que ela mexe conosco de acordo com parâmetros singulares, e por que há tanta verdade na representação.

MOSCOU

Direção: Eduardo Coutinho
Quando: em SP: hoje, às 21h, amanhã, às 15h, e quinta (2), às 17h, no Cinesesc; no Rio: amanhã, às 20h, quinta (2), às 14h e às 22h, no Unibanco Arteplex
Avaliação: ótimo

(© Folha de S. Paulo)


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Eduardo Coutinho


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Entrevista com Eduardo Coutinho

 

 

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