Moscou, de Eduardo Coutinho, propõe uma reflexão sobre limites do
imaginário
Luiz Zanin Oricchio
Depois de Jogo de Cena, que será apresentado no Festival É Tudo
Verdade, Eduardo Coutinho aprofunda sua pesquisa sobre as relações
entre o real e o imaginário. O título agora é Moscou, que pode, à
primeira vista, ser descrito como relato dos ensaios do Grupo
Galpão, de Belo Horizonte, da peça As Três Irmãs, de Chekhov. O
diretor (da peça) é Enrique Diaz e, nesse nível de leitura, Moscou
pode ser entendido como um filme de bastidores. A peça atrás da
peça, ou seja, o pequeno teatro montado entre as pessoas para que o
teatro de verdade aconteça.
Tudo, no entanto, é muito mais sutil e profundo. O texto de Chekhov
é longo. Por isso, o diretor Enrique Diaz e o elenco (e o próprio
Coutinho, que aparece em cena) concordam que terão de trabalhar com
excertos, com um extrato da peça, reunindo as três irmãs, alguns
homens que as rodeiam, e uma profunda nostalgia. De quê? Em primeiro
lugar, da capital. Eles estão numa província distante e esperam
voltar para Moscou. Mas, mais profundamente, nostalgia de alguns
momentos, saudades de si mesmas. Bem à maneira de Chekhov, há mais
sensações, climas, do que "acontecimentos" em si.
Mas, além disso, o diretor pede alguns exercícios para sensibilizar
os atores, flexões emocionais para que se disponham melhor à
atuação. O que pede? Que relatem algo de seus conflitos na
atualidade. Pode ser o medo, ou a relação com os filhos que não vai
bem. Pode ser, no fundo, qualquer coisa, desde que se dê como ponto
pacífico que o ser humano é conflitado com os outros e consigo mesmo
por definição. Mas quem está falando? Os personagens de Chekhov,
através do texto, ou são os atores que falam de si mesmos? Onde a
verdade? Onde a ficção? Claro, estamos aqui de novo no ambiente de
Jogo de Cena - as atrizes interpretam os casos reais que escutaram
ou falam de si? O que não quer dizer que um filme seja a continuação
de outro; apenas refletem um mesmo momento do artista.
No fim, por intermédio da estrutura da representação, Coutinho
repropõe uma velha máxima do imaginário artístico. Conforme a frase
latina - "de te fabula narratur", de Horácio: a história que está
sendo contada fala de você. É o que, no fundo, justifica o nosso
envolvimento com algo que, em aparência, nada tem a ver conosco. Por
que nos importaríamos com três irmãs nostálgicas, numa província
russa, diálogos de uma velha peça de teatro escrita em 1900?
Simples: porque as irmãs criadas por Chekhov falam de nós. Falam de
sentimentos, esperanças, dores e mesquinharias que pertencem a todos
nós, ao nosso patrimônio simbólico comum.
Coutinho cria um espaço cênico de pura indeterminação. A fotografia,
muito expressiva, facilita o vai e vem entre os (pelo menos) dois
planos da narrativa. E a relação intersubjetiva, por ser sempre
ambivalente, facilita a entrada do espectador no jogo. Afinal, ele,
como os atores, é parte daquilo. Mas, ao mesmo tempo em que nos
seduz, o filme nos afasta com técnicas anti-ilusionistas. Se
desejamos nos deixar seduzir e fascinar por aquilo que vemos, logo
nos é mostrada a equipe técnica, a filmar, com os microfones
suspensos para captar as vozes dos atores.
Somos lembrados de que tudo é encenação. E nos emocionamos assim
mesmo. Ou, melhor: nos emocionamos porque sabemos que se trata de
uma encenação. No interior desse acervo comum das emoções humanas
somos, ao mesmo tempo, sujeitos e objetos. Moscou é mais um filme
excepcional de Eduardo Coutinho. E não nos peçam para dizer se é
documentário ou ficção. A pergunta já não cabe.
Documentário híbrido, exibido hoje no É Tudo Verdade, acompanha com
mestria um ensaio de peça de Tchekov
SÉRGIO RIZZO
CRÍTICO DA FOLHA
Espinha dorsal de "Jogo de Cena" (2007), o flerte de Eduardo Coutinho com o
teatro se torna namoro firme em "Moscou". Com isso, o diretor prossegue em
sua caminhada tangencial à ficção, de acordo com o formato híbrido que já
experimentara em seu filme mais célebre, "Cabra Marcado para Morrer" (1984).
Desde então, seus filmes são inquietas explorações das confluências e dos
contrastes entre duas constantes que caracterizam o documentário: é tudo
verdade -como observa o título do longa inacabado de Orson Welles que o
festival adotou como nome-, mas, ao mesmo tempo, é tudo representação.
Investigar as máscaras que vestimos para compor nossos papéis e os discursos
que usamos para convencer os outros de que somos quem acreditamos ser (ou
talvez nem mesmo acreditemos, mas queiramos ser) está na raiz de "Santo
Forte" (1999) e "Edifício Master" (2002), entre outros.
Em "Jogo de Cena", a estratégia de construção de personagens -que passa a
incluir palco e atrizes profissionais- cria uma espécie de labirinto a
partir da sobreposição de camadas de representação, das quais o espectador
só toma consciência quando uma história se repete pela primeira vez. Na
abertura de "Moscou", a impressão é a de que estamos no mesmo território de
incertezas e de ambiguidades.
Um homem nos mostra uma foto, que diz ser da capital russa, e fala sobre
a sua experiência pessoal com aquele cenário -a dor, por exemplo, de
retornar ao local e ver destruído o cinema que frequentava.
Dessa vez, no entanto, a caixa-preta está aberta. Coutinho entra em cena
para explicar o princípio do jogo: um texto de ficção ("As Três Irmãs", de
Tchekov), um grupo de teatro profissional (o Galpão, de Belo Horizonte), um
diretor escolhido a partir de indicações dos atores (Enrique Díaz).
Terreno seguro? Em termos. Em três semanas de ensaios, não é propriamente
a peça que se ergue; enquanto o elenco caminha em direção a uma tentativa de
montagem, com leitura de cenas, laboratórios e outros recursos, o filme
-ele, sim, a autêntica obra em progresso- se transforma em voyeur. A
personalidade de "Moscou", com suas câmeras espalhadas por salas de
trabalho, camarins e qualquer outro lugar onde haja um ator, se assemelha à
de uma criança que procura entender de onde nasce a ficção, por que ela mexe
conosco de acordo com parâmetros singulares, e por que há tanta verdade na
representação.
MOSCOU
Direção: Eduardo Coutinho Quando: em SP: hoje, às 21h, amanhã, às 15h, e quinta (2), às 17h, no
Cinesesc; no Rio: amanhã, às 20h, quinta (2), às 14h e às 22h, no Unibanco
Arteplex Avaliação: ótimo