Críticos
estrangeiros compreenderam com mais argúcia a proposta do primeiro disco de
Chico Science & Nação Zumbi do que os jornalistas da imprensa do sudeste
José Teles
teles@jc.com.br
No mês em que
saiu a primeira matéria sobre o manguebeat, numa revista do Sudeste (a Bizz,
de março de 1993, um ano, portanto, antes do lançamento do disco Da lama ao
caos, de Chico Science & Nação Zumbi, pela Sony Music), a apresentadora Hebe
Camargo e o deputado e radialista Afanásio Jazadji apareciam na revista
condenando os roqueiros “que têm muita baixaria, violência, sexo e drogas”.
Mais adiante, em página inteira, a revista anunciava os nomes indicados
pelos leitores para melhores do ano na música pop brasileira e
internacional. Na categoria revelação, por exemplo, concorriam Daniela
Mercury e as bandas Beijo à Força e Yo-Ho-Delic. As três músicas mais bem
cotadas pelos leitores da então mais importante revista do gênero no País
era: Pedra, flor e espinho (Barão Vermelho), Ninguém (Engenheiro do Hawaii)
e Vento ventania (Biquíni Cavadão).
Portanto, não foi surpresa a estranheza que causou a música de Chico Science
& Nação Zumbi. Fernando Wanderley, na época um dos divulgadores da Sony
Music, conta que teve bastante resistência das emissoras do Grande Recife.
“Só a Rádio Cidade e a Transamerica tocaram, foi difícil com as demais. A
Cidade foi a que deu mais força.
Com a
Transaméricafoi mais difícil. A Cidade trabalhou
A praieira e Da lama ao caos. Lembro que em São Paulo, quando fizemos o
lançamento, foi Chico Science & Nação Zumbi, Gabriel o Pensador, Planet Hemp
e Skank. A sensação foi Chico que entrou vestido de caboclo de lança,
causando o maior impacto. Estavam lá todos os grandões da Sony, e Chico
arrebentou. Mas não sei se a resistência foi só pela música. Trabalho com
isso há muito tempo e o Recife sempre foi resistente a produto local. Mas
quando ele morreu, as rádios todas começaram a tocar A praieira, tudo
querendo ser o pai da criança”, lembra Fernando.
“No disco, a
Nação Zumbi soa realmente mais estranha do que no palco. Mas Da lama ao caos
é a prova mais convincente de que existem saídas para o rock brasileiro na
década de 90... Talvez seja necessário assistir ao grupo, que tocará dia 12
de abril no Circo Voador – para entender melhor, mas as mentes antenadas já
podem e devem correr atrás destes caranguejos que andam para a frente”. Este
texto foi pinçado da crítica de Antônio Carlos Miguel, em O Globo. Já na
Folha de S. Paulo, na matéria de lançamento do disco, Luís Antônio Giron,
também mostrava que ainda não decodificara os sons do mangue: “O fim do
folclore se aproxima. Mas o cantor e compositor Chico Science pensa estar
salvando o coco, a embolada, o pastoril, e o maracatu – gêneros de sua terra
– ao juntá-los com guitarras elétricas”. Giron também atribuía como
influências de Chico Science & Nação, os grupos Picassos Falsos, e Vzyadoq
Moe.
Curiosamente,
a crítica estrangeira compreendeu e aceitou de imediato a música de Da lama
ao caos. “Chico Science e Nação Zumbi podem cumprir o que apenas um seleto
grupo de músicos, incluindo o sr. Gil, conseguiu fazer: criar uma música
híbrida capaz de desenvolver-se e virar um estilo que será um dia
hibridizado por outra geração”, diz o crítico do New York Times, Jon
Pareles, comentando a apresentação de Chico Science & Nação Zumbi no Central
Park com Gilberto Gil, em junho de 1995.
Na revista
americana The Beat, especializada em world music, Mark Schwartz, numa
matéria intitulada “Brazilian swamp rock” (“O rock brasileiro do mangue”),
depois de contar a trajetória da banda até chegar ao disco e a turnês
internacionais, encerra assim: “Trinta anos atrás os tropicalistas trouxeram
jazz e rock avant-garde para a canção tradicional brasileira – agora o
rapper Chico Science e a Nação Zumbi completam a missão, trazendo o Brasil
para o mundo”.
Do grupo que gravou Da lama ao caos, três
não fazem mais parte da banda. Chico Science, falecido em 1997, Canhoto,
que deixou a banda em 1995, e Gira, que saiu, algum tempo depois que
Chico Science faleceu. O principal problema dos dois últimos foi a
velocidade com que mudaram de status. Paulo André Pires lembra que Gira
passou a sair pouco: “Ele ficava o tempo inteiro deitado, não sei
exatamente do que se tratava, acho que era depressão. Ele até fez um
tratamento, mas não tinha mais condições de continuar na banda daquela
forma”. O percussionista voltou a se recuperar no ano passado. “Estou
bem melhor, passei muito tempo na cachaça, mas agora estou com pique,
fazendo música. Toquei com o grupo de Gilmar, o Combo Percussivo da Zona
Norte, toco também com o grupo de Canhoto. Acho que agora estou legal
mesmo. Só preciso é ganhar dinheiro”, disse Gira na semana passada.
Não por acaso os integrantes do grupo que
viviam em condições econômicas mais estáveis não tiveram maiores
problemas. Gilmar Bola Oito, que também morava em Peixinhos, mas
trabalhava na Emprel, lembra que estranhou no início os hotéis de luxo e
que, na primeira turnê, perdeu-se em Paris: “Eu me perdi quando fui na
Galeria Lafayette, e no dia em que a gente ia viajar. Mas cheguei a
tempo, porque sabia que o hotel ficava perto do Moulin Rouge e fui me
orientando por um mapa. Mas era tudo novidade para a gente. Lembro que
quando Chico foi cantar Monólogo ao pé do ouvido, eu não tinha nem idéia
do significado da palavra, e perguntei a ele o que era”, ri o
percussionista.
LEMBRANÇAS
Com Canhoto não foi assim tão fácil.
Uma das lembranças que mais lhe é cara da época em que estavam gravando
Da lama ao caos foi um elogio que lhe foi feito por Liminha. “Ele deu
uma entrevista para um jornal lá do Rio e, na matéria, citou meu nome,
dizendo que eu era um dos destaques tocando o caixa”, diz Canhoto, que
nem sabe exatamente como ficou ente os oito integrantes fixos do Chico
Science & Nação Zumbi. “A base era o Lamento Negro que tinha uns 18
percussionistas. Quase todo mundo tocou na Nação, nem que seja uma vez.
No grupo que Gilmar formou agora tem vários deles. Pácua, Louro, Maia,
Maureliano, este pessoal todo passou pela Nação Zumbi.”
“Na época em que me disseram que eu ia
sair do grupo foi muito ruim, mas depois fui entendendo. Acho que eu não
estava preparado para tudo aquilo”, reconhece. “Aqueles músicos famosos
no estúdio, como Frejat, os Paralamas. Ir para aqueles países onde tudo
funciona perfeito. Mas hoje agradeço ter passado por aquilo, foi uma
aprendizagem, acho que Chico veio aqui para mostra a gente o que fazer
neste mundo”, diz Canhoto.
Aos 31 anos, Canhoto é muito centrado.
Lidera uma banda chamada Etnia, que segue a linha estética da primeira
de Chico Science & Nação Zumbi, tem projeto paralelo, Canhoto e os
Chegados (que acaba de lançar CD) e trabalha em projetos sociais com
Gilmar Bola Oito.
Se não fosse sua entrada para o Lamento
Negro no início da adolescência, Canhoto confessa que não sabe o que
seria hoje em dia. “Não sei se seria músico. O mais provável é que
tivesse seguido a carreira da minha mãe. Até hoje ele trabalha numa
movelaria, ajudando a fazer sofás”, diz o músico.
O lugar onde Da lama ao caos foi mais
compreendido foi em sua terra, naturalmente, por uma minoria que
acompanhou a evolução do grupo. A influência de Chico Science &
Nação Zumbi foi bem além do Grande Recife, indo do Litoral ao Sertão
do São Francisco, onde surgiu um movimento denominado Carranca Beat.
Wagner Miranda, um músico recifense que foi morar em Petrolina,
formou o grupo Os Matingueiros, com claras influências de Chico
Science & Nação Zumbi, porém mais no conceito do que na música. No
Agreste, o caruaruense Ivan Márcio foi pego pelo som de Chico
Science & Nação. Ele assistiu à banda pela primeira vez em
Maracaípe, pouco antes de sair Da lama ao caos: “A influência está
logo no nome da banda da gente, Sangue de barro. Engraçado é que
quando ouvi o disco achei estranho, não entendi logo. Comecei a
estudar, ler as letras. A gente, na verdade, não estava ainda
preparado para o som de Chico Sciene & Nação Zumbi naquela época”,
comenta Ivan Mário, que está com a Sangue de Barro há onze anos.
“Outras bandas de Caruaru também têm influência do trabalho de Chico
Science, como a Sobreviventes do
I.D.R e a Zabumba Bacamarte”, completa ele.
Silvério
Pessoa fazia música, mas não tinha tido ainda coragem de deixar o
emprego seguro de professor da rede estadual para arriscar uma
carreira de artista, até um dia em que assistiu a uma entrevista de
Chico Science na TV Jornal. “Não lembro mais o programa, acho que
era um que (o jornalista) Marcelo Pereira apresentava. Então Chico
disse: faça o que você é que irá dar certo. Isto me fez perder o
medo, me desbloqueou mesmo. Tenho esta dívida eterna com ele”, diz
Silvério Pessoa, que começou, com uns amigos, a formar o grupo que
seria o Cascabulho e que, seria produzido por Paulo André, o mesmo
produtor de Chico Science & Nação Zumbi.
Silvério ressalta ainda que foi Chico Science & Nação Zumbi, depois
do Da lama ao caos, que abriu o caminho para outras bandas
pernambucanas: “Principalmente na Europa, onde eles viraram
referência”. Silvério diz que quando gravava Fome dá dor de cabeça
com o Cascabulho, andava com Da lama ao caos na bolsa: “Era meu
disco de cabeceira”.
O
mais importante em Da lama ao caos foi que ele disseminou o vírus da
auto-estima entre os artistas pernabucanos. Lá em Arcoverde, um
grupo de rapazes que fazia teatro acabou virando um grupo musical
batizado de Cordel do Fogo Encantado, utilizando elementos
regionais, no caso deles a poesia dos declamadores e repentistas do
Sertão. (J.T.)