Notícias
Decodificando da lama ao caos

31/03/2009

 

 

Foto: JC Imagem
Chico Science e o mangue 
 

Críticos estrangeiros compreenderam com mais argúcia a proposta do primeiro disco de Chico Science & Nação Zumbi do que os jornalistas da imprensa do sudeste

José Teles
teles@jc.com.br

No mês em que saiu a primeira matéria sobre o manguebeat, numa revista do Sudeste (a Bizz, de março de 1993, um ano, portanto, antes do lançamento do disco Da lama ao caos, de Chico Science & Nação Zumbi, pela Sony Music), a apresentadora Hebe Camargo e o deputado e radialista Afanásio Jazadji apareciam na revista condenando os roqueiros “que têm muita baixaria, violência, sexo e drogas”. Mais adiante, em página inteira, a revista anunciava os nomes indicados pelos leitores para melhores do ano na música pop brasileira e internacional. Na categoria revelação, por exemplo, concorriam Daniela Mercury e as bandas Beijo à Força e Yo-Ho-Delic. As três músicas mais bem cotadas pelos leitores da então mais importante revista do gênero no País era: Pedra, flor e espinho (Barão Vermelho), Ninguém (Engenheiro do Hawaii) e Vento ventania (Biquíni Cavadão). Portanto, não foi surpresa a estranheza que causou a música de Chico Science & Nação Zumbi. Fernando Wanderley, na época um dos divulgadores da Sony Music, conta que teve bastante resistência das emissoras do Grande Recife. “Só a Rádio Cidade e a Transamerica tocaram, foi difícil com as demais. A Cidade foi a que deu mais força.

Com a Transamérica foi mais difícil. A Cidade trabalhou A praieira e Da lama ao caos. Lembro que em São Paulo, quando fizemos o lançamento, foi Chico Science & Nação Zumbi, Gabriel o Pensador, Planet Hemp e Skank. A sensação foi Chico que entrou vestido de caboclo de lança, causando o maior impacto. Estavam lá todos os grandões da Sony, e Chico arrebentou. Mas não sei se a resistência foi só pela música. Trabalho com isso há muito tempo e o Recife sempre foi resistente a produto local. Mas quando ele morreu, as rádios todas começaram a tocar A praieira, tudo querendo ser o pai da criança”, lembra Fernando.

“No disco, a Nação Zumbi soa realmente mais estranha do que no palco. Mas Da lama ao caos é a prova mais convincente de que existem saídas para o rock brasileiro na década de 90... Talvez seja necessário assistir ao grupo, que tocará dia 12 de abril no Circo Voador – para entender melhor, mas as mentes antenadas já podem e devem correr atrás destes caranguejos que andam para a frente”. Este texto foi pinçado da crítica de Antônio Carlos Miguel, em O Globo. Já na Folha de S. Paulo, na matéria de lançamento do disco, Luís Antônio Giron, também mostrava que ainda não decodificara os sons do mangue: “O fim do folclore se aproxima. Mas o cantor e compositor Chico Science pensa estar salvando o coco, a embolada, o pastoril, e o maracatu – gêneros de sua terra – ao juntá-los com guitarras elétricas”. Giron também atribuía como influências de Chico Science & Nação, os grupos Picassos Falsos, e Vzyadoq Moe.

Curiosamente, a crítica estrangeira compreendeu e aceitou de imediato a música de Da lama ao caos. “Chico Science e Nação Zumbi podem cumprir o que apenas um seleto grupo de músicos, incluindo o sr. Gil, conseguiu fazer: criar uma música híbrida capaz de desenvolver-se e virar um estilo que será um dia hibridizado por outra geração”, diz o crítico do New York Times, Jon Pareles, comentando a apresentação de Chico Science & Nação Zumbi no Central Park com Gilberto Gil, em junho de 1995.

Na revista americana The Beat, especializada em world music, Mark Schwartz, numa matéria intitulada “Brazilian swamp rock” (“O rock brasileiro do mangue”), depois de contar a trajetória da banda até chegar ao disco e a turnês internacionais, encerra assim: “Trinta anos atrás os tropicalistas trouxeram jazz e rock avant-garde para a canção tradicional brasileira – agora o rapper Chico Science e a Nação Zumbi completam a missão, trazendo o Brasil para o mundo”.

(© JC Online)


Mudança de status foi difícil para malungos

Do grupo que gravou Da lama ao caos, três não fazem mais parte da banda. Chico Science, falecido em 1997, Canhoto, que deixou a banda em 1995, e Gira, que saiu, algum tempo depois que Chico Science faleceu. O principal problema dos dois últimos foi a velocidade com que mudaram de status. Paulo André Pires lembra que Gira passou a sair pouco: “Ele ficava o tempo inteiro deitado, não sei exatamente do que se tratava, acho que era depressão. Ele até fez um tratamento, mas não tinha mais condições de continuar na banda daquela forma”. O percussionista voltou a se recuperar no ano passado. “Estou bem melhor, passei muito tempo na cachaça, mas agora estou com pique, fazendo música. Toquei com o grupo de Gilmar, o Combo Percussivo da Zona Norte, toco também com o grupo de Canhoto. Acho que agora estou legal mesmo. Só preciso é ganhar dinheiro”, disse Gira na semana passada.

Não por acaso os integrantes do grupo que viviam em condições econômicas mais estáveis não tiveram maiores problemas. Gilmar Bola Oito, que também morava em Peixinhos, mas trabalhava na Emprel, lembra que estranhou no início os hotéis de luxo e que, na primeira turnê, perdeu-se em Paris: “Eu me perdi quando fui na Galeria Lafayette, e no dia em que a gente ia viajar. Mas cheguei a tempo, porque sabia que o hotel ficava perto do Moulin Rouge e fui me orientando por um mapa. Mas era tudo novidade para a gente. Lembro que quando Chico foi cantar Monólogo ao pé do ouvido, eu não tinha nem idéia do significado da palavra, e perguntei a ele o que era”, ri o percussionista.

LEMBRANÇAS

Com Canhoto não foi assim tão fácil. Uma das lembranças que mais lhe é cara da época em que estavam gravando Da lama ao caos foi um elogio que lhe foi feito por Liminha. “Ele deu uma entrevista para um jornal lá do Rio e, na matéria, citou meu nome, dizendo que eu era um dos destaques tocando o caixa”, diz Canhoto, que nem sabe exatamente como ficou ente os oito integrantes fixos do Chico Science & Nação Zumbi. “A base era o Lamento Negro que tinha uns 18 percussionistas. Quase todo mundo tocou na Nação, nem que seja uma vez. No grupo que Gilmar formou agora tem vários deles. Pácua, Louro, Maia, Maureliano, este pessoal todo passou pela Nação Zumbi.”

“Na época em que me disseram que eu ia sair do grupo foi muito ruim, mas depois fui entendendo. Acho que eu não estava preparado para tudo aquilo”, reconhece. “Aqueles músicos famosos no estúdio, como Frejat, os Paralamas. Ir para aqueles países onde tudo funciona perfeito. Mas hoje agradeço ter passado por aquilo, foi uma aprendizagem, acho que Chico veio aqui para mostra a gente o que fazer neste mundo”, diz Canhoto.

Aos 31 anos, Canhoto é muito centrado. Lidera uma banda chamada Etnia, que segue a linha estética da primeira de Chico Science & Nação Zumbi, tem projeto paralelo, Canhoto e os Chegados (que acaba de lançar CD) e trabalha em projetos sociais com Gilmar Bola Oito.

Se não fosse sua entrada para o Lamento Negro no início da adolescência, Canhoto confessa que não sabe o que seria hoje em dia. “Não sei se seria músico. O mais provável é que tivesse seguido a carreira da minha mãe. Até hoje ele trabalha numa movelaria, ajudando a fazer sofás”, diz o músico.

(© JC Online)


Influências estão por toda a parte

O lugar onde Da lama ao caos foi mais compreendido foi em sua terra, naturalmente, por uma minoria que acompanhou a evolução do grupo. A influência de Chico Science & Nação Zumbi foi bem além do Grande Recife, indo do Litoral ao Sertão do São Francisco, onde surgiu um movimento denominado Carranca Beat. Wagner Miranda, um músico recifense que foi morar em Petrolina, formou o grupo Os Matingueiros, com claras influências de Chico Science & Nação Zumbi, porém mais no conceito do que na música. No Agreste, o caruaruense Ivan Márcio foi pego pelo som de Chico Science & Nação. Ele assistiu à banda pela primeira vez em Maracaípe, pouco antes de sair Da lama ao caos: “A influência está logo no nome da banda da gente, Sangue de barro. Engraçado é que quando ouvi o disco achei estranho, não entendi logo. Comecei a estudar, ler as letras. A gente, na verdade, não estava ainda preparado para o som de Chico Sciene & Nação Zumbi naquela época”, comenta Ivan Mário, que está com a Sangue de Barro há onze anos. “Outras bandas de Caruaru também têm influência do trabalho de Chico Science, como a Sobreviventes do I.D.R e a Zabumba Bacamarte”, completa ele.

Silvério Pessoa fazia música, mas não tinha tido ainda coragem de deixar o emprego seguro de professor da rede estadual para arriscar uma carreira de artista, até um dia em que assistiu a uma entrevista de Chico Science na TV Jornal. “Não lembro mais o programa, acho que era um que (o jornalista) Marcelo Pereira apresentava. Então Chico disse: faça o que você é que irá dar certo. Isto me fez perder o medo, me desbloqueou mesmo. Tenho esta dívida eterna com ele”, diz Silvério Pessoa, que começou, com uns amigos, a formar o grupo que seria o Cascabulho e que, seria produzido por Paulo André, o mesmo produtor de Chico Science & Nação Zumbi.

Silvério ressalta ainda que foi Chico Science & Nação Zumbi, depois do Da lama ao caos, que abriu o caminho para outras bandas pernambucanas: “Principalmente na Europa, onde eles viraram referência”. Silvério diz que quando gravava Fome dá dor de cabeça com o Cascabulho, andava com Da lama ao caos na bolsa: “Era meu disco de cabeceira”.

O mais importante em Da lama ao caos foi que ele disseminou o vírus da auto-estima entre os artistas pernabucanos. Lá em Arcoverde, um grupo de rapazes que fazia teatro acabou virando um grupo musical batizado de Cordel do Fogo Encantado, utilizando elementos regionais, no caso deles a poesia dos declamadores e repentistas do Sertão. (J.T.)

(© JC Online)


SITE

A Herança do Malungo

Nação Zumbi


VÍDEO

Chico Science & Nação Zumbi - Arquivo - Trama/Radiola

 

 

Com relação a este tema, saiba mais (arquivo NordesteWeb)


powered by FreeFind