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30/04/2001

Sivuca e sua sanfona sinfônica

Sivuca

 

Quase-sapateiro que virou músico agora se aproxima do repertório clássico

ANA CECILIA MARTINS

   No dia 26 de maio de 1930 a pequena cidade de Itabaiana, Paraíba, via nascer mais um Severino: carregava o sobrenome Dias de Oliveira, filho de uma família de sapateiros, estrábico e albino e que por isso precisava resistir aos dias claros de sua terra. Severino poderia ter sido mais um fazedor de alpargatas do sertão. Mas não foi: empunhando uma sanfona que ganhara do pai algum tempo antes, aos 15 anos o menino viajou ao Recife para participar de um programa de 15 minutos na Rádio Clube de Pernambuco. Agradou, recebendo de quebra o apelido Sivuca, dado pelo maestro Nelson Ferreira, que julgava seu nome muito comum e comprido para o rádio. Hoje, aos 70 anos, 60 de profissão e mais de 50 discos na bagagem, Sivuca é reverenciado como um dos músicos mais originais do país. Uma usina criativa que vem investindo há quase uma década em composições e orquestrações para conjuntos sinfônicos. Na próxima terça às 17h, o nordestino se apresenta no Teatro Municipal com sua sanfona ao lado da Orquestra Petrobrás Pró Música e do pianista e arranjador Wagner Tiso, dando uma amostra de toda a versatilidade de um artista inconfundivelmente brasileiro.

   Sivuca gosta de contar histórias cheias de cores e lembra com detalhes aquelas que foram decisivas na sua vida. Como quando seu pai chegou em casa, às 13h30 do dia 13 de junho de 1939 com uma panela cheia de mangaba, um gatinho amarelo no bolso do casaco e uma sanfona na mão. ''Meu pai trouxe para mim e para outro irmão meu, mas logo ela se tornou minha'', conta Sivuca, com seu jeito plácido habitual, lembrando que na época, dividia a pequena casa no sertão com oito irmãos, três albinos como ele. O mal congênito, que o deixou com a pele e os pêlos brancos e muito sensível à luz, nunca foi encarado como grande infortúnio. ''Acho que pelo fato de ser albino desenvolvi uma sensibilidade maior. Transformei o que poderia ser uma grande dificuldade em um benefício para mim. O talento para a música foi a minha compensação'', diz confiante.

   Os casos que enredam sua biografia são desfiados saborosamente por Sivuca, figura bonachona que cultiva com apuro a barba - hoje bem aparada - e o cabelo levemente comprido. ''Lembro da primeira vez em que vi um sanfoneiro numa festa de casamento quando tinha cinco anos. Fiquei a noite inteira olhando maravilhado para ele'', conta Sivuca, ouvido bem de perto por sua mulher, a compositora Glória Gadelha, com quem está casado há 25 anos. É ela quem lhe lembra de falar sobre seu site na internet e do show que os dois farão juntos em maio na Sala Funarte. ''Estamos comemorando bodas de prata. Glória é meu porto seguro'', afirma o músico, que mora num apartamento na Lagoa, onde passa a maior parte do tempo quando não está na estrada. Sivuca é um homem caseiro: gosta de ficar ensaiando ao piano, sanfona e violão, ouvindo estações de rádios estrangeiras, como a BBC, e assistindo a seriados na televisão como Jeannie é um gênio e Feiticeira. ''Tenho uma vida muito simples e simpática'', resume.

   Durante cerca de 18 anos a vida de Sivuca foi sediada no exterior. Morou em Nova Iorque, onde foi aplaudido de pé em diversas casas de concerto - incluindo o Carnegie Hall -, e ainda contabiliza inúmeras passagens por países como França, Portugal, Suécia e Japão. O tempo fora do Brasil não o afastou de suas raízes musicais. ''Fiquei ainda mais brasileiro'', acredita. ''A brasilidade eu carrego comigo para todo lugar'', completa. É essa brasilidade, traduzida na pulsação com os instrumentos, a marca presente em todos seus trabalhos, inclusive naqueles ligados à música clássica. Exemplos dessa versatilidade podem ser conferidos na versão que fez para peça de Paganini Moto perpétuo, destinada originalmente para violino, vertida por ele para sanfona e orquestra; ou no Concerto Sinfônico para Asa Branca, baseado no hino de Luiz Gonzaga, que também será interpretado por Sivuca nesta terça com a orquestra regida por Roberto Tibiriçá.

   O talento para o erudito vem desde a década de 50 quando o músico, ainda jovem, foi selecionado para ter aulas de harmonia por dois anos com o compositor César Guerra-Peixe. ''Este período valeu mais que dez de conservatório. Guerra-Peixe é meu timoneiro musical'', decreta o músico, que está compondo uma suíte sinfônica inspirada no livro Os sertões, de Euclides da Cunha. ''Os temas já estão elaborados, criei um movimento para cada capítulo''.

   Para Sivuca, seu futuro musical está muito ligado às orquestras. ''Não há beleza igual à música tocada por uma grande orquestra. Me dá um prazer muito grande'', comenta o paraibano, que tem se apresentado com vários conjuntos sinfônicos brasileiros. ''Quero estar cada vez mais perto da música sinfônica e, como não toco violino, tenho que chegar a esse mundo com meu próprio instrumento'', diz Sivuca, que carrega na sua veia musical o ritmo do baião, da valsa, da marcha-rancho, do choro e da sinfonia, sem abrir mão de nenhum. Na verdade, porque Sivuca nunca deixou de ser Severino Dias de Oliveira, nordestino espontâneo, simples, e por isso mesmo fora de qualquer padrão. (Jornal do Brasil)

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