Secretário do Livro e Leitura, morto
ontem, se destacava pela polivalência, atuando em todas as áreas culturais
CASSIANO ELEK MACHADO
DA REPORTAGEM LOCAL
Compositor, diretor musical, performer,
artista plástico, editor, videomaker, ator e poeta, sobretudo poeta, Waly Salomão morreu
ontem pela manhã no Rio de Janeiro, aos 59 anos.
Secretário do Livro e Leitura nomeado por
Gilberto Gil no início do ano, o baiano de Jequié, filho de um sírio com uma sertaneja,
foi vítima de um câncer no intestino, diagnosticado há pouco mais de um mês.
Efervescente por natureza, o poeta não se
abatera com a doença. Em entrevista à Folha há 20 dias, elencara efusivamente
uma série de medidas que pretendia tomar assim que o "Diário Oficial"
ratificasse o novo órgão federal voltado ao livro, o Instituto Nacional do Livro e
Leitura, que ele ajudou a criar.
Essa energia na produção cultural foi uma
das marcas salientadas por Gilberto Gil em seu discurso de posse, texto lembrado ontem em
nota do Ministério da Cultura. "A tristeza tomou conta do Ministério da
Cultura", diz o comunicado, que termina com trecho do discurso: "Espero de Waly
que ele seja aqui o que tem sido nestes últimos anos no ambiente cultural brasileiro: uma
presença inovadora, inspiradora e eletrizante".
Autor de uma dezena de títulos, Salomão
levava essas mesmas características para a sua poesia. A oralidade era o habitat natural
de seus versos, que Salomão, ou Sailormoon, pseudônimo com o qual assinava poemas e
letras de música nos anos 70, declamava como um trovador grego.
As marcas do falar estavam também em sua
escrita, como a publicação tardia de boa parte de sua obra poética evidencia. A
confluência do oral com o escrito também levaram o poeta às letras de música, algumas
delas já transformadas em "standards" da MPB, caso da parceria com Jards
Macalé "Vapor Barato", seu bilhete de entrada para o tropicalismo.
Além da música e da literatura, as artes
também eram velhas conhecidas de Salomão. Amigo do peito de Helio Oiticica (1937-1980),
sobre quem escreveu um livro para a série Perfis do Rio (Relume Dumará), o poeta
participou de diversas exposições com performances ou vídeos.
Foi para Oiticica que ele dedicou um de seus
livros mais recentes, a coletânea "O Mel do Melhor" (Rocco). O criador dos
parangolés, a quem Salomão atribuía o estímulo mais determinante para o
"surto" de sua produção poética, esteve por trás do primeiro livro do
escritor baiano.
O artista fez a concepção gráfica do
volume "Me Segura Qu'Eu Vou Dar um Troço", do início dos anos 70, que Salomão
escreveu no presídio do Carandiru, em São Paulo, onde ficou detido por posse de drogas.
No mesmo período, o poeta também atuou
como editor. Criou e comandou o efêmero selo Pedra Q Ronca, responsável pelo lançamento
do primeiro livro de Caetano Veloso, a coletânea de textos "Alegria, Alegria".
Entre seus feitos editoriais, também está
a organização e edição de "Os Últimos Dias de Paupéria", coletânea de
artigos do poeta piauiense Torquato Neto (1944-1972). Junto com o tropicalista, produzira,
no início dos anos 70, a histórica revista "Navilouca", que só teve um
número lançado.
Na publicação, Salomão dava vazão a um
modo de criação que ele registraria com clareza em seu livro "Algaravias"
(editora 34), que lhe rendeu em 1996 os prêmios Jabuti e Alphonsus de Guimaraes, da
Biblioteca Nacional.
Em um dos 23 textos do livro ele defendia
que "o poema deve ser uma festa do intelecto" e perguntava e se respondia:
"-O que é que você quer ser quando crescer?/-Poeta polifônico."
Eram versos cheios de vozes, livres e sem
vinculação a nenhum movimento poético, os de Salomão. Das influências que sempre
reconheceu em suas criações, ele dava lugar especial ao barroco luso-baiano Gregório de
Matos.
O poeta satírico do século 17 está ligado
ainda a duas passagens importantes na trajetória de Salomão. Foi interpretando o
"Boca do Inferno" que Salomão apareceu nas telas de cinema, no ano passado, em
filme de Ana Carolina. Foi sob a égide dele que Salomão fez também sua estréia na
política, nos anos 80, trabalhando na Fundação Gregório de Matos, órgão da
Prefeitura de Salvador.
Como secretário nacional, Salomão seria velado ontem, na Biblioteca Nacional (RJ).
Amanhã cedo, o autor do poema "Post Mortem" ("Quase morrer é assim/uma
cada vez mais crescente ojeriza com a vidinha literária/de par com a imorredoura memória
de certas linhas) será cremado no cemitério do Caju, Rio. O poeta era casado e deixa
dois filhos. (Colaborou a Sucursal do Rio)
(© Folha de S. Paulo)
REPERCUSSÃO
GAL COSTA, cantora
"O Waly era uma pessoa inteligente, importante, que contribuiu para a cultura
brasileira. Fizemos juntos os shows "Plural", "Fatal" e a turnê
"Festa no Interior". Ele era muito criativo e querido pelos amigos. É triste
demais perder um amigo tão repentinamente. Para mim, foi um choque terrível."
FERREIRA GULLAR, poeta e ensaísta
"Ele era um intelectual com amplo conhecimento das questões literárias e
artísticas, um excelente conferencista e poeta audacioso."
ARMANDO FREITAS FILHO, poeta e ensaísta
"Estou muito abalado. Essa notícia desmente a idéia amadora de que o câncer
ataca pessoas depressivas ou que passaram por uma forte depressão. O Waly sempre se
caracterizou pela vitalidade. Era falante, cheio de idéias e estava vivendo um período
de muito trabalho e planos."
FERNANDO GABEIRA, deputado federal (PT-RJ)
"O Waly era uma pessoa admirável, generosa, emotiva, extraordinária. Ia
contribuir muito com a política do livro no Brasil."
ROGÉRIO DUARTE, tropicalista
"É uma notícia terrível. O Waly era padrinho da minha filha. Sempre foi uma
presença fulminante na minha vida. Graças a ele, que me incentivou, lancei meu último
livro. Se não fosse o Waly, os "malditos" da Tropicália sequer teriam
existido. Ele resgatou o lado da contracultura do tropicalismo. Sempre foi o poeta da
luta."
PAULO ROCCO, editor, presidente do Sindicato Nacional dos Editores de Livro
"Essa é uma notícia muito triste para todo o universo editorial e cultural do
Brasil."
(© Folha de S. Paulo)
POESIA
No embalo da música das esferas
HAROLDO DE CAMPOS
ESPECIAL PARA A FOLHA
Fui surpreendido, hoje de manhã, pelo
telefonema da reportagem da Folha.
Transmitiram-me uma notícia que me deixou
atônito e contristado: a da morte com inadmissível, tão desnorteante -já que o colheu
em pleno vôo de imaginação poética e comunitária- do poeta (até o momento
assessorando o cantor e compositor Gilberto Gil na sua gestão, que auguro se mostrará
extraordinária, como ministro da Cultura do governo Lula).
O Waly Salomão (Sailormoon), querido amigo
já de anos e inventivo poeta e letrista "pop-erudito",
"pop-cultural", que sabia fundir-se admiravelmente a elegância mensurada de
mestre-sala de carnavais e avenidas, a executar, no espaço público dos sambódromos, os
seus minuetos bárbaros e volatéis em torno de uma cativante e sempre esquiva
porta-bandeira (a própria poesia?). Waly Sailormoon, o navilouco saído de um romance
virtual de Jorge Amado, capaz de misturar em sua eroto-culinária libano-afro-baiana, aos
quibes e esfihas levantinos, a pimenta picante e o dendê, mais o aroma capitoso do cravo
e da canela das gabrielas mulatas, cantadas por Jorge e por Gregório de Matos.
Lembro-me de um Carnaval em Salvador, para o
qual ele e Gil me convidaram. Hipnotizado por suas gargalhadas estalantes, quase que me
encarapitei no topo de um trio-elétrico, eu, um poeta já provecto e entrado na idade do
"ossio com dignidade". E só escapei do perigo eminente graças à intervenção
de outro amigo, o Risério, talvez que me advertiu prevendo o pior: "Se sobe agora
às nove da noite, só pode baixar às nove da manhã do dia seguinte, e com os ouvidos
zoados por uma turbilhonante percursão detonada à beira-tambor".
Encontro
Também guardo indelével o registro
do encontro que promovi entre o cubano Severo Sarduy, o vertiginoso autor de "De
donde Son Los Cantares?".
São estas as lembranças epifânicas que
posso reunir na comoção do momento, para exconjurar a grisália atmosfera de hospitais e
necrotérios. Parafraseando o nosso Guimarães (o Rosa da prosa), morrer para alguém como
o nosso poeta nave louco Waly Saylormoon não é apenas "ficar", "mas
continuar encantado e encantando", agora ritmo da música das esferas, gingando e
emitindo um evoé: "me segura que eu vou dar um troço!". (Haroldo de Campos
é poeta, tradutor e ensaísta, autor de, entre outros, "A Máquina do Mundo
Repensada" (Ateliê Editorial)).
(© Folha de S. Paulo)
MÚSICA
Músico atuou nos bastidores
PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL
Waly Salomão tornou-se figura importante
para a geração tropicalista, ainda que mais dos bastidores, após a partida de Caetano
Veloso e Gilberto Gil para o exílio em Londres, em 1969. Exilados os líderes, passou a
agir por trás de Gal Costa, que se tornava, por sua influência, musa do
pós-tropicalismo e porta-voz da ausência de Caetano e Gil.
Aí se deu o momento máximo de Salomão na
MPB: a direção do show "Fatal" (71). O poeta ainda era co-autor, com Jards
Macalé, de dois dos grandes momentos de "Fatal": "Mal Secreto" e,
sobretudo, "Vapor Barato".
No ano seguinte, Salomão foi um dos
parceiros de Macalé em seu álbum de estréia. A conexão se estendeu ao álbum seguinte,
"Aprender a Nadar" (74).
Maria Bethânia aderiu à poesia de
Salomão, gravando também em 72 "Anjo Exterminado", outra da parceria com
Macalé.
Em 76, Salomão compôs "Tarasca
Guidon" para os Doces Bárbaros. A partir daí se abriu a parceria Waly-Caetano, que
rendeu sucessos de Bethânia como "A Voz de uma Pessoa Vitoriosa" (78),
"Mel" (79), "Talismã" (80) e "Olho d'Água" (92).
Compôs nos 80 parcerias menos bem-sucedidas
com Gilberto Gil, gravadas por ele ou por Gal (como "O Revólver do Meu Sonho",
de 84, que tinha também o jovem Frejat como parceiro).
Começava aí um flerte com a nova geração
pop-rock -com Lulu Santos compôs "Assaltaram a Gramática", que os Paralamas do
Sucesso lançaram em 84. Navegando na vanguarda paulistana, compôs "Zé
Pelintra" (88), com e para Itamar Assumpção.
Na new wave "Grafitti", lançada
por Caetano em 84, surgia novo parceiro, o poeta Antonio Cícero. Com ele Salomão iniciou
trabalho intermitente, mas constante, que rendeu composições para um disco inteiro de
João Bosco, "Zona de Fronteira" (91).
Ensaiou, em 90, uma breve reaproximação
com Gal Costa, atuando na concepção de "Plural". Seus últimos trabalhos com
MPB foram de parceria com cantoras da geração 90. Compôs com Adriana Calcanhotto
"A Fábrica do Poema" (94) e "Pista de Dança" (98) e produziu para
Cássia Eller o disco e o show "Veneno Antimonotonia" (97).
Uma de suas últimas composições gravadas
foi "Cobra Coral", que o parceiro Caetano gravou no disco "Noites do
Norte" (2000).
(© Folha de S. Paulo)
Brasil perde voz transgressora de Waly Salomão
Arnaldo Bloch
Abril de 1998, Salvador. Dois meses depois
de sofrer um infarto a poucos dias do carnaval, o poeta, compositor, diretor artístico e
antologista baiano Waly Salomão escreveu o poema Post-mortem, incluído às
pressas no livro Lábia. Nas linhas finais, Waly, com precavida ironia,
deixava expresso um último desejo, para quando a morte chegasse de fato: Na hora H
(...)/estampada na minha face esteja a legenda:/O que amas de verdade permanece, o resto
é escória.
A morte chegou ontem, aos 59 anos, na Clínica São Vicente, onde Waly,
internado há duas semanas, lutava contra o câncer. O verso, escrito há exatamente cinco
anos, podia bem ser o epitáfio daquela que foi uma das personalidades mais transgressoras
e fascinantes da cultura brasileira.
A alegria de ver a sua geração chegar ao poder
Waly terminou os seus dias ocupando a Secretaria Nacional do Livro, dentro da
estrutura montada por Gilberto Gil na equipe ministerial de Lula. Já trabalhara na esfera
política com Gil, na administração municipal de Salvador nos anos 80, junto com outros
homens de confiança do ministro da Cultura, como Antonio Rizério e Roberto Pinho. Nos
anos 70, quando Gil e Caetano estavam no exílio, foi dos que carregaram e mantiveram
acesa a tocha do tropicalismo, também mantendo a ponte com os poetas concretistas.
Ver a chegada ao poder de sua geração, dentro do projeto petista e tendo
como baliza o afã transformador de Lula, foi motivo de grande realização pessoal e de
euforia. Na véspera do anúncio oficial de sua escolha, Waly disse ao GLOBO:
Hoje existe uma conjunção de fatores que pode fazer o programa
contra a fome e um programa do livro convergirem. O livro é uma alavanca de ascensão
social. Uma política de fome do livro tem que se estabelecer. Para mim
também o livro proporcionou ascensão social, se é que se pode chamar de ascensão minha
trajetória. Em Jequié, na caatinga, eu devorava livros como traças, discutia Tolstói
como se discute novela.
A convergência de origem humilde, interesse voraz pela erudição e forte
ancestralidade (Waly era filho de sírio muçulmano com uma baiana) formou a sua matriz
poética, às vezes mais forte no seu falar cotidiano e nos seus arroubos festivos do que
nos seus escritos: Waly imprimia às palavras um ritmo de transe, de incorporação de
entidades, um tom demiúrgico, que fizeram dele, de alguma forma, herdeiro da tradição
de Glauber Rocha (que, por sinal, nasceu em Vitória da Conquista, não muito longe da
Jequié natal de Waly). Não teria sido à toa que Waly interpretou o poeta Gregório de
Mattos num filme de Ana Carolina sobre o poeta barroco baiano.
Na amálgama que fazia dos extratos de realidade, de conversas de rua, da
tradição atávica e de referências literárias, a alta cultura convivia com as tiradas
intuitivas dos analfabeto geniais, numa trama universal, que, certa vez, o
poeta Alexei Bueno classificou de pré-babélica. Na semana de sua posse como
secretário, em Brasília, numa entrevista ao GLOBO, ele estendeu-se sobre estes
paradoxos:
A maioria das pessoas analfabetas com quem converso tem faro,
intuições, inteligência, e já percebo que pessoas de classe média que passam pela
universidade são freqüentemente tacanhas, sedimentadas em esquemas já prévios, não
aprenderam o mínimo, que é pensar por si. Copiam esquemas importados e por isso são
tristes, sofrem de complexos de inferioridade cultural. A superação da língua, a fuga
à gramática, cria caminhos interessantes. Quando falo com você, penso na gramática.
Quem não pensa às vezes atinge logo o cerne mais complexo.
Ele se autodefinia gigolô de bibelôs e surrupiador de
souvenirs, mas rejeitava e transcendia o rótulo de marginal, e o fazia com razão:
não há rótulo amplo o bastante para caber no corpo de idéias e expressões que
caracterizavam o seu discurso.
Apesar disso, infelizmente, ele era mais lembrado como letrista de algumas
canções e associado às suas bravatas e às suas excentricidades do que por sua original
e ousada produção poética.
Militante no início dos anos 60 (integrou o CPC baiano), foi figura-chave,
posteriormente, no cenário pós-tropicalista. Diretor de shows nos anos 70, foi parceiro
de Caetano, Gil e Jards Macalé, autor de letras de sucessos como Mel (na voz
de Bethânia) e clássicos como Vapor barato (lançada por Gal, que estreou no
show Fa-tal, dirigido por ele). Amigo inseparável de Torquato Neto, lançou
com ele a antológica revista Navilouca nos anos do desbunde, e, após a morte
do parceiro, organizou a sua obra, reunida em Os últimos dias de Paupéria.
Versos no Carandiru em plena década de 70
No auge do tropicalismo, em 1970, período em que morou no mesmo apartamento
de Gal Costa em São Paulo, Waly Salomão foi preso com um toco de maconha. Numa cela do
Carandiru, no Pavilhão 2, rabiscou os poemas do que seria seu livro de estréia, Me
segura queu vou dar um troço, que, lançado no Rio no ano seguinte, teve
projeto gráfico do amigo Hélio Oiticica. De quem Waly escreveu a biografia (Qual
é o parangolé) e organizou a obra póstuma.
Mais tarde, Waly que nos últimos anos esteve à frente do movimento
Afroreggae e de várias iniciativas de inclusão social através da arte diria
jocosamente que com esses poemas carcerários teria sido precursor do hip hop.
Talvez com o silêncio provocado por sua ausência o Brasil possa examinar,
com maior atenção, o que Waly nos legou não apenas em seus escritos, mas na vasta obra
que a sua oralidade esfuziante e incansável deixou impressa nas memórias mais atentas.
Waly, cremado na manhã de hoje no Cemitério do Caju, deixa mulher e dois
filhos.
(© O Globo On Line)