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Na biografia "Pra Mim Chega", Toninho Vaz toca em assuntos delicados para mostrar personalidade pouco conhecida RONALDO EVANGELISTA "Pra mim, chega." Foi uma das últimas coisas escritas pelo letrista, poeta e jornalista Torquato Neto, em seu último texto, de despedida, na noite de seu suicídio, mesma noite em que comemorava seus 28 anos. Dessa noite, em 1972, até hoje, Torquato só fez tornar-se cada vez mais uma espécie de mito. Mito torto, triste, genial e de tristeza impenetrável. "Pra Mim Chega" é também o nome de biografia recém-lançada do escritor, realizada pelo curitibano Toninho Vaz, 57, que em 2002 estreou no formato escrevendo "O Bandido que Sabia Latim", biografia de Paulo Leminski. Em sua nova recontagem da vida de Torquato, Vaz tocou em assuntos delicados, tendo uma personagem principal complexa, profunda e de personalidade pouco conhecida em sua totalidade. O poeta é geralmente citado como tímido, reservado, introspectivo, melancólico. A biografia revela uma personalidade diferente: abrangente, expansiva. Melancólica, sim. Mas também radical, anarquista, incansável, cheia de excessos e paixão pela vida. Pessoa tão grande que é, um levantamento da história da vida de Torquato não poderia acontecer sem percalços. Um detalhe surgido na apuração de sua biografia mostrou-se delicado, mas revelador. Nana Caymmi, em entrevista, lembrando uma das primeiras tentativas de suicídio do poeta, comentou: "Pra mim, ficou claro que era uma paixão pelo Caetano. Todos ali falavam disso". Caetano Veloso, entrevistado pelo autor da biografia, foi categórico. "Se você me perguntar se nós éramos namorados, amantes ou coisa assim, eu posso garantir: não!" O autor desconfia que esse tenha
sido um dos motivos para a desaprovação pública à biografia por parte da
viúva de Torquato, Ana Maria Duarte. Originalmente divulgado como projeto da
editora Record, acabou abortado, até ser encampado, com aura de "maldito",
pela Casa Amarela, que publica a revista "Caros Amigos". Com 73 entrevistas,
o livro explica na introdução: Gilberto Gil, Gal Costa, Maria Bethânia se
escusaram de falar sobre ele. Chamado de "ideólogo do movimento tropicalista" por Vaz, Torquato Neto foi talento arrebatador, sensível, louco, inclassificável nos seus interesses. Como letrista -sua faceta mais conhecida-, emprestou palavras para melodias de Edu Lobo ("Pra Dizer Adeus"), Gilberto Gil ("Louvação"), Caetano Veloso ("Nenhuma Dor") e parceria póstuma com Sérgio Brito, gravada pelos Titãs ("Go Back"), entre dezenas de outras. Como jornalista, escreveu em periódicos como "Correio da Manhã" e "Última Hora", onde manteve por muitos anos coluna de intensa agitação cultural. Como poeta, teve obra esparsa, rascunhada, apenas organizada postumamente. Há pouco tempo, a editora Rocco organizou essencial trabalho de compilação de toda a obra escrita de Torquato, nos dois volumes de "Torquatália" ("Do Lado de Dentro" e "Geléia Geral"), com letras, poesias, colunas jornalísticas, roteiros, cartas, anotações, idéias e um diário de certo período em que esteve internado -voluntariamente, diga-se- em um hospital psiquiátrico carioca. Período lembrado em detalhes neste "Pra Mim Chega", entre outras histórias de solidão, paixões e inconformismo, inclusive do seu período pós-tropicalista, já cabeludo e interessado em cinema e drogas, com lembranças surpreendentes de relações com Glauber Rocha, Zé Celso, Hélio Oiticica. Tudo muito natural para o poeta que escreveu que um poeta não se faz com versos: "É o risco, é estar sempre a perigo, sem medo, é inventar o perigo e estar sempre recriando dificuldades pelo menos maiores, é destruir a linguagem e explodir com ela". Pra Mim Chega (© Folha de S. Paulo) Pronome pessoal e intransferível Grande nome da Tropicália, o poeta suicida Torquato Neto ganha biografia não autorizada pela viúva João Bernardo Caldeira Poeta errante, marginal e eloqüente, Torquato Neto encerrou sua trajetória fulminante ao suicidar-se com apenas 28 anos. Sua obra completa foi reunida recentemente e lançada nos dois volumes do livro Torquatália (Rocco), organizado pelo jornalista Paulo Roberto Pires. A história de vida, no entanto, permanecia inédita. A biografia Pra mim, chega (Casa Amarela), do jornalista Toninho Vaz - que será lançada hoje, na Livraria da Travessa, em Ipanema, às 20h, com direito a leitura de poemas -, preenche uma lacuna 33 anos após a sua morte. O percurso do poeta e autor de letras musicadas por Caetano Veloso (Mamãe Coragem e Minha namorada), Gilberto Gil (Louvação, Geléia geral), Jards Macalé (Let's play that), Edu Lobo (Lua nova, Pra dizer adeus) e João Bosco (Fique sabendo) vai finalmente ser contado. Autor da biografia Paulo Leminski - O bandido que sabia latim (Record), Toninho Vaz, curitibano de 57 anos, mais uma vez pesquisou a vida de um poeta ímpar e polêmico. Ele diz que procurou contar a história de Torquato sem ocultar nada, vasculhando gaveta por gaveta. Pretendia mostrar a importância de Torquato para a cultura brasileira e também tentar responder a uma pergunta jamais respondida: o que levou o poeta - que deixou família em Teresina sonhando tornar-se diplomata, mas acabou ajudando a fundar a Tropicália - a desistir de viver? - Quando comecei a fazer a biografia, as pessoas me perguntavam: como foi a morte de Torquato e a divisão com os tropicalistas? Quando ele se separou do movimento, perdeu amigos, parceiros e intérpretes. Depois se isolou, ficou deprimido e se matou - conta o jornalista. Retratando todos os ângulos, como a condição bissexual de Torquato, Toninho tenta responder à questão recorrendo ao depoimento da cantora Nana Caymmi, que comenta no livro uma tentativa frustrada de suicídio do poeta: ''Ficamos todos preocupados, pois o estado de saúde dele era grave. Para mim, ficou claro que era uma paixão pelo Caetano. Todos ali falavam disso''. O livro também traz declarações de Aderbal, companheiro de Torquato, no qual ele diz ter flagrado os dois juntos e ainda que o rompimento se deu por uma decisão de Dedé Gadelha, então esposa de Caetano. Também consultado por Toninho, o cantor baiano negou tudo: ''Se você perguntar se nós éramos namorados, amantes ou coisa assim, eu posso garantir: não!''. A narrativa de Pra mim, chega mostra também que Torquato sempre teve uma tendência para a auto-destruição, pois bebia muito e tomava calmantes em seus últimos anos. Conversas sobre suicídio com amigos eram recorrentes ao longo de sua vida. O biógrafo revela que, quando internado no Hospital Odilon Galotti, no Engenho de Dentro, no Rio, o poeta foi diagnosticado ''extra-oficialmente'' como esquizofrênico, o que lhe daria uma propensão ainda maior para a depressão. Talvez pela presença de detalhes tão delicados na vida de Torquato, Dedé Gadelha, Gal Costa, Maria Bethânia, Waly Salomão (morto em 2003) e Gilberto Gil se recusaram a dar depoimento sobre o amigo. A viúva do poeta, Ana Maria Duarte (com quem Torquato teve um filho, Thiago), não autorizou a publicação da biografia quando contactada pela editora que estava a cargo do projeto, a Record, que desistiu de levá-lo à frente. Toninho sabe que Ana poderá entrar na Justiça para mandar recolher os exemplares. - Ela me criticou publicamente dizendo que estou tentando fazer sensacionalismo big brother. Mas qual é o problema de mostrar que ele era homossexual? Além disso, o livro não se prende a isso - defende o jornalista, que fez parte do cenário da contracultura sessentista curitibana. Discussões à parte, Pra mim, chega não se detém por muitas folhas nos casos que suscitam polêmica. As mais de 250 páginas mostram, por exemplo, o começo em Teresina, quando, aos 11 anos, pediu de presente para os pais as obras completas de Shakespeare. Pediria as de Machado de Assis, poucos anos depois, logo se mostrando uma pessoa culta e, como a maioria dos grandes autores, completamente inapto para ''as matemáticas''. (© JB Online) Comprometido com a vida Ainda estudante em Salvador, para onde foi com 16 anos, Torquato Neto conheceu gente como Glauber Rocha, com quem trabalharia na função de assistente no primeiro filme do cineasta, Barravento. Muitos anos depois, já como titular da coluna Geléia Geral, do extinto jornal Última Hora - onde firmou o bordão ''alô, idiotas'' -, brigaria feio com a turma do Cinema Novo, indo contra a postura do movimento de receber dinheiro do governo e criticá-lo simultaneamente. Anos antes, no Jornal dos Sports, criara polêmica ao demolir o último disco do ícone Ataulfo Alves. Suas críticas diretas e sinceras na imprensa não poupavam amigos, e ele chegou a perder alguns. Foi assim com Geraldo Vandré, com quem chegou a fazer uma música, junto com Gil (Rancho da rosa encarnada). Torquato comprou briga quando Vandré se enfureceu com Caetano por este querer homenagear Roberto Carlos no lendário programa televisivo O fino da bossa, de Elis Regina e Jair Rodrigues. O poeta classificou a atitude de Vandré de demagógica, já que Torquato abominava a separação que então existia entre MPB e iê-iê-iê. O poeta não tocava nenhum instrumento musical, mas era elogiado por sua precisão ao escrever versos tão perfeitamente musicáveis. Foi dele inclusive a idéia de realizar um disco coletivo do tropicalismo, o lendário Panis et circenses (Torquato é um dos presentes na capa do LP), de 1968. A biografia Pra mim, chega conta como nasceram algumas de suas letras mais conhecidas, que aos poucos o tiraram do anonimato e o transformaram em figura célebre. Como militante estudantil, Torquato também não se manteve calado. Curiosamente, no dia do golpe militar de 64, o poeta dormia na sede da UNE, na Praia do Flamengo. Foi acordado pouco antes de o edifício ser incendiado. Apesar de curta, sua vida foi repleta de fatos marcantes. Seus versos retratavam a extensão dessa intensidade, conforme descrição de Paulo Leminski: ''Poeta das elipses desconcertantes, dos inesperados curto-circuitos, mestre da sintaxe descontínua, que caracteriza a modernidade''. Toninho Vaz destaca que a militância artística de Torquato se sobrepõe inclusive ao seu legado escrito. Ele jamais lançou um livro em vida. Os últimos dias de Paupéria, que reuniu seus poemas, foi um lançamento póstumo, editado pela viúva e por amigos. Alimentado pela escassez de informações e de textos, o mito, no entanto, não pára de crescer: - Na verdade, Torquato não possui uma obra. E não há demérito nisso. Ele era de uma cultura, coragem e lucidez que o tornaram uma das figuras mais carismáticas entre os tropicalistas. Não sou eu apenas quem diz isso: o escritor Augusto de Campos também não considera que exista uma obra. Torquato, aliás, não estava preocupado com isso, estava muito mais ocupado em viver. Isso me deixa mais apaixonado ainda por meu personagem. (© JB Online) |
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