|
A
cangaceira Sila (1919-2005)
e Daniel Lins,
psicanalista, sociólogo e psicólogo: livro escrito escrito a dois |
A memória da juventude no
cangaço. O balanço de uma vida. Sila, comadre de Lampião e Maria Bonita,
contou sua história ao filósofo Daniel Lins
Eleuda de Carvalho
da Redação
A mulher alta e
elegante acomodou-se na cadeira de balanço. Pediu para fechar os olhos e
abriu o coração. Despejou, por dias a fio, nos ouvidos atentos do
confidente, o rosário de sua história. Uma epopéia de sangue, morte, coragem
e sobrevivência na caatinga áspera e empedrada que cruza as fronteiras do
Nordeste, a terra onde reinou, um dia, o bando de Lampião e Maria Bonita. A
narrativa, pontuada pelo filósofo, sociólogo e psicanalista Daniel Lins,
resultou no livro Sila, uma cangaceira no divã, que será
lançado no próximo dia 7, no Teatro Boca Rica, com exibição de vídeos e
exposições temáticas.
Ilda Ribeiro de Souza nasceu no dia
26 de outubro de 1919 na localidade de Poço Redondo, Sergipe. Viveu dois
anos no cangaço, ao lado de Zé Sereno, com quem teve quatro filhos. Durante
muitos anos, já em São Paulo, Sila - como era chamada desde a infância -
trabalhou de costureira na TV Bandeirantes (e fez até figuração, na novela
''Os Imigrantes'', da emissora), costurou roupas para as dançarinas do
Chacrinha, foi camareira das atrizes Regina Duarte e Fernanda Montenegro.
Desde as filmagens da minissérie Lampião, da Globo, anos 80,
que a fez regressar ao palco de sua tragédia, Sila começou a viajar, dar
palestras e resgatar a epopéia do cangaço, que ela viveu na carne.
Sila morreu em 15 de fevereiro deste
ano, sem ver o livro pronto. Mas ouviu-o, no leito do hospital. ''Confesso,
não tive coragem de ver aquela mulher linda, cheirosa, elegante, forte,
morrendo. Maria da Glória Feitosa Freitas, uma aluna minha, foi lá e leu o
livro todinho pra ela'', conta, emocionado, Daniel Lins. ''Este é um livro
escrito por nós dois. Começamos no ano 2000 e terminamos em 2002. Ela me
obrigou a entrar na história dela'', conta Daniel Lins, pernambucano de
Canhotinho, casado com a francesa Sylvie Delacours, pai de Fabien e Térence.
Lins conheceu a cangaceira Sila há dez anos, quando seus estudos e pesquisas
sobre o tema amiudaram.
Parte substancial do livro foi feita
durante os três meses em que a cangaceira viveu com os Lins. Ela mesma deu
fé na cadeira de balanço, fez dela o divã. Disse ao interlocutor: ''Eu
queria que você não me visse... Posso fechar os olhos? Ela fechava os olhos
e ia embora'', relembra Daniel. ''Ela transformou a coisa numa relação
intimista, mas guardando a devida distância''.
O livro está organizado em duas
partes. A primeira, diz Lins, é ''muito intimista. Ela vai falar de coisas
que nunca falou antes''. A segunda parte é um ''abecedário'', uma das formas
poéticas populares mais conhecidas dos folhetos e cantorias, na qual se
cantam temas iniciados pelas letras do alfabeto. Algumas escolhidas por Sila
foram descobertas recentes, da convivência com a família de intelectuais.
''Utopia. Ela achava linda, esta palavra. Outra que ela gostava muito era
parênteses''.
Durante a estada, Sila, setentã,
viveu um derradeiro amor. ''Um jovem, que ficará anônimo, me telefonou. O
sonho dele era conhecer uma cangaceira. E aí começou o inferno, esta mulher
a tremer de paixão. O menino sumiu... Ela não admitia ser infeliz. Me dizia,
infelicidade é coisa de gente preguiçosa''. As conversas no divã improvisado
eram costuradas por música. Uma, virou obsessão de Sila, instigava seus
sentimentos eróticos. ''Escutava direto L' Aventura, de Renato Russo, dia e
noite, da gente ficar louco! Um dia, ela ouviu 22 vezes seguidas''. Também
gostou de ouvir Lobão, e se emocionou deveras com a cantora lírica Maria
Callas. Criou intimidades, lembra Daniel Lins: ''Bota aí a música da Maria,
a 3!'' - era a ária da ópera Norma, de Bellini.
Nunca uma mulher mansa. ''Ela nos
dava ordens. Esta casa ficou uma doideira'', ri-se o anfitrião. ''Ela não
pedia. Dava ordens. Cangaceiro uma vez, cangaceiro pra sempre''. Senhora
luxenta. ''Todo dia tinha que ter um prato diferente, e francês! Mas queria
também feijão. Ela impôs o feijão aqui em casa. Dizia pra mim, venha cá -
olha o dedo - que história é essa de não comer feijão?''. Dava falta de
outro ingrediente familiar. ''Gente, não tem uma farinhazinha aí não? Ô,
povo ingrato!''.
Daniel Lins extravasa paixão quando
relembra a amiga. Uma mulher corajosa, elegante, consciente de sua
importância na história do país, que manteve até o final da vida os códigos
de ética aprendidos no sertão e amolados no cangaço. ''É ótimo visitar as
pessoas, sobretudo quando se tem uma casa para voltar. Voltar pra nossa casa
é o que há de melhor'', dizia Sila. Por isso, partiu.
SERVIÇO
Sila, uma cangaceira no divã - Ilda Ribeiro de Souza (Sila) e
Daniel Lins. Edição do Laboratório de Estudos e Pesquisas da Subjetividade
da UFC em parceria com o projeto Boca Rica Nômade. Preço do livro: R$ 20.
Inf.: 3219.1323 ou 3267.3749.
(©
NoOlhar.com.br)
Aguçando a memória
A espera, a fuga, a guerra. Sila leva a
memória por terremo fértil de lembranças captadas em pleno discursar de
sentimentos
|
|
SOBRE Lampião:
‘‘mataram um homem bom’’ (Banco de dados)
|
O livro Sila, uma cangaceira
no divã, as memórias de Ilda Ribeiro de Souza contadas a Daniel
Lins, traz na segunda parte um abecedário, tão conhecido dos folheteiros e
cantadores de viola do Nordeste, e cuja origem remonta à poesia medieval,
tanto religiosa quanto profana. Leia, a seguir, trechos que falam, mais
diretamente, das lembranças da vida no cangaço e do apreço à figura
legendária e épica de Virgulino Ferreira, o Lampião.
ESPERAR
''Passei minha vida esperando. Não
me pergunte o quê, pois não sei. Só sei que esperei e espero ainda. Sei que
esperar não é coisa de pessoa valente, corajosa. A vida é assim. No cangaço,
se você não esperar, vai fazer o quê? Quando entrei no cangaço, em 1936,
como já disse, era a pior época. A gente só esperava o fim. E o fim não era
medido, controlado. O cangaço não era um filme, era uma vida com tudo o que
tinha de mais cruel. A gente sabia que o fim era o nosso destino; mas, mesmo
esperando o pior, espera-se também a vida. Cangaceiro ama a vida, a
natureza, a amizade, a família. A gente era uma bela família. Com mimos e
brigas de uma família normal''.
''O pessoal esquece o tempo todo
(e você sabe disso, você não esqueceu) de que o cangaço era um movimento
essencialmente jovem. Tinha cangaceiro com dez, onze anos de idade. Era uma
coisa de adolescentes, sobretudo no começo dos anos 20, mas depois também,
inclusive na minha época. Que idade tinha Maria Bonita? Que idade tinham
Dadá, Lídia, Otília, Dulce, eu?'.
''Sempre esperei e espero ainda. Não
confundo, porém, esperar com esperança. Não sei explicar, mas pra mim não é
a mesma coisa. Quando a gente espera, a gente conta com a gente. Quando tem
esperança, conta com os outros. Contar com os outros, que lástima! Quem tem
esperança aguarda o futuro. Sempre inventei o presente para não morrer
agarrada ao passado nem sempre risonho''.
FUGIR
''Boa parte de minha vida foi só
de fuga. Fugia na caatinga, fugia do 'amor' de Zé Sereno... Minha vida foi
marcada pela fuga. Até hoje fujo muito, mas é outra coisa. Fujo da solidão,
fujo da depressão, fujo da saudade... Fujo do pensamento. Prefiro fugir ao
que tenho vivido nos últimos anos, para não constatar minha infelicidade.
Fugir da velhice. Envelhecer é coisa grave. Séria. Que ninguém fale do
envelhecimento dos outros com leviandade. Nada de 'melhor idade'!
Hipocrisia! Envelhecer é fugir o tempo todo: de espelho, do olhar de
desprezo do outro, do abandono inesperado daqueles que mais a gente ama ou
acreditava ser por eles amada...'.
GUERRA
''É a coisa pior do mundo. A gente
fala da guerra do cangaço. Era cruel mas, como disse, era um movimento
jovem, com seus sonhos e brincadeiras, sobretudo nos primeiros anos. Às
vezes as pessoas me perguntavam como dava tempo no cangaço, nas persigas,
para continuar vaidosa, se vestir bem, se pintar, se enfeitar. O cangaço sem
moda não existe. Você foi o primeiro a escrever sobre a moda no cangaço.
Você disse outro nome... Como é mesmo? foi no jornal O POVO,
de Fortaleza, que apareceu faz anos sua reportagem: 'A estética do cangaço',
é isso; depois todo mundo começou a falar''.
''Imagine Maria sem vaidade. Éramos
vaidosas, éramos jovens, gostávamos de espelho. Não se pode esquecer:
vivíamos cercadas de homens, alguns bonitos, outros não, mas eram homens
carinhosos, brincalhões, amigos. Acho que nunca conheci carinho, amizade e
admiração tão grandes como sentia por Lampião. Quando ele morreu, quase
enloqueci. Era como tivesse outra vez perdido meu pai e minha mãe. Ver Maria
e Lampião mortos, assim, cabeças cortadas, jogados num monturo, que
selvageria! Mataram um homem bom. Mataram uma mulher mimada, às vezes, mas
maravilhosa''.
(©
NoOlhar.com.br)
O ABC de Sila
Na apresentação de Sila, uma cangaceira no divã, Daniel
Lins escreve: ''Nem anjo nem diabo, nem musa nem simulacro, nem heroína nem
santa, Sila é o que é - um ser geográfico que não escreve a história, mas
experimenta a vida''. E Sila saboreia conosco os fragmentos de sua
existência, pedaços bons, pedaços ruins. As brincadeiras de menina, a
orfandade aos 10 anos, a escola - que ela chamou ''casa dos 7 umbuzeiros'',
o medo das volantes (a polícia que caçava os cangaceiros), um namorado
chamado Ulisses, o perfume Royal Briar.
E também o ingresso no cangaço, pra ser mulher de Zé Sereno, os respingos do
cérebro de Enedina, que morreu do lado dela naquela manhã de 28 de julho de
1938, na grota de Angicos. ''Eu tinha a impressão de flutuar! Não pensava na
morte. Não pensava na vida. Não tinha medo''. Confessa: ''Minha cabeça está
entupida de coisas... Estou sonhando com o agora. Meu sonho é ser livre, ter
meu lugar, poder viajar, não me deixar morrer em silêncio. Gosto de falar
para os jovens''. Na segunda parte do livro, Sila escolhe palavras e com
elas borda lembranças, em ''Abecedário Nômade: A Paixão segundo Sila''.
A de amor. ''Passei muito tempo para entender essa história de amor. Não
acredito no amor. O amor não existe, agora, a paixão... Essa é medonha!'',
diz, saboreando cada sílaba. B, pra ela, lembra ''o coronel Bezerra, que
comandou a chacina em Angicos. Ainda hoje choro''. Com a letra C, ela
costurou casamento e cangaço. D é de Deus, que ''é tudo''. Com a letra E,
Sila aprendeu a esperar. ''Passei minha vida esperando. Não me pergunte o
quê''. E com F, o oposto disto, fugir. ''Fujo da saudade''.
G lembrou-lhe a guerra. H, o homem. ''Acredito mais nos homens do que no
amor''. I, de ingratidão, ''arma dos fracos. Tem gente que nunca dá nada.
Pensa que dar é perder. Os cangaceiros foram vítimas da ingratidão, da
traição. Pedro de Cândido, coiteiro de Lampião e de seu bando, traiu a todos
e pagou com ingratidão a amizade e a confiança''. Jota é de justiça,
''palavra linda'' e em falta, pontua. ''O pobre nunca decide o que é justo,
a ele cabe obedecer a lei. Lampião entrou no cangaço porque se sentiu
injustiçado. Você sabe o que é perder um pai, assassinado pelas balas da
polícia, muitas vezes a mando de poderosos?''. L, de Lampião, o líder. M:
morte. A do marido, Zé Sereno, a dos filhos Ivo e Wilson. A letra seguinte
sugeriu nascimento, ela grávida em 1937, no meio do fogo, fugindo com a
volante do tenente José Rufino nos calcanhares. Numa gruta em Canindé, na
divisa entre Sergipe e Alagoas, pariu o menino João do Mato, afilhado de
Maria Bonita e Lampião. O menino, como todos os nascidos no cangaço, foi
dado a uma família amiga pra criar. Muitos anos depois, quando Sila voltou
ao Canindé, soube que o menino tinha morrido ainda criança. Sila tem uma
filha, Gilaene.
A cangaceira garimpa palavras, Orgulho, Paixão... Solidão: ''A solidão é de
cortar de punhal'', desenha a imagem. Saudades de Zé Sereno: ''Hoje eu digo,
é melhor um marido chato do que viver sozinha''. Utopia, Viagem, Xodó.
Termina seu abecê com o Z, de Zelar. ''Zelar pela vida''. Pra fechar a
lição. (EdC)
(©
NoOlhar.com.br)
O
Nordestern do cangaço
|
|
JORNALISTA Rosário Caetano
organizou livro sobre o cangaço no cinema nacional(Banco de dados)
|
Quando Lima Barreto, em 1953, lançou sua obra definitiva, O
Cangaceiro, longa premiado como melhor filme de aventura no Festival
de Cannes, o filme mais visto da história do cinema brasileiro, não sabia
que se tornaria um paradigma. Barreto não criou o gênero ''nordestern'', mas
serviu de inspiração para gerações de cineastas fascinados pelo duelo entre
cangaceiros e polícia. ''Pela definição de Salvyano Cavalcanti de Paiva,
pesquisador potiguar-carioca, que criou o termo, nordestern é o tipo de
filme em que há a oposição entre os cangaceiros e os volantes. É como nosso
western. Os filmes de Glauber Rocha, apesar de tratar do tema do cangaço,
não são nordestern'', explica a jornalista Maria do Rosário Caetano.
É desse gênero que trata Cangaço - O Nordestern no Cinema Brasileiro,
organizado por Rosário, que será lançado semana que vem durante o Festival
Nacional de Cinema do Ceará (Cine-CE) que começa na sexta-feira, 3. ''A
idéia surgiu quando eu entrevistava o Jean Claude Bernardet, há um ano e ele
me contou que havia um texto inédito de Lucila Ribeiro Bernardet e Francisco
Ramalho Jr. no qual eles analisavam os filmes de cangaço dos anos 60 e 70. E
o material (Cangaço - Da Vontade de se Sentir Enquadrado) era
inédito. Pensei na hora que precisava torná-lo público'', conta.
Com a ajuda da Cinemateca Brasileira, em cuja biblioteca o texto estava
guardado, a jornalista pôde encontrar o material e dar início ao projeto.
''Em seguida, logo que decidi contemplar o assunto em um livro, lembrei-me
do texto que Ruy Guerra havia escrito em 1993, no qual relembra o dia em que
conheceu O Homem Que Matou Corisco, 'Coronel Rufino'. Mas
ainda era preciso desenvolver outros temas, como a história de Benjamim
Abrahão, o único a filmar o bando de Lampião, cujo material foi confiscado
pelo governo Vargas e do qual hoje só restam apenas 15 minutos de registro.
Para isso, juntaram-se ao projeto José Umberto Dias (Benjamim Abrahão -
O Homem Que Filmou Lampião) Walnice Nogueira Galvão (Metamorfoses
do Sertão), Luiz Felipe Miranda (Cinema e Cangaço - História),
Alberto Freire (Remake de O Cangaceiro: Nova Versão, Velhas Leituras),
Marcelo Dídimo (Baile Perfumado, O Cangaço Revisitado) e Luiz
Zanin Oricchio (O Cangaceiro Paradoxal - Corisco em 'Deus e o Diabo na
Terra do Sol').
''Há mais de 50 filmes de cangaço, desde os mudos, os clássicos, os que se
aproveitam deste rico filão e levam o tema para a comédia, como O
Lamparina e Pedro Bó, O Caçador de Cangaceiros, e até mesmo as
pornochanchadas, como A Ilha das Cangaceiras Virgens'', conta
Rosário, que levantou todos esses títulos e os lista no fim do livro.
''Alguns são exatamente sobre cangaço, outros o têm como tema secundário ou
só como citação'', completa. (da Agência Estado)
(©
NoOlhar.com.br) |