Dirigido e concebido pelo artista, que também dança
nele, espetáculo aumenta chances de criar arte erudita a partir do
popular
Crítica Helena Katz
A dança não existia na vida de Nóbrega até os 19 anos, e a forma como adentrou ajuda a entender o que sucede hoje, 32 anos e 21 espetáculos depois da estréia de Bandeira do Divino (1976). Em entrevista ao Estado, contou que a dança se deu como uma ''comunhão mística'', pois os Mateus, os caboclinhos e os passistas que ia conhecendo produziam uma compreensão direta no seu corpo, que ele não sabia direito explicar: ''Aqueles passos me colocavam dentro de uma expressão que roçava uma língua, e eu sabia que precisava ampliar aquelas informações no meu corpo.'' A ampliação deu-se com a vinda para São Paulo, onde encontrou o que chama de ''conhecimentos patrimoniais do mundo'': os ensinamentos de Klauss Vianna, de Eugênio Barba, de Peter Brook, o teatro de Bali, Pina Bausch, o khatakali, dentre alguns outros.
Nas outras culturas, Nóbrega segue Barba e busca o que há de semelhante nos princípios e de diferente nas formas. Criou Reino do Meio-Dia, em 1989 e, no ano seguinte, Figural. De lá para cá, a dança continuou presente nos seus espetáculos, mas num papel subordinado à música e bastante discreto. Passo restabelece a primazia da dança na sua produção, mas faz mais do que isso. Passo é uma proposta de dança brasileira que atualiza a possibilidade de uma dança armorial. Iniciado em 1970, no Recife, por Ariano Suassuna em colaboração com artistas do Nordeste, o movimento armorial engloba todas as linguagens com o mesmo propósito: fazer uma arte erudita a partir do popular.
Passo pode ser lido nessa perspectiva. Torna-se visível, nas suas danças, uma metodologização de várias misturas. Quem conhece o jeito do Nóbrega dançar, aquela leveza com tintas de picardia que transformou em uma marca, uma quase dança-Tonheta (personagem da cultura popular que explorou nas suas produções), vai reconhecer os seus padrões nos corpos do elenco - o que é absolutamente natural em processos contaminatórios como os que envolvem os bailarinos-aprendizes dessa futura companhia.
Sim, é necessário que esse passo não estanque e se estabeleça, de fato, como uma companhia, pois diz respeito a todos que se importam com a dança que se faz no Brasil. Só a continuidade permitirá que a capoeira possa, de fato, cumprir o papel de aglutinadora de todo um léxico oriundo de tantas outras danças, como se antevê agora. Só a repetição favorecerá a dilatação dos passos vindos das danças populares, para que aquela língua intuída por Nóbrega venha a se transformar em discurso. E só o tempo favorecerá que a preocupação com a instauração dessa dança se irrigue também para a dramaturgia que, por enquanto, ainda não respira as misturas necessárias.
Os dois solos de Nóbrega servem como demarcadores do que ocorre entre eles. O primeiro, que abre o trabalho, apresenta os materiais que darão forma a um mundo por construir nas danças que se seguem. E o que fecha, denso e complexo, como que consolida uma etapa dessa construção no corpo de quem a vem moldando. Essa dança final sinaliza tão claramente os objetivos de Nóbrega que chega a prescindir do Bach que se ouve e a ela se sobrepõe.
Pouco expressivo na agenda midiática das últimas décadas, o trânsito entre a dança popular brasileira e a dança de extração européia vem, felizmente, conquistando um espaço que vem se alargando. E, como tende a ocorrer em circunstâncias como essa, aventureiros sempre se lançam em busca de um quinhão quando um segmento começa a entrar na moda. Face a essa situação, o trabalho de quem milita nele, como Antonio Nóbrega e sua companhia, a dupla Angelo Madureira e Ana Catarina Vieira ou Maria Paula Costa Rego (Grial), dentre alguns outros, ganha uma importância ainda maior. Afinal, precisamos contar com uma pluralidade de danças brasileiras para dar conta da diversidade cultural na qual vivemos. E, dentre elas, precisa estar presente essa, a ''dança chorada'' da qual Nóbrega fala quando lembra que os músicos de 100 anos atrás pegaram a polca e a articularam de outra forma para fazer nascer o choro. No elenco, Maria Eugênia Almeida, Marina Abib Candusso e Luciano Fagundes já anunciam tal possibilidade.