José Teles
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Se houve um músico zen no Brasil, ele se chamava Francisco Soares Araújo, ou melhor, Canhoto da Paraíba, falecido quinta e sepultado ontem, no Cemitério Campo Santo São José, na PE-15, em Arthur Lundgren I, em Paulista, onde morava. Conforme comentou o violonista Cláudio Almeida, no dia do falecimento do músico, “Canhoto era um gênio e ao mesmo tempo um iluminado. Nunca ouvi dele nada contra alguém, nem se queixar do estado dele”. Isso foi confirmado pelo próprio violonista. Alguns meses depois de sofrer uma isquemia (em 1998), que o deixou com o lado esquerdo do corpo paralisado, Canhoto, em uma entrevista, concedida ao JC, em sua casa, em Maranguape I, comentava sobre a impossibilidade de voltar a dedilhar um violão: “Também eu nunca fui assim de tocar tanto, nunca tive muito tempo. Rafael Rabelo me dizia que passava seis horas por dia praticando. Eu só pegava no violão quando chegava alguém aqui em casa ou quando fazia shows. Mas tô com saudades”.
Canhoto pode não ter sido o mais popular, mas foi um dos mais admirados entre os músicos: “Jacob do Bandolim, num depoimento que tenho gravado, dizia que Canhoto, tanto fazia às três da madrugada, quanto às três da manhã, tocava com a mesma perfeição, não errava nunca. Ele foi o último de uma geração de chorões de ouro. Como violonista desenvolveu uma técnica própria, como compositor uma grande obra. Canhoto é inspiração para todos nós violonistas”. O comentário é do também violonista pernambucano, mas no Rio desde final dos anos 80, Caio Cézar. Por coincidência ele se preparava para entrar em estúdio, a fim de gravar um disco com composições de Canhoto quando soube do seu falecimento: “Montei um trio de câmera especialmente para este projeto. Finalmente ele foi aprovado pela Petrobras, este ano sai o disco e vamos fazer uma turnê tocando o repertório do CD”, conta Caio Cézar, que também é autor de um songbook com a obra de Canhoto: “Consegui levantar 87 músicas dele, mas, de repente, sempre aparecem outras. Ele deve ter bem mais do que isso”.
Quem está tentando patrocínio para publicar o songbook é a produtora carioca Lu Araújo, da Lume Arte, também responsável pela Mostra Internacional de Música de Olinda, a Mimo: “Já tentei com o governo da Paraíba, Funcultura, Chesf e ninguém se interessou. Na programação da Mimo, deste ano, tem uma noite dedicada a Canhoto. É uma pena que ele tenha morrido, queria que ele estivesse lá para assistir”, lastima a produtora. Outro músico, o bandolinista recifense Marcos César diz que Canhoto era como um pai para ele: “Meu pai, que tocava violão de sete cordas no conjunto de Rossini Ferreira, foi muito amigo de Canhoto, que até fez uma música para ele, Valsa para Tozinho”.
SACRISTÃO
Nascido em Princesa Isabel, em 19 de março de 1928, numa família de músicos. Sacristão da paróquia local, Canhoto teve como primeiro instrumento o sino da igreja local, no qual, reza a lenda, uma vez conseguiu executar o frevo Vassourinhas. Mas seu instrumento seria mesmo o violão. Esquerdo (embora escrevesse com a mão direita), ele tocava sem inverter as cordas, o que o levaria a criar uma técnica nova. Depois de cinco anos como violonista da Rádio Tabajara de João Pessoa, em 1958, Canhoto da Paraíba veio para o Recife, contratado pela Rádio Jornal do Commercio (atual Rádio Jornal). No ano seguinte, com chorões recifenses realizou a histórica viagem para o Rio de Janeiro, mais precisamente para Jacarepaguá, onde morava Jacob do Bandolim. A lenda Canhoto da Paraíba começou nos saraus na casa do bandolinista. Um adolescente de 17 anos testemunhou esta visita mememorável (Canhoto foi hóspede de Jacob durante 15 dias). Seu nome: Paulo César Faria, mais tarde conhecido como Paulinho da Viola. Desde então, ele se tornou fã de carteirinha de Canhoto, a quem tratava por Chico Soares. Paulinho da Viola gravou, em 1971, o choro, de sua autoria, Abraçando Chico Soares, e em 1977 fez dupla com Canhoto no Projeto Pixinguinha. Em maio de 1998, quando o violonista sofreu a isquemia, foi Paulinho da Viola quem arregimentou músicos para um concerto beneficente, acontecido no Teatro Guararapes, com renda revertida para pagar as despesas com o tratamento de Canhoto.
Chico Soares nunca foi de pressa. Só gravou o primeiro disco em 1968. O LP Único amor foi lançado pela Rozenblit e tocado com Henrique Annes, na época com 22 anos e estudante de violão clássico: “Aprendi muito com Canhoto. Ele me ensinou muitas de suas composições. Até hoje toco coisas de Canhoto que ninguém toca”, diz Annes. Voltaria a lançar outro álbum só em 1977, Canhoto da Paraíba, o violão brasileiro tocado pelo avesso, saído pela Marcus Pereira. Entre esse e Pisando em brasa, de 1993 (Caju Music), seu derradeiro disco, ele gravou, o hoje muito raro, Fantasia Nordestina II, feito sob patrocínio da empresa Diógenes Andrade.
No dia 2, Cláudio Almeida, a cantora Bia Marinho, Nuca e seu filho Vinicius, foram à casa de Canhoto: “A gente sempre ia no dia 19 de março, aniversário dele. Canhoto teve uma ótima tarde, vendo meu filho tocar. Esta semana, a filha dele ligou dizendo que ele queria que a gente voltasse lá. Canhoto nunca havia feito isso antes. Acho que queria se despedir” diz Nuca, de quem Canhoto foi mestre.Morre Canhoto da Paraíba, expoente do choro nordestino
Músico desenvolveu técnica particular de tocar, foi parceiro de Sivuca e admirado por Paulinho da Viola
Jotabê Medeiros, de O Estado de S. Paulo
SÃO PAULO - Morreu no Recife, na quinta, 24, o violonista paraibano Francisco Soares de Araújo, que ficou célebre com o apelido de Canhoto da Paraíba, um dos expoentes do choro nordestino, admirado pelos mais importantes músicos brasileiros, como Paulinho da Viola e Hermínio Bello de Carvalho. Canhoto teve um enfarte - já tinha tido um derrame há uns 10 anos, o que o forçou a parar de tocar.
Nascido em 19 de maio de 1928, segundo a Enciclopédia Itaú Cultural, Canhoto da Paraíba, como o nome indica, tocava com a mão esquerda. Mas desenvolveu uma técnica particular de execução ao violão, com o instrumento invertido (mas sem inverter as cordas). Além disso, possuía um sentido harmônio e melódico incomuns, motivo que o fez ser admirado por todos os colegas do instrumento. Sacristão, aos 16 anos iniciou a carreira como músico na Rádio Clube, no Recife (PE).
Foi parceiro de Sivuca e Luperce Miranda e de grandes intérpretes do choro, como Rossini Ferreira e Zé do Carmo. Em 1959, esteve no Rio de Janeiro pela primeira vez e conheceu a nata do choro carioca, como Pixinguinha, Jacob do Bandolim, Radamés Gnattali e Paulinho da Viola. Este último se tornou uma espécie de admirador eterno, e sempre que podia incorporava Canhoto em suas turnês. Tocaram juntos no Heineken Concerts e com a Velha Guarda da Portela no Palace, em São Paulo.
Em 1999, saiu o disco Os Bambas do Violão (Kuarup), que trazia Canhoto emparelhado com os maiores do instrumento, como Baden Powell, HenriqueAnnes, Nonato Luís e Rafael Rabelo. O crítico de música Mauro Dias escreveu, no Caderno 2 de O Estado de S.Paulo: "Paulinho da Viola talvez não fosse o mesmo se não houvesse antes dele Cartola e Nelson Cavaquinho e certamente não seria o mesmo se um dia não tivesse ouvido Canhoto da Paraíba".
Memória
Canhoto da Paraíba deu eco nordestino a valsas e choros
Músico morto anteontem marcou por linguagem harmônica
sofisticada e fluência
IRINEU FRANCO PERPETUO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Ele começou tocando sino; o pai quis impor-lhe o clarinete; mas foi
empunhando violão "pelo avesso" que Canhoto da Paraíba, que morreu
anteontem em Paulista (PE), inscreveu seu nome na história da música
brasileira, com valsas e choros de sabor nordestino.
Foram cinco dias em um jipe, em 1959, na companhia de outros quatro músicos, desde Recife, em peregrinação para conhecer Jacob do Bandolim, no Rio de Janeiro.
Ele estava lá para ouvir, mas foi o
que apresentou no sarau, na casa de Jacob, que causou sensação: não
apenas o bandolinista (que disse jamais tê-lo visto errar uma nota), mas
também o maestro Radamés Gnattali e o então adolescente Paulinho da
Viola (que, além de lhe produzir um disco, "O Violão Brasileiro Tocado
Pelo Avesso", e dedicar-lhe uma música, "Abraçando o Chico Soares",
deu-lhe a alcunha "da Paraíba", para diferenciá-lo do violonista Canhoto
da geração anterior, Américo Jacomino) reverenciaram o talento de
Francisco Soares de Araújo.
Estilo lírico
Em vez de se radicar no Sudeste, ele preferiu permanecer na capital pernambucana, onde, paralelamente à atividade de funcionário do Sesi (Serviço Social da Indústria), seguia a destilar um estilo lírico, com linguagem harmônica surpreendente para a época e grande fluência no discurso musical, como atestam suas raras gravações.
Sua data de nascimento, na cidade paraibana de Princesa Isabel, é motivo de controvérsia. Obras de referência mencionam 19 de maio de 1928; é possível encontrar ainda os anos de 1926 e 1927.
De acordo com um artigo sobre o musicista escrito por Maria Luiza Kfouri, há um depoimento do próprio Canhoto da Paraíba esclarecendo que a data certa é 19 de março de 1929, tendo o choro "19 de Março" sido composto por ele para celebrar seu aniversário.
A música começou em casa; o avô era clarinetista na banda da cidade, o pai, violonista, e os nove irmãos se dedicavam a instrumentos diversos.
Como sacristão, Francisco tocava o
sino da igreja local; o pai desejava que ele seguisse a carreira do avô,
mas, na falta de clarinete disponível, foi com o violão paterno que ele
começou sua educação musical -e de maneira bem peculiar.
Violão virado
Quem toca com a mão esquerda normalmente aprende violão invertendo as cordas do instrumento. A exemplo, contudo, dos paulistas Américo Jacomino (1889-1928) e Rogério Guimarães (1900-1980), Canhoto da Paraíba não trocava a posição das cordas, mas a do próprio violão, que ele empunhava virado.
Praticamente autodidata, ele seguiu tocando seu violão virado até 1998, quando um derrame cerebral que lhe paralisou o lado esquerdo do corpo encerrou suas atividades musicais.