Antonio Gonçalves Filho, de O Estado de S. Paulo, e Álvaro Figueiredo, da Agência Estado
SALVADOR - Morreu na tarde deste sábado, 17, a escritora Zélia Gattai. A autora e viúva de Jorge Amado estava internada desde 30 de março após ser submetida à cirurgia para remoção de um pólipo no intestino. Zélia reagiu lentamente, e apresentava desde a madrugada problemas pulmonares, renais e arteriais, que sinalizavam para um quadro de falência múltipla de órgãos, de acordo com avaliação da equipe médica que a assiste desde sexta-feira, quando o quadro, que era crítico, se agravou.
A estréia tardia da escritora paulistana Zélia Gattai, não impediu que sua produção literária crescesse a uma média de um livro a cada dois anos desde 1979. Filha e neta de imigrantes italianos, a acadêmica, memorialista, romancista e fotógrafa estreou aos 63 anos, justamente com um livro que conta a vida de seus antepassados, Anarquistas Graças a Deus (1979), relato da formação da Colônia Cecília, tentativa de criar uma comunidade anarquista em pleno Brasil do século 19. Seu maior êxito até hoje, o livro já vendeu mais de 200 mil exemplares e foi adaptado por Walter George Durst em uma popular série de televisão, com direção de Walter Avancini, e com os atores Ney Latorraca e Débora Duarte no elenco. A minissérie foi exibida pela Rede Globo em 1984.
Nascida em São Paulo em 2 de julho de 1916, Zélia casou-se aos 20 anos com o intelectual Aldo Veiga, militante do Partido Comunista, o que a tornou próxima dos escritores da Semana de 22, especialmente Oswald e Mário de Andrade. Em 1938, seu pai, Ernesto Gattai, foi preso durante o Estado Novo, atiçando a militância política da futura escritora contra o arbítrio getulista. Com Veiga a escritora teve seu primeiro filho, Luís Carlos Veiga, em 1942.
Três anos depois, em 1945, ela conheceu o segundo marido, Jorge Amado, durante o 1º. Congresso de Escritores. Os dois trabalharam no movimento pela anistia dos presos políticos e decidiram morar juntos. Um ano depois, quando Amado foi eleito para a Câmara Federal, o casal mudou-se para o Rio, onde nasceu o filho João Jorge Amado, em 1947. Em 1948, o Partido Comunista foi declarado ilegal, o escritor perdeu seu mandato e o casal partiu para o exílio. Jorge e Zélia viveram na Europa por cinco anos, dois deles em Praga, onde nasceu a filha Paloma, em 1951. Foi nessa época que ela começou a se interessar por fotografia, atividade que renderia, no futuro, a fotobiografia do marido, Reportagem Incompleta, em 1987.
Parte da produção memorialista da escritora, que ocupava a cadeira 23 da Academia Brasileira da Letras - a mesma do marido Jorge Amado -, é dedicada ao período do exílio europeu. Em Jardim de Inverno (1988), seu quarto livro, Zélia reúne lembranças do continente europeu ainda dividido entre leste e oeste. Antes dele, Senhora dona do Baile (1984) retrata esse mundo separado pela cortina de ferro e faz desfilar por suas páginas algumas personalidades históricas do século que passou.
Dois de seus livros contam os 56 anos de convivência com o marido na Bahia, A Casa do Rio Vermelho (1999) e Memorial do Amor (2000). No primeiro, ela relata fatos curiosos sobre os intelectuais amigos que passaram pela famosa casa do casal de escritores no número 33 da rua Alagoinhas, em Salvador, entre eles o poeta Pablo Neruda. Em Memorial do Amor, ela conta a história da casa, desde a compra do terreno (com os direitos de Gabriela, Cravo e Canela, de Amado) até a escolha dos objetos de decoração adquiridos nas inúmeras viagens dos dois.
Um dos livros mais elogiados da escritora foi publicado em 1982. Chama-se Um Chapéu para Viagem Nele, Zélia narra a queda da ditadura de Getúlio Vargas, relembra a luta pela anistia dos presos políticos e conta como foi o processo de redemocratização do País.
Dois de seus livros, Città di Roma (2000) e Códigos de Família (2001), são dedicados a rememorar a formação das famílias Gattai e Amado. No primeiro, Zélia relata a chegada de seus avós italianos ao Brasil no século 19, a bordo do navio que dá título ao livro, Città di Roma. No segundo, Códigos de Família, ela conta histórias divertidas e comoventes de suas duas famílias e decodifica as mensagens dos parentes. Zélia Gattai ainda escreveu livros infantis, como Pipistrelo das Mil Cores (1989), O Segredo da Rua 18 (1991) e Jonas e a Sereia (2000).
(© Estadão)
A escritora Zélia Gattai / Foto Camilla Maia - O Globo
Prêmios e títulos da escritora
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Nascida no dia 2 de julho de 1916, data da independência na Bahia, Zélia é baiana por merecimento. Em 1984, recebeu o título de Cidadã da Cidade do Salvador e, em agosto de 2005, foi nomeada Cidadã Baiana pela Assembléia Legislativa. Também foi agraciada, na França, com o titulo de Cidadã de Honra da Comuna de Mirabeau (1985) e recebeu a Comenda des Arts et des Lettres, do governo francês (1998). Ganhou, ainda, no grau de comendadora, as medalhas da Ordem do Mérito da Bahia (1994) e da Ordem do Infante Dom Henrique (Portugal, 1986). A prefeitura de Taperoá, no interior baiano (região do Baixo Sul), homenageou a escritora ao dar o nome dela à Fundação de Cultura e Turismo, em 2001.
Para a Academia Brasileira de Letras, Zélia Gattai foi eleita em 7 de dezembro de 2001. Era a titular da cadeira de número 23, que pertenceu a Machado de Assis, teve José de Alencar como patrono e depois Jorge Amado como um dos ocupantes mais queridos. No mesmo ano, foi eleita para a Academia de Letras da Bahia e para a Academia Ilheense de Letras. Em 2002, tomou posse nas três. Na ocasião do lançamento do primeiro livro - Anarquistas, Graças a Deus - ganhou o Prêmio Paulista de Revelação Literária de 1979. No ano seguinte, o Prêmio da Associação de Imprensa, além do Prêmio McKeen e do Troféu Dante Alighieri. A Secretaria de Educação do Estado da Bahia concedeu-lhe, ainda, a Medalha Castro Alves, em 1987. Em 1988, recebeu o Troféu Avon, como destaque da área cultural e o Prêmio Destaque do Ano de 1988, pelo livro Jardim de inverno. O livro de memórias Chão de Meninos ganhou o Prêmio Alejandro José Cabassa, da União Brasileira de Escritores, em 1994.
Obras publicadas
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No ano de 1960, o casal Jorge Amado e Zélia Gattai, mudou-se para Salvador, Bahia, e foram morar no bairro do Rio Vermelho, onde oficializaram a união, em 1978, após 33 anos juntos.
Incentivada pelo marido, um ano após a mudança para a Bahia, aos 63 anos, Zélia deu início a carreira de escritora e romancistas. As suas obras são:
Anarquistas graças a Deus - 1979 (memórias)
Um chapéu para viagem - 1982 (memórias)
Senhora dona do baile - 1984 (memórias)
Reportagem incompleta - 1987 (fotobiografia)
Jardim de inverno - 1988 (memórias)
Pipistrelo das mil cores - 1989 (literatura infantil)
O segredo da rua 18 - 1991 (literatura infantil)
Chão de meninos - 1992 (memórias)
Crônica de uma namorada - 1995 (romance)
A casa do Rio vermelho - 1999 (memórias)
Cittá di Roma - 2000 (memórias)
Jonas e a sereia - 2000 (literatura infantil)
Códigos de família - 2001 (memórias)
Jorge Amado um baiano sensual e romântico - 2002 (memórias)
A companheira inseparável de Jorge Amado
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Ela não se importava nenhum pouco de ser conhecida como o romance mais belo de Jorge Amado. Porém, Zélia Gattai Amado, na simplicidade de sua linguagem tornou-se, ao longo da carreira de escritora que abraçou por incentivo da filha Paloma e do marido, a grande guardiã das memórias da família Amado. Ocupou com pompa e direito a cadeira de número 23 da Academia Brasileira de Letras, escreveu histórias para crianças e havia iniciado, há pouco tempo, um romance, mas sua preferência era mesmo registrar as histórias vividas ao lado dos amigos e familiares.
De leitora a amiga, esposa e companheira inseparável teve sua relação com Jorge marcada por cumplicidade e bom-humor. Um dos maiores prazeres era relembrar as peripécias do companheiro. Antes de ser escritora e fotógrafa, a filha de imigrantes italianos reconheceu desde cedo sua vocação de esposa. Aos 20 anos, casou-se com Aldo Veiga, militante e membro do Partido Comunista, com quem teve um filho, Luiz Carlos, nascido na cidade de São Paulo, no ano de 1942.
O casamento com Aldo a aproximou de figuras como Oswald de Andrade, Lasar Segall, Tarsila do Amaral, Mário de Andrade, Rubem Braga e Vinícius de Moraes. Mas essa ainda não era a sua história de contos de fadas. Essa teria início em 1945, quando conheceu Jorge no I Congresso de Escritores. Ela começou a trabalhar com o já conhecido romancista, de quem era leitora assídua, no movimento pela anistia de presos políticos. Poucos meses depois eram um casal e ela passou a fazer a revisão dos originais dos livros dele. A união só foi oficializada, porém, em cerimônia realizada 13 anos depois, em 1958.
Além do amor pelo escritor, Zélia era movida também por sua veia política. Desde menina participava, juntamente com a família, do movimento político-operário, integrado por imigrantes italianos, espanhóis e portugueses. Filha de Angelina Da Col e Ernesto Gattai, aprendeu muito cedo a importância da atuação política.
O pai, um apaixonado por automóveis tendo participado de corridas na cidade de São Paulo, pertencia a um grupo de imigrantes políticos, que chegou ao Brasil no final do século XIX, para fundar a "Colônia Cecília". Essa era uma tentativa de criar uma comunidade anarquista na selva brasileira. A mãe, por sua vez, era de família católica e veio para o Brasil após a abolição da escravatura e trabalhou em plantações de café, também na capital paulista.
No ano de 1938, Ernesto Gattai foi preso pela Polícia Política e Social de São Paulo, durante o Estado Novo. O episódio incentivou Zélia a tornar-se cada vez mais atuante na política. Em 1946, ela apoiou a eleição de Jorge Amado para a Câmara Federal e com ele mudou-se para o Rio de Janeiro, onde deu à luz ao filho João Jorge, no ano seguinte. Um ano depois, por conta de o Partido Comunista ter sido declarado ilegal, a família Amado partiu para o exílio. A partir daí, ao lado do marido, Zélia passou a viver uma grande aventura.
Embarcaram para Paris e decidiram passar pela experiência aproveitando tudo de bom que a França lhes oferecesse. Ela fez cursos de Civilização Francesa, Fonética e Língua Francesa, na Sorbonne. Ou seja, o tempo no exílio foi preenchido com cultura. Além disso, foi nesse período, ainda, que ela e Amado conheceram personalidades como Picasso, Nicolás Guillén, Paul Éluard, Fréderie Curie e Pablo Neruda, de quem, aliás, tornou-se comadre ao dar a ele a filha Paloma para batizar.
Mais íntimos ainda do casal brasileiro foram os filósofos franceses Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre. A aproximação entre eles era tanta que o existencialista Sartre veio ao Brasil, na década de 60 a convite dos amigos. Juntos, visitaram diversas partes do País e os momentos mais significativos dessa viagem foram registrados por Zélia em fotografias. Além das imagens, histórias e muitas lembranças, desde esse encontro em terras brasileiras, Zélia guardava em uma caixinha de jóias um anel com a pedra Jade, que ganhou de Simone de Beauvoir, na partida dela para a França.
Contar detalhes sobre essa história de amizade sempre foi um motivo de emoção para a escritora, que apesar de ter nascido em São Paulo, no dia 2 de julho - coincidentemente a maior data dos festejos cívicos baianos -, ela guardava um amor especial pela Bahia, onde chegou nos anos 60, após morar, de 1950 a 1952 em uma comunidade de escritores na Tchecoslováquia, onde nasceu Paloma.
Ao desembarcar em Salvador, em 1963, o endereço escolhido pelo casal Amado para começar a vida nova foi o número 33 da Rua Alagoinhas, no boêmio bairro do Rio Vermelho. A famosa casa, hoje em processo de transformação no Memorial Jorge Amado, foi, durante muitos anos não só a morada de Jorge e Zélia, mas cenário de valorização dos signos culturais da Bahia e de aconchego. Lá os dois receberam familiares e amigos ilustres. Não foram poucas as pessoas importantes, artistas e autoridades que passaram por ali.
Após o falecimento de Jorge, Zélia passou a ocupar um amplo apartamento no Horto Florestal, mas as lembranças e o coração continuaram na casa da Rua Alagoinhas, onde também foram depositadas as cinzas do seu amado. Bem no jardim, como ele havia pedido, por ser ali seu espaço predileto, no qual passavam, juntos, longas horas. Muito dessa história está contada no livro A Casa do Rio Vermelho, lançado em 1999 - uma coletânea das memórias do casal e da casa mais famosa do bairro.
Até os 63 anos, Zélia tinha a fotografia como principal atividade artística. Chegou a publicar a fotobiografia de Jorge Amado, intitulada Reportagem Incompleta. Pode ter demorado, mas a estréia da escritora Zélia Gattai foi sem comparativos com o livro Anarquistas, Graças a Deus, em 1979, no qual ela relata a vida dos imigrantes italianos em São Paulo, no início do século XX. Para contar essa história, ela se inspirou na trajetória da família, composta por anarquistas defensores de uma sociedade sem leis, sem religião ou propriedade privada, em que mulheres e homens tivessem os mesmos direitos e deveres. Vinte anos depois do lançamento dessa publicação, a obra já contabilizava mais de duzentos mil exemplares vendidos, só no Brasil.
A obra da imortal, considerada uma das mais importantes memoralistas do país, também é composta por romances, infantis e fotobiografia. Alguns ganharam tradução para francês, italiano, espanhol, alemão e russo. Anarquistas, Graças a Deus foi adaptado para uma mini-série pela Rede Globo. Já Um Chapéu para viagem, escrito em 1982, com histórias sobre o fim da Segunda Guerra Mundial, a queda da ditadura Vargas, a anistia dos presos políticos e a redemocratização do país, foi levado ao teatro.