Schneider Carpeggiani
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É ponto pacífico que o sociólogo pernambucano Gilberto Freyre estabeleceu a certidão de nascimento do Brasil, ou ao menos uma das mais aceitas. O ponto chave do seu trabalho foi o exaltar da miscigenação, contrariando a tradição racista do século 19. Mas que questões Freyre poderia responder para uma Europa cada vez menos branca? Este é um dos pontos que norteiam Gilberto Freyre – Social theory in the tropics, escrito a quatro mãos pelo inglês Peter Burke e a brasileira Maria Lucia G. Pallares-Burke (foto à esquerda). O livro – lançado na Inglaterra com selo da Editora Peter Lang de Oxford – está em negociações para uma edição nacional a cargo da Unesp.
“No debate sobre imigração e multiculturalismo, que está tão acalorado tanto na Europa como nos Estados Unidos, nós acreditamos que as idéias de Gilberto Freyre são relevantes. A posição que ele adotou em favor de uma mistura cultural ou hibridismo é mais ou menos uma posição de meio-termo entre aquela dos assimilacionistas de um lado, que querem que os imigrantes abdiquem de suas próprias culturas e se tornem americanos, britânicos, etc, e, de outro, a dos multiculturalistas, que gostariam que cada grupo étnico mantivesse suas próprias tradições. Não se ouve muitas pessoas argumentarem da mesma maneira aqui na Europa, apesar desse tipo de mistura ser a que está acontecendo”, explica Maria Lucia em entrevista para o JC.
Gilberto Freyre – Social theory in the tropics faz parte da coleção The past in the present (O passado no presente), que enfatiza como os intelectuais do passado moldam o presente – e mesmo o futuro. “Os autores dos livros dessa série são encorajados a mostrar a relevância do tópico que estudam para os problemas e as preocupações do nossa era – algo que não é muito difícil de se fazer, como sugerimos antes, no caso de Freyre. Ele foi um historiador, um teórico social, um crítico cultural, etc. No que se refere à história, por exemplo, nós acreditamos que ele foi um dos melhores historiadores culturais de nossa época, em qualquer parte do mundo”, esclarece a autora.
Maria Lucia escreveu um dos livros mais importantes sobre o legado freyriano, a biografia cultural Um vitoriano nos trópicos. “Ambos os livros estão preocupados em colocar as idéias de Freyre no contexto, ou mais exatamente, numa variedade de contextos, tanto cultural quanto político, tanto regional quanto internacional. Os livros tentam também oferecer uma avaliação balanceada de Freyre, criticando-o onde achamos necessário, mas dando-lhe também o devido crédito pelas idéias inovadoras e importantes que elaborou”, pondera a autora.
Enquanto Um vitoriano nos trópicos é uma biografia intelectual que segue Freyre até 1933 – acompanhando-o no caminho sinuoso que trilhou até Casa-grande & senzala –, o novo vai além. Seus capítulos são temáticos e não cronológicos e abordam temas tratados em suas várias obras e passa até por sua produção jornalística. Os autores procuraram discutir ainda a controversa visita de Freyre às colônias portuguesas nos anos 1950, sua teoria do ‘luso-tropicalismo’ e seu controverso apoio ao regime militar. Há ainda espaço para figuras importantes, mas esquecidas na crítica disponível sobre o autor, como o jurista Gláucio Veira, “o mais terrível anti-Gilberto Freyre do mundo inteiro” – nas palavras freyrianas.
“Enquanto o meu Um vitoriano dos trópicos se dirigia especialmente aos leitores que tinham algum conhecimento de Freyre, o de agora dirige-se também a esse mesmo público, mas acrescenta a ele um outro: o que ignora completamente quem foi Freyre, e que, quando acha que o conhece, o confunde com Paulo Freire, o que aqui na Europa é muito comum. Diria que o móvel que está por trás de nosso livro é a crença de que as idéias de Freyre sobre cultura, sociedade e história são muito importantes para serem confinadas a um só país ou uma só disciplina”, esclarece Maria Lucia.
Mestre fazia saber com sabor
Um senso comum em relação ao sociólogo Gilberto Freyre é o seu talento literário, um verdadeiro mestre do saber com sabor. Esse talento, no entanto, pode iludir os pesquisadores. Às vezes é difícil separar memória de ficção. “É necessária muita cautela para não se ler literalmente como narrativa de vida o que não passa, muitas vezes, de ‘ficções da memória’. Não é incomum encontrarmos em estudos sobre Freyre opiniões emitidas por ele sendo apresentadas como fatos consagrados, enganos sendo perpetuados e recordações idealizadas pela nostalgia sendo tomadas como documentação de realidades vividas. O que Freyre diz de si mesmo não pode, muitas vezes, ser tomado literalmente. Mas tem de ser tomado seriamente, já que certos mitos que as pessoas criam sobre si mesmas podem ser muito reveladores de sua personalidade”, explica Maria Lucia.Para o casal de autores, Freyre vivia um contínuo processo de reinvenção de si próprio. “Freyre se encaixa na descrição que ele próprio fez de outras figuras que ele admirava, como Oliveira Lima, ou seja, era um ‘homem-orquestra’, com uma notável variedade de interesses e realizações, que escrevia prosa e poesia, ficção e não-ficção, história e teoria, assim como pintava e participava em política. Ele era também capaz de digerir uma ampla variedade de idéias e informações, era uma espécie de intelectual ‘esponja’, mas, como uma ostra, tinha também o talento de transformar o que ele aprendia de outros em coisa propriamente sua”, explica Mara Lucia.
A autora aponta que o conhecimento de Freyre no exterior é praticamente inexistente. “Os poucos acadêmicos que ouvem o nome de Gilberto Freyre e acham que o conhecem, o confundem com Paulo Freire, como já disse, e até mesmo com Gilberto Gil. Conseqüentemente, o reconhecimento acadêmico de Freyre é muito restrito. Lembrando o comentário de Braudel sobre o historiador polonês Witold Kula – ‘ele é mais brilhante do que eu, mas pouco conhecido porque não tem um alto-falante francês’.”
“A obra de Freyre tem muito a ensinar aos sociólogos, quer estrangeiros ou brasileiros. Em primeiro lugar, sua insistência na dimensão histórica e, em segundo lugar, seu uso de literatura como um modo de acesso às sociedades. Freyre, por exemplo, achava que Marcel Proust e Henry James eram melhores observadores da sociedade do que muitos sociólogos”, conclui Maria Lucia.
Autor finta clichês e pega touro a unha
José Miguel Wisnik dribla obviedades sociológicas para interpretar o futebol no
Brasil em sua vastidão de sentidos
Professor da USP lança "Veneno Remédio - O Futebol e o Brasil", livro em que
analisa as relações entre futebol e cultura
Caio Guatelli/Folha Imagem |
MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
EDITOR DA ILUSTRADA
Com "Veneno Remédio - O Futebol e o Brasil", o professor de literatura da USP, músico e ensaísta José Miguel Wisnik aplica um chapéu nos clichês e preconceitos comumente associados ao esporte mais popular do mundo e parte em direção à meta: interpretá-lo em seus múltiplos significados e sentidos, desde o jogo propriamente dito, com sua gramática e tempo peculiares, aos fortes laços que veio a estreitar com a cultura brasileira, ganhando aqui desenho próprio, mais elíptico e não-linear.
Em 448 páginas, o autor enfrenta uma miríade de temas, personagens e situações, que vai do goleiro ao juiz, de Garrincha a Ronaldo, de Machado de Assis a Pelé, de Macunaíma a Parreira, de Gilberto Freyre à sociologia uspiana, sem esquecer as sugestões de Pier Paolo Pasolini, o cineasta italiano que viu prosa no futebol europeu e poesia no brasileiro.
Wisnik não usa para isso uma teoria geral que emoldure e prenda a bola num quadro de uma perspectiva só. Joga, como diz na entrevista ao lado, com dados estéticos, literários e psicanalíticos para fazer o que pedia aquela espanhola da marcha de Braguinha, cantada em coro, em 1950, no Maracanã -"pegar o touro a unha".
O touro é o futebol, mas também o Brasil e as ambivalências das
interpretações acerca de sua formação, de sua cultura e de seu futuro, ora a
enfatizar suas potencialidades negativas, ora as positivas, num arco que vai do
entusiasmo profético com a nação às afirmações derrisórias sobre seus fracassos.
Interpretações do Brasil
Veneno remédio é uma idéia contida na palavra grega "fármacon", poção que pode curar ou matar. É a "força que revira em seu contrário, o mesmo que se transforma em outro, o avesso do avesso", escreve Wisnik.
Nas visões clássicas sobre o Brasil, discutidas no capítulo mais teórico do livro, o que é veneno para um torna-se remédio para outro. Aquilo, por exemplo, que na sociologia uspiana é uma fórmula quase fatal -os efeitos e defeitos da colonização escravista portuguesa na periferia capitalista-, vira remédio na reversão de Gilberto Freyre, que aposta no desqualificado povo miscigenado e lança a mestiçagem como novidade civilizatória.
Embora inspire-se na cordialidade de Sérgio Buarque de Holanda, na dialética da malandragem de Antonio Candido e no Brás Cubas de Machado de Assis (com seu emplasto que mata quando deveria ser panacéia), é com o autor de "Casa-Grande & Senzala" que o conceito de veneno remédio parece ganhar amplitude na análise de Wisnik, dando-lhe mais gás para fintar a sociologia convencional de esquerda e falar, de maneira imaginosa, inteligente, não raro poética, sobre as interpenetrações de escravidão, futebol e cultura no Brasil.
Fino para não entrar de sola, o autor também sabe ir duro na bola, rechaçando investidas como as do filósofo Paulo Arantes que, em seu "júbilo hipercrítico", procura "reduzir em massa a singularidade brasileira à sintomatologia do "cronicamente inviável'".
Freyre, em campo oposto, realizaria uma inversão que já estava configurada no modernismo -"devorar a dimensão assustadora do outro, transformar "tabu em tótem", virar o recalque de ponta-cabeça e converter os próprios entraves traumáticos da formação brasileira em fermento libertador".
É o mestre de Apipucos (que ainda desperta resistências uspianas) quem aponta a submissão do "anguloso futebol anglo-saxão" ao "adoçamento curvilíneo" do futebol brasileiro, que realiza uma promessa de felicidade talvez sem paralelo em outras esferas da vida do país.
VENENO REMÉDIOAutor: José Miguel Wisnik
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 41 (448 págs.)
PROJETO UNE MÚSICA E LITERATURA
Inicialmente, "Veneno Remédio" seria um ensaio, de cerca de 40 páginas, para um projeto mais amplo do professor José Miguel Wisnik. A idéia era tratar das ambivalências das interpretações acerca do Brasil, visto ora como veneno, ora como remédio, no futebol, na música e na literatura. O ensaio, no entanto, ganhou corpo e foi deixando claro que se transformaria num livro. O autor começou a escrevê-lo em 2003, logo depois da Copa da Alemanha. "Em meio a outros projetos e atividades, fui dando forma ao livro nesses anos", diz Wisnik, que pretende manter, ainda assim, o projeto original. Literatura e música, que não deixam de estar presentes no livro sobre futebol, serão os temas dos próximos ensaios.
PELÉ, GARRINCHA E FREYRE
Trechos do livro sobre dois craques do campo e um da sociologia
"MAJESTADE DO CORPO" - Pelé
"A capacidade de dizimar defesas adversárias mudando o ritmo da investida,
apontando como uma flecha em direção ao gol com arrancadas e paradas súbitas,
fazendo a bola passar entre as pernas de um adversário e por cima da cabeça do
adversário seguinte, com desnorteante simplicidade e furor, fazem parte da
reserva mais seleta dos exemplos de enfrentamento superior das curvas do tempo e
do espaço, da fulguração do "insight" no instante, da produção da epifania da
forma, da afirmação natural da majestade do corpo"
"GOZO SEM FIM" - Garrincha
"Como Macunaíma, e não como Caymmi (que sela um pacto radioso com o tempo e com
a música), Garrincha vence o gigante comedor de gente pela astúcia, mas perde
para Vei, a Sol -a "mamãe natureza" pródiga que "não dá sobremesa" (usando aqui
uma expressão de Rita Lee) para sua busca de gozo sem fim"
"LUTA DANÇANTE" - Gilberto Freyre
Para ele, "o futebol brasileiro extraía as qualidades de luta dançante da
capoeira para fins decididamente lúdicos e estéticos, através dos "bailarinos da
bola". Ele oferecia um efeito de comprovação prática da interpretação cultural
em andamento na sua obra. O alcance mais engenhoso e inovador dessa formulação é
que ela extraía a sua potência afirmativa dos próprios estigmas da escravidão,
como uma operação simbólica que extraísse do veneno o próprio remédio"
LIVROS
"Temos a tecnologia de ponta do ócio"
Para
Wisnik, o Brasil cumpre sua promessa de felicidade no futebol ao demonstrar
vocação para explorar atalhos inesperados
Ensaísta diz que jogo admite situações narrativas, com o trágico, o cômico e o
lírico; comparar Pelé e Machado "é provocação para país iletrado"
DO EDITOR DA ILUSTRADA
Leia a seguir a entrevista de José Miguel Wisnik sobre alguns aspectos do livro "Veneno Remédio - O Futebol e o Brasil". (MARCOS AUGUSTO GONÇALVES)
FOLHA - Ao tentar enfrentar o futebol em si mesmo e em sua formação brasileira, você se surpreendeu com o que encontrou?
JOSÉ MIGUEL WISNIK - Acho que é importante dizer que cresci na Baixada Santista, onde havia futebol de praia, futebol de várzea e futebol profissional, indo do Corinthians da Vila Cascatinha, em São Vicente, ao Santos de Pelé. De certa forma, nenhum desses futebóis era menos importante que o outro.
Não cheguei ao futebol como um pesquisador que se depara com um objeto
inesperado, mas como um adepto em constante pesquisa de campo que foi
convertendo suas surpresas em um pensamento mais sistemático. Não escondo que
escrevo a partir de uma paixão, mas assumo me colocar num lugar em que a paixão
não exclui a exigência crítica. É o que vejo, por exemplo, nos textos de
Pasolini sobre futebol, que me inspiraram muito.
O caminho foi o de tratar o futebol considerando em primeiro lugar o que
acontece dentro do campo, e, a partir disso, os seus efeitos e os interesses de
todo tipo envolvidos nele, incluindo a violência, a alienação e a sua
capitalização generalizada. A abordagem joga com dados estéticos,
psicanalíticos, literários, colocados em perspectiva histórica.
No Brasil, têm sido escritos bons livros historiográficos, sociológicos, biográficos e jornalísticos, que tratam do que se passa em torno do campo, mas pouco ensaio interpretativo, filosófico-cultural, sobre o que se passa dentro do campo.
FOLHA - O que difere o futebol dos outros jogos de bola?
WISNIK - Os jogos modernos de bola, como o basquete, o vôlei, o tênis, sem falar no futebol americano e no beisebol, são compactados em duelos claros de ataque e defesa que resultam em pontos ou ganho de território. São estruturados em confrontos de competência sucessivos, produtivos, que se traduzem todo o tempo em números e posições, cuja acumulação passo a passo define o vencedor. Já o futebol cria uma zona fluida, cheia de idas e vindas, incontáveis perdas e recuperações da bola, sendo que a maioria delas não se converte nem em pontos, nem em consolidação de posição. O gol pode não sair, mesmo sob bombardeio cerrado, ou pode surgir, inesperado, do nada. Por isso mesmo o futebol admite uma gama mais variada de situações narrativas, na qual entram componentes dramáticos, trágicos, cômicos, épicos, paródicos e mesmo líricos.
Ele abrange um arco existencial mais amplo que o do princípio da concorrência. A margem de gratuidade, de acaso e de possível envolvimento é maior. Ele se parece mais com a vida, mesmo sem ser uma representação direta dela. Eu acredito que isso tenha relação com o fato de ele ter se tornado o mais mundial dos esportes.
FOLHA - Por que o futebol casou-se tão bem com o Brasil?
WISNIK - Como todos sabemos, o futebol brasileiro explorou a margem de gratuidade lúdica que o futebol admite, fazendo disso um instrumento eficaz. Se o futebol inventado pelos ingleses realiza uma espécie de "quadratura do circo" da modernização, unindo o jogo e o rito, com elementos modernos e pré-modernos, o futebol brasileiro entrou com a elipse, o lance não-linear, demonstrando uma vocação toda própria para explorar e potencializar os seus atalhos inesperados.
No domínio desses dons invejáveis e ao mesmo tempo "improdutivos", com tudo o que isso possa ter de ambivalente, o Brasil se apresenta aos olhos do mundo como produtor de uma espécie de tecnologia de ponta do ócio. De onde vem isso? Da conjunção de escravismo com mestiçagem, da dialética da malandragem, do "homem cordial", do atraso, da potência antropofágica? Nem vou começar a responder isso aqui, depois de ter terminado um ensaio que era para ter 40 páginas e acabou tendo 400. Só quero lembrar que, ao contrário de todas as outras áreas da cultura de massa, em que dominam os padrões norte-americanos, o esporte mais mundial não interessa aos americanos, e os esportes norte-americanos não interessam ao mundo.
Nesse curioso ponto em que falha a hegemonia do imaginário americano é que aparece, intrigantemente, o Brasil.
FOLHA - Quais as diferenças principais entre o futebol atual e aquele dos tempos do rei Pelé?
WISNIK - A fama de Pelé ganhou o planeta como uma lenda viva sem logomarca. É o primeiro mito esportivo realmente planetário e o último sem marketing. Não se elegia, como agora se faz, o "número um" do mundo (cilada em que têm caído todos os eleitos). Os jogos eram mais francos, e as defesas, mais abertas.
De lá para cá, cresceu o princípio de "otimização do rendimento", vedetizou-se a figura do técnico, turbinou-se a preparação atlética, cerrou-se a concorrência em todos os níveis, uniformizaram-se muito os estilos de jogo e banhou-se tudo em publicidade. É claro que há uma perda de inocência, de encanto e de graça. A diferença brasileira também não tem o mesmo lugar. Quem ler o livro verá, no entanto, que não me coloco na posição do sentimentalismo nostálgico, nem na do crítico que vê de cima e de fora. Procuro ver de dentro e de fora.
FOLHA - Ao explorar, no capítulo mais teórico do livro, uma correlação entre Machado de Assis e Pelé, você afirma que a promessa de felicidade brasileira só se completará com uma segunda abolição da desigualdade e com a cura do dispositivo doentio segundo o qual o país é receita de felicidade ou fracasso sem saída. Você poderia identificar os atores e motivos desse Fla-Flu?
WISNIK - Alguns podem pensar que eu estou barateando a literatura ao fazer um contraponto entre Machado de Assis e Pelé. Mas eu, que sou professor de literatura, considero essa relação, feita na parte final do livro, como uma provocação contra este país definitivamente iletrado em que nós estamos nos transformando.
A literatura, a música e o futebol são instâncias incontornáveis para entender o Brasil que "não é para principiantes", como dizia Tom Jobim. Machado é o ponto de chegada da formação da literatura brasileira, e Pelé é o ponto de chegada da formação do futebol brasileiro. Os dois, mais João Gilberto, são as figuras únicas, todas as três enigmáticas e quase inabordáveis, do salto espantoso que acontece no momento em que o processo formativo se completa nas três frentes.
Por meio de algo que neles ganha forma a partir da experiência brasileira, mas que na experiência brasileira não se completa, o Brasil aparece como melhor e pior do que ele mesmo. O futebol realiza a democracia racial que o Brasil não realiza. A agudeza e a atualidade antecipatória que a obra de Machado realiza paira sobre a viciosa incapacidade de mudar que ele mesmo acusa no país.
A ótica machadiana é a da negatividade: o raio-X irônico sobre a nossa síndrome de fuga para o imaginário e o conseqüente tombo no real. As Copas de 1950 e a de 2006, cada uma a seu modo e a seu tempo, por exemplo, podem ser vistas como episódios crônicos de tipo machadiano. O emplasto Brás Cubas é de certa maneira a fórmula disso: a panacéia universal que curaria a humanidade, mas que mata seu inventor antes que ele a invente.
O futebol brasileiro, no entanto, resultou numa espécie de emplasto Brás Cubas que deu certo em escala universal: "O alívio da nossa melancólica humanidade", reconhecido como tal em todos os quadrantes do planeta. Juntando o veneno e o remédio, ficamos numa gangorra infantil entre o tudo e o nada que é bem nossa conhecida. Isso está na relação ciclotímica da torcida com a seleção brasileira, na oscilação permanente entre deslumbramento e pessimismo que rege a avaliação do país, e na divisão entre a cegueira com que nos entregamos ao futebol e a posição altiva com que o "crítico" o desqualifica. Sair dessa síndrome é a condição imaterial de qualquer mudança. A condição material é a abolição da desigualdade campeã mundial.
FOLHA - No livro, parece que a idéia de veneno remédio ganha mais sentido com Gilberto Freyre. Qual a vantagem das teorias de Freyre sobre a sociologia uspiana na interpretação da cultura brasileira?
WISNIK - Na parte final do livro procuro ver como os três grandes intérpretes clássicos, Caio Prado Junior, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque, encaixam-se no que seriam os respectivos pontos cegos e luminosos, gerando um tipo de transleitura.
Não considero, assim, nenhuma vantagem absoluta de um sobre os outros. O mais
importante me parece ser a identificação dos paradigmas que eles fundam e
representam, e como esses paradigmas se articulam nas suas diferenças.
Mas vantagens relativas de Gilberto Freyre me parecem importantes. Para quem
escreve um livro sobre futebol, Freyre é aquele que tomou pioneiramente o
futebol, no caso, a Copa de 1938, como a demonstração de suas teses de
"Casa-Grande & Senzala" e "Sobrados e Mucambos". Sua obra pode ser pensada como
um enfrentamento do famoso "complexo de vira-latas" de Nelson Rodrigues, a
revirada dos estigmas da colonização numa saída original graças à "reciprocidade
de culturas", a passagem do vira-lata ao vir-a-ser.