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 Um artista sempre jovem

 

 

Jairo Arcoverde
 

Jairo Arcoverde abre sua primeira retrospectiva. Trabalhos remetem aos ancestrais, às crianças e aos loucos

Paulo Sérgio Scarpa
scarpa@jc.com.br

Aos 68 anos, o pintor e ceramista Jairo Arcoverde ganha sua primeira retrospectiva no Museu do Estado de Pernambuco. Será um breve resumo dos seus 45 anos de pintura, quando marca a venda do primeiro quadro. A mostra tem curadoria do artista plástico Raul Córdula, que assina o caprichado texto de abertura do catálogo com fotos do genro Gil Vicente, projeto gráfico da museóloga Maria Amélia Couto Córdula e 105 obras, entre telas a óleo (38), desenhos (17) e peças de cerâmica (50).

Como nunca se preocupou em catalogar as obras e grande parte se perdeu nas enchentes do Rio Capibaribe, em 1975, ou foi vendida para o exterior, Jairo não tem idéia de quanto criou. Só sabe que mantém o mesmo ritmo: continua a pintar diariamente, como agora na casa-ateliê na Praia do Janga. Por isso, “a mostra tem muito mais obras recentes do que antigas”, justifica.

Uma pintura colorida, com destaque para as cores primárias (vermelho, azul e amarelo) e uma temática que foge completamente do regionalismo nordestino e se encontra nas pinturas nas cavernas. “Minha arte é a dos ancestrais, dos loucos e das crianças”, resume. Mas, adverte, bem-humorado: “Dos loucos e das crianças bem dotados.”

“Jairo brinca – nada mais lúdico do que sua pintura – com a memória desenfreada que faz ressurgir a infância, e brinca também com a sabedoria da idade madura”, analisa Raul Córdula no catálogo bilíngüe (português/inglês) da exposição. “Às vezes, ele tem cinco anos, como na anedota de Lacan, às vezes ele tem um século”, compara. Para uma explicação melhor da analogia: uma vez, durante homenagem ao psicanalista Jacques Lacan, uma bela mulher revelou que estava completamente seduzida por ele. “Senhora, vou contar-lhe um segredo”, confidenciou-lhe Lacan. “Eu só tenho cinco anos”.

Dias desses, Jairo emocionou-se com um calendário com desenhos infantis. “Fiquei louco quando vi aquilo, mas o que procuro nas pinturas das crianças não é a inocência, que ninguém pode captar, mas a liberdade de criar, da mesma forma com a arte dos loucos”, diz ele, enquanto trabalha ao som de Gustav Mahler, Richard Wagner e Ludwig van Beethoven, seus compositores eruditos preferidos, na casa-ateliê em Paulista, onde Raul Córdula encontrou uma grande quantidade de quadros, desenhos e cerâmicas espalhados pelos cômodos. “Ele é um ser humano que trabalha com a arte. Acorda, pinta, almoça, volta a pintar, cuida do jardim e retorna ao trabalho”, conta Córdula ao JC.

Nascido no Recife, Jairo Arcoverde morou no Bairro da Boa Vista, onde começou a pintar na década de 60, quando freqüentou os cursos da conceituada Escola de Belas Artes, chamando a atenção de Lula Cardoso Ayres. “Jairo profissionalizou-se precocemente, vivendo cedo de vender pinturas”, revela Raul Córdula. Seus sobrados e paisagens urbanas sempre tiveram boa acolhida. “É no binômio paisagem/figura, porém, que reside a metáfora da obra de Jairo. Parece que toda a pintura, afinal, é paisagem, e a paisagem eventualmente comporta a figuração no seu espaço”, explica Raul Córdula. “Em Jairo há um diálogo intenso entre a figura e seu ambiente pictórico, entre signos figurativos e paisagísticos. Num conjunto de pequenos e delicados desenhos, onde traços de nanquim são esfumaçados com pastel azul, revelando uma luz tênue e límpida, as figuras dançam sensuais, sustentadas por fortes estruturas negras de nanquim”, analisa Córdula.

Entre 1980 e 1996, Jairo morou no Alto do Moura, em Caruaru. Seu ateliê foi ponto de encontro de artistas e referência artística no Estado. Depois, foi morar com a família – a mulher Betty Gatis, ceramista, e cinco filhos, três dos quais dedicados à arte – em Olinda, na Rua do Amparo. Em 2006, Jairo trocou as ladeiras da Cidade Patrimônio da Humanidade pela Praia do Janga.

A mostra retrospectiva de Jairo Arcoverde começou dia 10 de abril, em Caruaru, no Museu do Barro, no Alto do Moura.

» Museu do Estado. Visitação entre 21/5 e 30/6. Terça à Sexta: 9h às 17h. Sábados e domingo: 14h às 17h. Entrada franca. Avenida Rui Barbosa, 960, Graças, Recife

(© JC Online)


Visões de um paraíso transfigurado

Trecho do texto de Raul Córdula para o catálogo da exposição de Jairo Arcoverde

As pessoas na sala de jantar da casa de Jairo Arcoverde não estão ocupadas em morrer, mas em viver e criar. Eis a casa do artista, o pintor pernambucano onde todos vivem criando arte, atmosferas, paisagens íntimas, acompanhadas pelos cachorros, gatos, passarinhos e plantas e flores do jardim. Tudo parece ordenado e arrumado, mas na verdade o espaço generoso é um labirinto de surpresas, com paredes amosaicadas de pinturas e cerâmicas. Pinturas de Jairo, objetos de Betty Gatis, sua mulher, uma das principais ceramistas de Pernambuco. Pratos de argila pintados por ele e transformados em cerâmicas por ela e, como contraponto, objetos de seus filhos Marisa, Joana e Leonardo.
 
Na família de cinco filhos, três se dedicam à arte: Maria Joana, estilista de moda que entre várias faces do seu métier, criou o figurino do filme de Cláudio Assis “Baixio das bestas”, e que hoje vive em São Paulo, Marisa, designer espontânea, que assim fala de seu trabalho: “Eu trabalho com o universo didático infantil, onde contos de fadas, gatos e outros elementos convivem de maneira hilária, seja na cerâmica, em caixas de madeira pintadas, em jogos americanos ou em telas. Mas não são somente as crianças que gostam de gatos, jovens também, e idosos...”. Leonardo, que é pintor e tem influência do pai, criou um repertório de figuras destorcidas e animais estranhos e muito coloridos, que dançam nas telas. Gil Vicente, o genro, casado com Marisa, é fotógrafo, editor e produtor cultural, mas a arte é seu caminho na fotografia.
 
Marisa fala sobre seu aprendizado: “Tivemos a iniciação artística em casa sob a batuta de papai e mamãe, nossos pais-mestres. Eles não deixavam por menos, nada de coisa feia ou mal feita pois o domínio da técnica só se adquire através do treino, do trabalho repetitivo, o exercício nunca termina, com estas palavras papai nos incentivava. Se o resultado de seu trabalho for bonito, cuide para sempre melhorar, se não, comece tudo de novo. Com eles freqüentamos exposições, ateliês de artistas amigos, museus e galerias. Tivemos de conviver com outros artistas e outros tipos de trabalhos, e ler, ler muito. Desenvolvemos nosso gosto artístico mas conhecendo e respeitando o gosto dos outros.”
 
O Recife (o Grande Recife) é pródigo em famílias de artistas como esta,  casas onde a arte é ofício familiar há gerações, desde os ofícios artesanais até os criativos que chamamos arte, especialmente, a arte da pintura (1).

Nascido no interior de Pernambuco veio com a família para o Recife ainda menino, residindo no bairro da Boa Vista. Envolveu-se com a arte desde a adolescência, há mais de cinco décadas, ao lado de outros artistas fundamentais, todos estudantes dos cursos superior e livre da Escola de Belas Artes (2), isto nos anos 60. Suas paisagens urbanas retratando sobrados da cidade antiga eram vendáveis, e com isto ele profissionalizou-se precocemente, vivendo cedo de vender pintura.
 
A escola mantinha um currículo básico que os alunos, jovens artistas que não quiseram se submeter ao curso superior, mas, curiosamente, os que mais cresceram como artistas tinham que acompanhar. Mas Jairo se recusou às regras curriculares. Destacando-se desde o início, aos olhos de Lula Cardoso Ayres, ele trabalhava na Escola livremente, e conseguiu com Laerte Baldini, pintor, gravador e diretor da Escola um espaço só para ele.

Ainda nos anos 60, quando Olinda foi descoberta pelos artistas, ele teve ateliê com os pintores Ismael Caldas e seu irmão José Maria, que hoje é professor da Escola de Belas Artes da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). Casou-se com Betty Gatis em 1971 e em 72 foi morar na Rua do Chacon, em Casa Forte, quando, por influência do mestre artesão Jether Peixoto, os dois se iniciaram na cerâmica. Primeiramente construíram um forno à lenha. Jairo trabalhava em todas as etapas do processo, desde a preparação do barro até a queima, era totalmente envolvido com a cerâmica. Nessa época o casal mudou-se várias vezes, passaram um tempo em Caxangá, mas saíram de lá depois da famosa cheia de 1975. Foram para Caruaru e depois voltaram para Olinda. Neste período já eram nascidas Joana e Marisa.

Em 1980 eles retornaram a Caruaru para uma etapa importante e definitiva na vida deles. Na época Betty se firmara como uma ceramista conhecida nacional e internacionalmente, sua produção era requisitada por grandes lojas e galerias. Construíram uma olaria e depois uma casa no Alto do Moura, o lugar dos ceramistas do Agreste pernambucano. Por lá passaram dezesseis anos, lá nasceram Leonardo, Paulo George e Maria Rosa, seus filhos mais novos. Neste período Jairo criou e produziu painéis de cerâmica para Caruaru e Recife, realizou uma importante exposição no Bandepe – Banco do Estado de Pernambuco –, e outra na Galeria Macunaíma, a prestigiada sala de exposições da FUNARTE, no Rio de Janeiro, onde vendeu quase todos os quadros – Jairo sempre teve mercado no meio artístico brasileiro.
 
Em 1996 a família resolveu voltar para o litoral, fixaram-se de novo em Olinda onde montaram uma loja na Rua do Amparo que absorvia o trabalho de todos os artistas da família. Isso durou até 2006, quando se mudaram para a Praia do Janga, para a casa-ateliê que possuem agora, onde ele declara sua paz de espírito e maturidade em relação com as pessoas e com sua própria arte.
 
O que é uma vida de artista? todos perguntam. Teria como roteiro uma fogueira de vaidades? Seria um frenesi de compromissos sociais? Ou se pautaria por uma disciplina monástica, sacerdotal, ascética? Nada disso: a vida dos artistas é como qualquer vida de um cidadão comum, uma constante mistura de trabalho e reflexão. O artista estuda, cresce, se casa, tem filhos, educa os filhos, faz feira, adoece, paga imposto, se desloca na cidade e conhece a felicidade e o sofrimento, como todo mundo. A vida de Jairo é exatamente assim, acorda, se alimenta, e vai pintar; ouve música erudita ou jazz, e vai pintar; rega o jardim, lava os pratos, arruma qualquer coisa, e vai pintar...
 
Mas existe alguma coisa de especial, de mágico quando se chega à sua casa na praia do Janga, onde estão, talvez, centenas, de pinturas, um acervo de extrema pureza e enorme importância para nossa cultura, nosso imaginário, nosso mundo intangível onde habitam os signos – em forma de seres estranhos, figuras, animais, paisagens vivas – formados em sua cabeça medonhamente inquieta, e plasmados nas telas através de uma técnica finíssima, elaborada com requintes eruditos, mas carregadas de uma rebeldia tanta, tão própria, que revela seu ser formado de liberdades. Primeiramente estamos num jardim de uma casa burguesa, mas logo se nota que não é um jardim qualquer, ele está como que composto nas cores que se vê depois nas telas que veremos no interior da casa. Numa confortável varanda começamos a ver pintura, e desviamos o olhar para a direita onde está o ateliê e oficina de cerâmica, conjugados para servir à obra do casal. Na primeira sala está a fonte da música, tocando Dvorac ou Maller.  E os espaços internos da casa forrados de telas pintadas, além delas, uma cômoda antiga abriga muitos rolos de pinturas, sem chassis, um verdadeiro tesouro.
 
Brilhando sob sol do Janga, à primeira vista, tudo está no seu lugar, mas aos poucos se entende que este paraíso, que nos transmite o bem estar da normalidade, está transfigurado, nada é como parece ser. Das pinturas de Jairo, obras amadurecidas e tecnicamente perfeitas, começam a surgir, como por encanto, um mundo singular habitado por figuras estranhas – não grotescas – diferentes, ocupantes de um universo incomum. Não somente as figuras, mas as paisagens, os florais, os casarios, as composições que ele também considera paisagens. É certo que as memórias – memórias, não citações – de alguns artistas mundialmente conhecidos como Corneille, Alexinski, Appel, Klee, Miro ou Dubuffet, estão presentes, mas estas referências, que aqueles artistas cambiavam entre si, são marca forte nos artistas de nossa geração.
 
Exposições como esta que o Museu do Estado de Pernambuco abriga são antologias, conta com o melhor de cada período do artista e com representações de cada técnica dominada por ele, como a pintura, o desenho e a cerâmica, há até um livro de artista que se apresenta como um caderno de anotações, objeto raro em sua obra.
 
Jairo brinca – nada mais lúdico do que sua pintura – com a memória desenfreada que faz ressurgir a infância, e brinca também com a sabedoria da idade madura. Às vezes tem cinco anos, como na anedota de Lacan (3), às vezes tem cem.
 
Eis o paraíso transfigurado de Jairo Arcoverde, este artista típico, perfeito, que consegue – não sem esforço – viver em todos os mundos sem aviltar o seu próprio universo contaminado por objetos estranhos, belos e necessários para a vida cotidiana de qualquer pessoa. Depois que conheci seu trabalho, isto há décadas, minha visão do mundo transfigurou-se também, não consigo mais viver sem a idéia da existência de sua arte. Eis o que de melhor pode fazer o artista: tornar sua obra absolutamente necessária.
 
(1) Em Olinda habita José Cláudio com seu filho Manuel Cláudio,  ambos pintores; Gilvan Samico, seu filho pintor Marcelo Peregrino, sua mulher Célida e sua filha Luciana, ambas dançarinas; Tereza Costa Rego e sua filha também pintora Laura Gondim; Roberto Lúcio e sua filha Marina Mendonça; Maria Carmem e filha (......); Thiago Amorim e seu irmão Marcos; Giuseppe Baccaro e seus filhos Matheus, pintor, e Francisco, fotógrafo; Isa do Amparo, seu ex-marido Humberto Magno e seus filhos Paulinho Amparo, pintor e músico, e Catarina, pintora como a mãe; Ariano Suassuna, ele mesmo desenhista, é casado com Zélia, excelente gravadora e pintora, e pai do pintor e ceramista Dantas Suassuna e sogro do pintor e gravador Alexandre Nóbrega; Wellington Virgolino, irmão de Wilton de Souza; num passado mais distante temos os irmãos Vicente, Fedra e Joaquim do Rego Monteiro, Liliane Dardot e sua filha Marilah. Eu mesmo sou casado com Amélia Couto, designer, ceramista e fotógrafa.

(2) Artistas como Ismael Caldas, Roberto Lúcio, José Tavares, João Câmara, Roberto Amorim, José de Barros, Arlinda Maciel, Isabel de Albuquerque, Marisa Lacerda, Silvia Pontual e Silvia Barreto. A Escola de Belas Artes funcionava na Rua do Benfica era composta por um time de professores luminares da arte da época, como Reynaldo Fonseca, Vicente do Rego Monteiro, Barreto e Murilo La Greca, que somente ministravam aulas no curso superior, e ainda Reginaldo Esteves, Laerte Baldini, Roberto Correia, Raquel de Lima e Lula Cardoso Ayres, que também assistiam o curso livre, entre outros, dirigidos por Laerte Baldini.

(3) Contam que Lacan, num jantar em sua homenagem em Beirute, foi  assediado por uma bela mulher que se dizia seduzida por ele. Ele lhe disse: “Senhora, vou contar-lhe um segredo: Eu só tenho cinco anos.”

(© JC Online)

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