Instrumento pivô de uma polêmica afirmação feita por um
professor baiano é tocado por músicos de vários continentes, há
vários séculos
José Teles
teles@jc.com.br
“O baiano toca berimbau porque só tem uma corda. Se tivesse mais, não
conseguiria”. A polêmica afirmação do então coordenador do curso de medicina
da Universidade Federal da Bahia, Antônio Natalino Manta Dantas, não foi
apenas uma aleivosia dirigida aos baianos, mas também uma injustiça ao
instrumento, que teve seus horizontes expandidos por um pernambucano Naná
Vasconcelos. Ele se aproximou do berimbau quando participou, em meados dos
anos 60, no Recife, do musical Memória de dois cantadores, que mostrava as
manifestações culturais nordestinas: “Para resgatar a miscigenação no
Nordeste, na Bahia, para mostrar a capoeira eu descobri o berimbau. Ele não
é originário da capoeira, nunca foi. Lá na África ele é utilizado para
acompanhar os griots para contar estórias”, diz Naná. O musical saiu de
cena, mas ele continuou com o berimbau e começou a explorar as
possibilidades do instrumento, que acabou sendo sua marca registrada, e
inspiração para outros músicos, a exemplo do argentino, radicado na Bahia,
Ramiro Musotto: “Para mim é uma missão tirar esse instrumento de só
pertencer à capoeira. Tudo o que eu faço com os outros instrumentos vem do
berimbau”, justifica Naná. A dificuldade do berimbau está exatamente em sua
aparente simplicidade, acentua Musotto: “Melódica e harmonicamente o
berimbau é limitado, mas é mais rico em timbres. Há milhões de nuances
tímbricas em uma única nota. Você pode evoluir por aí também, não só na
questão harmônica e melódica”, justifica ele.
Mário de Andrade, na coletânea de ensaios Música doce música, dedica um
dos textos ao berimbau que, segundo suas pesquisas, não é um instrumento
exclusivo da África. No que ele chama de “princípio sonoro” o berimbau é
conhecido universalmente. “Na Europa o berimbau é de uso geral: e se chamou
trompe e agora guimbarde na França, tromp entre os escoceses, Jew"s harp
entre os ingleses, birimbao na Espanha, gumbarda ainda na Espanha e Itália,
onde o conhecem também por tromba. Ao passo que na Alemanha, o chamam de
multrommel, de brummeisen, de mundharmonica, de judeharfe, e finalmente de
aura”.
Muitos cronistas estrangeiros que andaram pelo Brasil citam o berimbau em
seus relatos de viagem, a exemplo do inglês Henry Koster, em seu Viagens ao
Nordeste do Brasil, em anotações de 1816. O padre Fernão Cardim, na
Narrativa epístola, de 1593, cita o irmão Barnabé Tello, segundo ele “talvez
o primeiro e único sabido virtuoso de berimbau nestes brasis”. Único no
século 16. Hoje Naná é certamente o mais virtuoso do berimbau do País, mas
por estes Brasis há centenas de bons praticante da arte do berimbau.
(©
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Aldeia global, sonora e sem limite
O
músico argentino Ramiro Musotto revela que foi levado a aprender
berimbau devido a admiração pelo percussionista Naná Vasconcelos
O argentino Ramiro Musotto já havia
lançado Civilização barbarye antes na Argentina, Estados Unidos e
França, onde Musotto já tem cadeira cativa no circuito, digamos,
alternativo. A princípio dá a impressão de ser uma das viagens, que
leva muito passageiro a saltar na primeira estação. A começar pelo
título, tomado de empréstimo a um ensaio do argentino Domingo
Faustino Sarmiento Facundo – Civilização e barbárie, clássico da
literatura latino-americana, um estudo sobre o caudilhismo, porém
salpicado de idéias preconceituosas sobre indígenas, negros,
mestiços: “O livro trata também da questão dos índios, que seriam um
obstáculos à modernização do país. Com conceitos não politicamente
corretos, de que a civilização tinha que imperar e, para isso, seria
necessário o branqueamento da população”, sintetiza, em entrevista
por telefone, Ramiro Musotto, ressaltando que o disco prega
exatamente a convivência entre bárbaros e civilizados: “Coisa que
sempre faço ao contrário, tanto na música quanto na vida, está no
lance da mistura do eletrônico com o étnico”.
O músico argentino, que começou a
tocar em orquestra sinfônica aos 16 anos, revela que foi levado a
aprender berimbau devido a admiração pelo percussionista Naná
Vasconcelos: “Eu amava a música de Naná, foi o músico que mais me
influenciou e que me fez decidir vir para o Brasil. Hoje, o berimbau
é o meu principal instrumento, depois vem o computador”.
Musotto explica a opção pela Bahia,
e não por Pernambuco, terra de Naná, por causa da fama da percussão
baiana, “Mas desde 1986 eu visito o Recife, gosto de ver os
maracatus, que tento entender o mais que posso. Quando não havia
este distanciamento com a música baiana, eu viajava com Daniela
Mercury e nos encontramos com Chico Science no avião, ele estava bem
interessado na música da Bahia”, conta.
Musotto chegou em Salvador quando
era fermentada a axé music. O seu trabalho com Daniela Mercury, na
época campeã de vendagem no País inteiro, foi passaporte para, ao
longo desses anos, tocar com, entre muitos outros nomes de peso da
MPB, Caetano, Gil, Bethânia, Marisa Monte e Lenine. Com este último
(mais a baixista cubana Yusa), participou, em 2004, da gravação e da
turnê do DVD In cité. Os “povos” que habitam Civilização & barbarye
fazem da música de Musotto verdadeira aldeia global sonora: começa
com a Orchestra Sudaka, formada pelos brasileiros Léo Leobons
(percussão e voz) e Sacha Amback (teclado, theremin e sampler), os
argentinos Ramirito Gonzalo (berimbau e percussão) e Mintcho
Garrammone (cavaquinho, guitarra baiana, acordeom). Os convidados
vão do paraibano Chico César, o americano, embora quase nordestino,
Arto Lindsay, o iraniano Rostam Mirlashari e o percussionista
argentino Santiago Vázquez.
(©
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Um disco que fala várias línguas do
idioma musical
As gravações de Civilização & barbarye
foram feitas em Salvador, Rio, Estocolmo e Grenoble (França). Nos
gêneros e ritmos o CD também é uma torre de Babel onde não se fala a
mesma língua, mas todos se entendem pelo idioma da música. Ele
começa com os berimbaus, Ronda, uma melodia de leveza oriental, e
envereda pela santeria cubana (o equivalente ao candomblé
brasileiro), em Ochossi, com participação de Arto Lindsay nos
vocais. A levada de capoeira é introdução para Gwyra mi, com o coro
dos Meninos guaranis da Associação Indígena da Aldea Morro da
Saudade, que aos poucos vira um envolvente samba-reggae, com a voz
sampleada de um discurso do subcomandante Marcos, e um tratamento
orquestral dos teclados de Sacha Amback. Dá impressão do samba do
argentino doido, no entanto trata-se de uma das mais bem-resolvidas
faixas do disco.Sem
fronteiras, Ramiro Musotto envereda pelo suingue africano em M’bala
(com vozes de Lucas Santana, co-autor da música), contraste para a
modal Nordeste & Beradero, com participações de Chico César (que
canta trechos do seu aboio beradero), Jorge Continentino, na flauta,
e uma sampleada na voz do locutor Paulo Roberto (um clássico do auge
da Rádio Nacional), extraído do LP Cantigas de Lampião (1956), uma
curiosidade, que não acrescenta nada a música. A cada faixa o
inesperado, com o computador sendo fundamental para cerzir tantas
informações, nas quais o chorinho Delicado (Jacob do Bandolim) é a
maior surpresa, uma iconoclastia com o mais singelo dos gêneros
musicais brasileiros. Primeiro por começar em ritmo de bateria de
escola de samba, com solo de guitarra de Julio Moreno. Não funciona
bem a batucada frenética com a suave harmonia européia do choro.
Aqui a bateria atravessa.
Do sambão-choro para a sinuosidade
da música árabe, com o iraniano cantando Majino ma bi, a melodia
emoldurada pelos berimbaus de Ramiro Musotto. Daí para a faixa
percussiva Mbira (um instrumento africano), que lembra os climas
oníricos da música do Uakti, e por fim, mas não menos importante,
Yambú, a volta a Cuba, com Léo Lebons assumindo o vocal, e o suingue
da música (F.Calle) desacelerado, numa levada de lounge. Civilização
& barbarye, mesmo com faixas que soam equivocadas, é um disco
bem-vindo, que diverte e atiça a curiosidade do distinto ouvinte.
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