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Gilvan Samico
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Inés Hebrard, Isabella Valle e Milena
Times*
Especial para o JC OnLine
Samico nunca recebeu nada pronto. Ele começa, faz, refaz, faz
outra vez, refaz de novo, até que a coisa tome forma. Em quanto
tempo? Em mais ou menos um ano. "Aí já não é mais inspiração,
mas um pouco de senso de composição, essas coisas que estão
ligadas às artes". Com ele, é assim: nada de conversas do Além.
Para Samico, esse negócio de ser artista é sério. Na vida do
artista, o ego só se satisfaz por duas razões: pelo poder de
criar e pela realização profissional.
Sim, realização como o que todos buscam em qualquer outra
profissão. A diferença do artista é que só a habilidade não faz
a profissão. É preciso acrescentar algo. "Se o artista se
contenta só em copiar, ele não traz nada de novo". Um artista
não nasce pronto, ele vai crescendo e aprendendo, e fazendo a
diferença com o tempo. "Rafael, por exemplo, me impressiona.
Morreu com 30 e poucos anos e deixou uma obra imensa. Eu me
pergunto como, se eu, com 80, não aprendi nada".
Viver da arte é uma escolha complicada. Apesar de nunca ter
se definido como funcionário público, Samico trabalhou como
auxiliar técnico de obras durante 30 anos e é aposentado pelo
Estado. Hoje, depois de 50 anos de carreira, ele poderia viver
somente das suas xilogravuras. "Viver de arte eu acho muito bom.
Agora podia ser péssimo, porque eu poderia não ‘viver’ da arte",
confessa, lamentando que a maioria dos artistas não consegue se
sustentar da arte que faz.
"O meu mérito é de fazer o melhor que eu posso. Eu não tenho
vaidade em ser artista. Às vezes, me espanto por ter feito uma
coisa que não sei o que é, porque fiz e não sei. É a criação."
Para ele, o artista tem uma jornada árdua de trabalho para
conseguir ser um bom criador e, assim, poder ser um pouco Deus,
quando alcança essa etapa.
Mas Deus para ele é um desconhecido, sem muita importância.
Mesmo tendo sido criado dentro da Igreja Católica e freqüentado
missas, ele só acredita naquilo que sabe o que é. A sua mística
está no que ele chama de "oco do mundo", o grande mistério de
não saber o começo e o fim do universo. "Não quero puxar
conversa para filosofia, que eu não sei de nada. Mas todas essas
coisas da ciência que não têm explicação aumentam mais o
mistério", o que se reflete claramente em sua criação.
Sem compreender muito bem os resultados de sua própria arte,
Samico admite penar bastante enquanto trabalha em um projeto.
Conhecido pela perfeição e simetria das formas com que trabalha,
ele diz precisar de um tempo para aceitar o que fez depois que a
obra fica pronta. "Eu nunca soube se tá bom ou se tá ruim. Tento
me acostumar com o trabalho que eu faço. Dias depois, é que vou
descobrindo, aceitando. No fim, eu gosto".
MUSEUS - Perfeccionista como só ele, Samico
não faz mais exposições em galerias. Há muitos anos, suas
mostras têm sido em museus e de caráter retrospectivo. "Com uma
gravura por ano, não tem muito o que mostrar", ironiza. Em 2005,
Samico surpreendeu (principalmente a si mesmo) em produção.
Neste ano, foram concluídas duas xilogravuras: Júlia e a chuva
de prata, em homenagem à neta, e Via Láctea – Constelação da
Serpente. "Ninguém sabe disso, pra eu não perder a fama", brinca
o artista, orgulhoso da meticulosidade por que é conhecido.
Gilvan acha que ainda não fez sua obra-prima, mas está sempre
querendo fazê-la. "Há uma esperança de que eu faça", revela,
confessando que há gravuras que lideram o conjunto de sua obra
como marcos, que podem gerar xilos melhores. "É o que eu posso
chamar de avanço, mas que não garante nada".
Por causa da pouca produção, Samico vende suas obras por
conta própria em sua casa, que abriga o seu ateliê no Centro
Histórico de Olinda. De cada matriz criada por ele, são
produzidos 132 exemplares - 12 para provas de artista e 120 para
venda. Normalmente as tiragens são de 5 ou 10 gravuras,
dependendo da demanda do mercado. "Eu tenho uns 17 modelos que
ainda não completaram as 120 gravuras para o cliente escolher".
Suas xilos são impressas em papel japonês que encomenda dos
Estados Unidos. O artista está preso às dimensões desse papel: 1
metro por 60 centímetros. Os desenhos iniciais, que geralmente
ficam armazenados em alguma gaveta, já são feitos dentro de uma
escala, que leva em consideração a margem necessária. Porém, se
a composição pede outra dimensão, ele corta onde achar
conveniente.
Os valores são atribuídos pelo tamanho. Ou seja, a maioria
das suas obras vale o mesmo, com exceção de alguns quadros
menores, feitos em papel cortado. O preço cobrado é o que o
mercado permite para que ele continue vendendo: "Há 3 anos que
eu não aumentei nada".
SERVIÇO:
Ateliê de Gilvan Samico
Rua de São Bento, 55, Olinda.
Telefone: (81) 3429.2841
* -
Do curso de Comunicação Social da Universidade Federal de
Pernambuco
(©
JC Online)
Criador sem limites, Samico sonha com a
pintura
Inés Hebrard, Isabella Valle e
Milena Times*
Especial para o JC OnLine
Nascido no Recife em 15 de junho de 1928, Gilvan José Meira Lins Samico é
personalidade marcante nas artes plásticas brasileiras. Com mais de 50 anos
de carreira e às vésperas de completar 80 anos, um dos maiores
xilogravuristas do País conta que tem o sonho antigo de pintar e que a
gravura aconteceu por acaso na sua vida. "Eu não sei o porquê, porque eu
deveria estar conformado em ser somente gravador. Mas eu lhe digo que tenho
um certo ranço por não ser pintor", diz ele, famoso chato dono de um sorriso
cativante e de um espírito muito vivo.
Para Gilvan Samico, o uso da cor é algo
tentador e a pintura liberta essa tentação. "Até hoje (como gravador) eu uso
a cor. Eu sinto necessidade de pintar", conta o pai de Luciana e Marcelo e
marido de Célida . Iniciado em desenho, Samico participou na década de 50 do
Ateliê Coletivo da Sociedade de Arte Moderna do Recife (SAMR), onde diversos
artistas se reuniam para exercitar as artes plásticas e encarar desafios. "A
gente vivia numa pindaíba danada", lembra Samico, "a gravura foi um negócio
de Abelardo (da Hora), porque a gente não tinha dinheiro". A idéia era criar
um clube da gravura, em que cada um criaria uma matriz periodicamente e eles
buscariam sócios. Assim, Samico diz que se obrigou a fazer uma matriz. "Eu
não queria fazer gravura, mas eu não queria dizer não. Então, cedi." Até
aquele momento, Gilvan desenhava e já estava pintando, mas nunca se imaginou
o gravurista que é hoje.
Viver das artes plásticas não é fácil e
muitos desistem da carreira. "Por que eu vou ficar pintando, pintando,
pintando, se ninguém compra meu trabalho? Você gostaria é que alguém se
interessasse por isso", reflete, lamentando a falta de sucesso de suas
pinturas.
A gravura foi acontecendo na vida de
Samico. Quando criança, não vivia com lápis e papel na mão, mas, como não
era um bom aluno, adorava as atividades mais artísticas da escola. Seu
negócio era serrar madeira, bater prego, fazer carrinho, patinete, gaiola.
Gostava de usar as mãos e sempre teve intimidade com a madeira, que hoje
utiliza para fabricar suas matrizes.
Um dia, ainda pequeno, descobriu um caderno
de desenhos jogado na garagem da tia e ficou "deslumbrado com aquele
negócio", como ele mesmo descreve. Foi quando começou a desenhar, copiando
capas de revistas, imagens de santinhos, tudo o que via. Aos 17 anos, Samico
foi levado pelo pai para conhecer Hélio Feijó, arquiteto, artista plástico
e, na época, presidente da SAMR, que disse para ele parar de copiar revistas
e observar mais a natureza. A partir daí, ele passou a freqüentar a
Sociedade de Arte Moderna, onde fez grandes amigos.
Indicado por eles, Samico estudou com dois
dos mais conceituados gravadores do País, Lívio Abramo e Oswaldo Goeldi,
quando decidiu se aventurar pelo Sudeste no final da década de 50. Eram as
circunstâncias que traçavam seu destino. "No primeiro Salão que houve no
Rio, eu mandei e aceitaram minhas gravuras. Você só falta chorar, né?". No
outro ano, Samico enviou novamente suas gravuras e todas foram aceitas. A
partir daí, ele começou a ser convidado para exposições coletivas no
exterior. "Foram me aceitando como gravador e não tinha lugar pra ficar
pintando. Tinha que trabalhar!". E ele foi sendo tomado pela xilogravura.
Participou da Oficina Guaianases de Gravura, fundada por João Câmara, e
virou o maior xilogravurista do Movimento Armorial. Hoje ele quase não pinta
mais.
"Samico virou gravador, porque continuou
aquilo que ele fez lá em São Paulo e eu abandonei, porque eu queria ser
pintor. Naquela época, o Brasil era brilhante em duas coisas: gravura e
desenho", lembra o pintor José Cláudio, alegando que Samico escolheu seguir
essa tendência enquanto ele foi para a Itália estudar pintura. Mesmo indo de
encontro com os primeiros desejos de Samico, o panorama artístico do Brasil
é o maior beneficiado com o destino que fez do artista um grande nome da
xilogravura.
RECONHECIMENTO - Pensar
que Samico queria ser pintor, sendo tão bom e reconhecido gravador, levanta
um questionamento sobre o reconhecimento da gravura como arte. O artista
explica que essa "ponta" de frustração pode ser conseqüência de algum
resquício inconsciente de um tempo em que a gravura foi considerada arte
secundária, que surgiu e se estabeleceu por muito tempo na História com a
finalidade de reproduzir. Livros eram ilustrados por desenhistas e pintores,
que tinham sua obra reproduzida por gravadores, que a transformavam em talha
para a impressão. "O camarada às vezes transformava uma coisa enorme em uma
gravura que cabia na folha do livro! Reproduzia todas aquelas nuances,
encontrava jeito de dar o tom geral do quadro através de cinzas e pretos",
defende.
Com o Expressionismo, o gravador se tornou
também artista: ele cria, desenha, pinta, grava e reproduz. "Eles (os
expressionistas) conseguiram dar à gravura uma espécie de autonomia, de
caráter de obra de arte". O famoso quadro O Grito, de Münch, por exemplo,
também possui uma gravura de mesmo nome e feita pelo mesmo autor. "O meu
complexo tá atenuado por conta disso. Eu não me sinto um serviçal, eu também
sou rei. Faço. Imagino e faço!"
Por conta da sua história, a gravura ainda
é uma arte polêmica. Seria cada uma apenas uma cópia, uma reprodução? Qual é
a original? "Na verdade, são impressões, não cópias de outra gravura. Cada
uma é um exemplar". E, feito à mão, ele dificilmente fica idêntico a outro.
O tom das cores, a intensidade, o preenchimento dos sulcos, cada detalhe é
que vem a tornar cada obra singular, dando à gravura o caráter da
exclusividade da obra de arte.
AVE
BICÉFALA - Em 1999, Samico reinventou seu trabalho: ele criou uma
gravura mutante. Diz ele que foi para testar uma nova prensa, mas talvez
tenha sido para dar a sua obra certas particularidades da pintura, que tanto
o atrai. E só agora, quase dez anos depois, é que ele está imprimindo o
inovador Ave Bicéfala.
Nessa gravura, que chama atenção por seu
colorido, ele expõe um pássaro de duas cabeças e deixa por parte do cliente
eleger as cores que preenchem alguns espaços, como a crista e a asas da ave.
Em alguns outros locais, as cores são fixas e pré-estabelecidas por Samico
(as cabeças, por exemplo, são sempre azuis). Contudo, a intenção dessa
gravura é a de promover um intercâmbio de cores, uma permutação, com uma
variação já prevista.
Samico tem a tendência de usar cores
contidas, mas, nessa obra, ele se permite mudar. "Eu tou quebrando, tou
fazendo uma gravura diferente da minha, ao mesmo tempo em que ela se
identifica com meu trabalho... É uma doidice!". Segundo o gravurista, ele
não tem muitas idéias assim, diferentes, mas as mudanças vão acontecendo e,
mesmo depois de tanto tempo, ele ainda consegue inovar.
Ave Bicéfala, por ter uma dimensão menor
que a maioria das gravuras de Samico, é mais barata, "mas tá me dando mais
trabalho que uma outra, grande". Até agora, a gravura só havia sido impressa
nove vezes, existindo ainda muitas possibilidades de novas colorações para a
ave.
* - Do curso de Comunicação Social da
Universidade Federal de Pernambuco
(©
JC Online)
Meu trabalho é como um carinho na
madeira
Inés Hebrard, Isabella Valle e
Milena Times*
Especial para o JC OnLine
Gilvan Samico aparece na varanda de seu
casarão, em Olinda. Desde as alturas, sério e seco, grita: "Hoje?! Né hoje,
não. Voltem na quarta!" - e entra de novo na casa. Está brincando?
Entreolhamo-nos até que o homem abre a porta, abotoando a camisa e nos
convida a entrar. Brincava. A grande sala, repleta de xilogravuras e
quadros, produz uma sensação entre intimidante e acolhedora, como o própio
artista. Gilvan avisa que podemos falar "até do sexo dos anjos", mas não
toquemos no assunto de seus 80 anos. Pronto: esqueçamos a idade, falemos de
experiência de vida. Com propriedade e pragmatismo, sentado em sua cadeira
de balanço e com os dedos manchados de tinta preta, Samico fala sobre os
limites entre o artesão e o artista.
Samico, ninguém discute que você é
um grande artista, inclusive erudito. Mas, por trabalhar com xilogravura,
você também se considera artesão?
Sim. Algumas pessoas ficam surpreendidas quando eu digo que me considero
artesão. Eu gosto de fazer coisas que não têm nada a ver com arte, gosto de
consertar, de fazer coisa em madeira, que não é a minha arte. Mas eu também
faço minhas matrizes. E, quando eu estou fazendo minhas matrizes, estou
juntando madeira com madeira pra fazer uma tábua deste tamanho, aplanando,
lixando. Aí eu estou sendo artesão. Artesão trabalhando para o que eu vou
fazer de arte. Claro que, no momento em que eu faço meu trabalho, eu não
quero contrariar o signficado da coisa: artesão, digamos, numa escala,
estaria abaixo do artista. Artesão é como se não chegasse a ser arte...
O que faz alguém passar de artesão
e chegar a ser artista?
O artista não fica só no objeto para uso. A arte não tem utilidade, a não
ser para a gente pendurar na parede. Um artesão trabalha com utilitários:
uma mesa, uma matriz...
Nós, artistas, sabemos que habilidade só não faz um artista. O artista é
aquele capaz de acrecentar alguma coisa. Tem que ter algo mais, não somente
de conhecimento, mas também inteligência (você pode ser um grande conhecedor
de um assunto, sem ser inteligente). Quem lida com a arte sabe que você pode
suprir o conhecimento pelo olho, pode ver o que não é aparência, começa a
ver as nuances... O artista vê sem ter conhecimento ou, então, teve um
conhecimento prévio e o aplica na hora de fazer.
Como o fato de você ser artesão se
relaciona com o seu trabalho de artista?
Eu acho que ser artesão ajuda muito para você ser artista. Eu
complemento meu trabalho de artesão com a minha veia artística, com essa
coisa misteriosa que eu não sei o que é, de onde veio, nem pra que serve.
Mas eu não preciso ser artesão para ser artista: poderia chamar um
marceneiro e mandar fazer minha matriz. Mas, em vez de mandar fazer, eu
faço. Então essa parte de artesão, que outro artista não tem, eu sei fazer,
eu me preocupo com ela, com essa coisa que antecede.
Ser artesão é um diferencial na sua
obra?
Quando era jovem, eu ouvia dos marceneiros que, depois de que a
tábua tava montada, eles iam afagar a madeira. É um termo carinhoso, uma
coisa que parte do coração... Para mim também, meu trabalho é como um
carinho que eu tivesse fazendo com a madeira e falta isso em alguns
artistas.
No trabalho com xilogravura, existe
um processo que envolve o entalhe da madeira. Você considera que a obra é a
matriz de madeira ou a impressão feita em papel?
Considero que minha obra termina na impressão. Não é necessário que
estejam os 120 exemplares prontos. Mas, se você grava uma matriz, a gravura
só vai ser terminada ao ser copiada porque até então é uma gravura, sim, mas
precisa dessa complementação com a impressão. Enquanto é uma madeira
talhada, trata-se de uma talha rasa e, ao meu ver, só se completa quando
você termina o processo de impressão. Certamente, a matriz de madeira é tão
importante do ponto de vista artístico quanto a gravura impressa. Sem a
matriz, você vai imprimir o quê? Nada. A matriz é uma arte, sim, não deixa
de ser, mas dentro daquele processo. Se você está fazendo gravura, isso
subentende um rebatimento da coisa, seja num papel, num pano...
E quando, então, a gravura começa?
No meu caso, o trabalho começa quando você projeta essa gravura e esse é o
projeto mais demorado. Eu desenho inúmeras vezes: sou capaz de criar um
desenho em 20 dias, mas dificilmente me dou por satisfeito nesse tempo. E
não gravo enquanto eu não estiver com a idéia toda pronta no papel. A cor
vem depois. Mas o mundo das artes é muito complexo, tem várias maneiras de
trabalhar, tem pessoas que acham que o importante é o resultado, e que não
importa o processo. Tem artista que vê a madeira, risca e começa a cortar,
como se ele já soubesse o que quer fazer no momento que começa a riscar a
madeira. Eu não. Eu acho que é muito importante todo o processo. Se você não
usar um processo com certa coerência, o resultado talvez seja incoerente.
Esse não é um campo que a gente possa pisar com tranqüilidade.
(©
JC Online)
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