Um dos
maiores gravadores brasileiros, Gilvan Samico não quis festa para
comemorar o aniversário. Ele prefere ficar recluso em Olinda
Olívia Mindêlo
oliviamindelo@jc.com.br
“Se soubesse
que fazer 80 anos era um crime, não tinha feito, tinha pulado direto
para os 81”. A frase, dita em tom de brincadeira pelo escritor Ariano
Suassuna em pleno zun-zum de seu aniversário, no dia 16 de junho do ano
passado, bem que poderia ter saído da boca do amigo Gilvan Samico. Desde
que 2008 começou, o artista plástico pernambucano, tido como um dos mais
talentosos do Brasil, tenta evitar o assédio gerado por datas como essa.
Se
Suassuna sentiu o peso da fama no aniversário, mas mesmo assim cedeu a
convites, viagens, Rede Globo, jornais, televisões etc., o mesmo não
acontece com o menos badalado Samico que, um ano depois do amigo, não
faz o menor esforço para atender a homenagens em torno das oito décadas
que completa hoje, “recluso” em seu habitat olindense.
Não foi à
abertura da exposição Samico – 80 anos, no Centro Cultural Benfica, há
um mês, negou entrevistas, e evita falar de qualquer coisa que conote
“parabéns”. Bolo e festa, nem pensar. Para ele, hoje é um dia como outro
qualquer. Pelo menos é assim que afirma. Para Suassuna, o incômodo dos
artistas em torno dos 80 tem um motivo óbvio: “Não é natural chegar a
essa idade com uma força criativa como os artistas Samico e o próprio
Brennand (80 em 2007), por exemplo, chegaram. Eles têm um impulso pela
arte de importância nacional.”
Seja lá
qual for a razão por se temer a idade ou as comemorações vindas com ela,
o fato é que não há como deixar de homenagear quem chega à casa dos 80
na ativa – e com vigor físico de quem tem 15 anos a menos. Samico é
assim. Há pouco tempo, mais precisamente há quatro anos, o artista vivia
um dos momentos mais aclamados de sua trajetória, com a individual
Samico – do desenho à gravura, na Pinacoteca do Estado de São Paulo. A
mostra não só foi vista por um público amplo (do Brasil e de fora), como
também contemplada com o Grande Prêmio da Crítica para Exposição, pela
Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA).
Há quem
veja o artista como alguém que “parou no tempo”, que se repete na
pesquisa em torno da xilogravura cuja marca estética que conhecemos
atualmente veio a partir de Suzana no banho, em 1966. Mas o processo de
criação em Samico não é tão simples assim. A preocupação do gravador é
muito mais com a perfeição do que com a novidade. “Os que acompanham
Samico conhecem seus dias de angústia e sofrimento antes de chegar ao
último dos estudos, quando inicia o trabalho de artesão entalhador. A
idéia de criação infinitamente vasta se transforma na vertigem do
detalhe do detalhe do detalhe”, escreve o autor Ronaldo Correia de
Brito, no texto do catálogo da citada exposição, da qual foi curador.
A
teimosia de Samico pela forma estética é tanta que ele só produz uma
gravura ao ano. Antes de ter a xilo pronta, faz vários estudos em
desenho e, só depois, parte para a matriz em madeira, de onde o “papel
final” será impresso. A obra A caça (2003), por exemplo, passou por 40
esboços antes de atingir a forma final. O curioso é que este ano ele já
fez duas xilos: a inédita A ilha e Criação da via láctea – constelação
da serpente 2, uma revisitação a um dos estudos para gravura homônima
feita antes.
Ambos os
trabalhos recentes apontam para a continuidade do estilo que o consagrou
como o maior xilogravador do Brasil, estilo que passa pela busca da
simetria, através de contornos fortes, pela pouca perspectiva, pelo uso
comedido da cor, e pela fixação em associar figuras humanas e animais
numa mesma cena.
Para
Ariano Suassuna, Samico é o maior representante plástico do Movimento
Armorial, ao reprojetar histórias do cordel num espaço erudito visual.
Para Ronaldo Correia de Brito, a relação de Samico com o universo
popular foi só um flerte: “A gravura é erudita, tem um universo que
transcende o popular e é muito mítico”. Seja o que for, é nas duas vias
que ele constrói a “síntese” de uma poética peculiar.
Certa
vez, Samico chegou a tomar duas lapadas de cachaça para conseguir dar
uma entrevista. “Timidez eu tenho até o couro cabeludo!”, diz ele. De
fato, não é preciso muito esforço para perceber que o artista,
“escondido” num dos casarões de Olinda, corre longe dessa história de
discorrer sobre a própria obra para jornalistas, críticos ou
pesquisadores. No entanto, basta uma quebra de protocolo para ele soltar
o verbo. “Eu gosto mesmo é de falar besteira, não sei falar nada sério”,
revela à repórter Olívia Mindêlo, na conversa abaixo. Para quem não é
afeito a dar entrevista, mais de meia hora de conversa foi suficiente
para render este bate-papo que o leitor acompanha a seguir, sobre duas
partes inseparáveis de um artista: sua vida e sua obra.
JC – Por que o senhor está fugindo da comemoração dos 80 anos?
GILVAN
SAMICO – Não me chame de senhor! Ninguém aqui em casa me chama assim,
nem meus filhos, nem minha mulher, nem meus netos. Eu sou muito jovem
(risos). Olha, a esse negócio de aniversário nunca dei valor. Não dou
importância nenhuma. Amanhã mesmo (quarta-feira passada) vou-me embora
pra Pasárgada, que lá sou amigo do rei... Não é assim que dizem? Vou me
esconder, não sei quem inventou essa história de 80 anos... Para mim, é
a mesma coisa fazer 70 ou 80.
JC – Mas
também incomodaram você nos seus 70 anos?
SAMICO –
Não. Inventaram essa coisa de 80 anos, que tem que fazer homenagem.
Nunca fiz uma festa de aniversário. Éramos uma família de seis irmãos, e
não tenho a mínima lembrança de ter comemorado aniversário. Não é
brincadeira, nem charme. Não gosto desse chamego. Não sei falar sério
sobre nada, nem sobre a minha vida, nem sobre o meu trabalho.
JC – Só
através da gravura, não é?
SAMICO –
Aí eu tento, não sei se dá para notar que houve uma tentativa...
JC – Mas
esse negócio de dar entrevista e sair de casa não é com você?
SAMICO –
Não mesmo, gosto de conversar besteira, somente.
JC – E
como convenceram você a fazer em 2004 aquela grande exposição na
Pinacoteca de São Paulo, para onde você foi?
SAMICO –
Aí é outra coisa. Foi quase uma surpresa para mim. É a coisa do
trabalho. Eu tenho é dificuldade de falar sobre o meu trabalho. Mas aí
as pessoas me convidam e eu ainda tento apelar, pra que isso, coisa e
tal...
JC – E
sua conta bancária na Suíça aumentou muito depois da exposição
individual na Pinacoteca?
SAMICO –
Menina, você num sabe que meu telefone é grampeado, não (risos)? Tenho
conta nenhuma no exterior, não!
JC – Mas
as vendas dos quadros não aumentaram?
SAMICO –
É, aumentaram. Há tempos que não se comprava nada meu em São Paulo, mas
na exposição três ou quatro pessoas compraram.
JC – O
Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (Mamam) comprou quantas obras
suas?
SAMICO –
Acho que quase cem, coisa assim... Mas o museu já havia recebido doações
de alguém que tinha me comprado alguma gravura e depois achou por bem
doar. Acho importante o museu ter os trabalhos, para que as pessoas
possam ver, porque nem sempre podem ir à casa do artista. Mas eu sou
contra o artista fazer doação. O artista têm é que vender as suas obras.
JC – Você
vende suas obras na sua casa?
SAMICO –
Muito não, de vez em quando aparece alguém.
JC – Um
ano é o tempo que você leva hoje para fazer uma gravura, idade não é tão
importante... Então, qual o sentido do tempo para você?
SAMICO –
Tempo é um pouco abstração... Eu sou um sujeito muito lento. Para mim,
tempo parece que não existe, mas existe. E eu agora estou sentindo essa
ação do tempo.
JC – Mas
você é bem ativo para idade.
SAMICO –
Não sei, teria que me comparar com os outros.
JC – Mas
e sua mulher?
SAMICO –
Ela tem 78 anos. É, ela é bem ativa, trabalha muito, muito. Eu trabalho
também, mas sou muito devagar. Meu negócio é não ter data para acabar...
Este ano mesmo, depois de muito tempo, fiz duas gravuras já. Tenho uma
coisa com os estudos, teve gravura (A caça) que fiz 40 estudos até
terminar. Minha mulher me deu um livro de conversas entre Picasso e
Matisse. Picasso era uma das únicas pessoas para quem Matisse abria a
porta de sua casa. Ele não se dava o direito de parar de trabalhar. Eu
largo o trabalho para fazer qualquer besteira.
JC – Que
tipo de besteira?
SAMICO –
Quando não estou trabalhando, estou comendo ou dormindo. Vez por outra
eu leio, mas não tenho hábito. Matisse, mesmo, estou lendo devagar. Aqui
em casa, no quintal, eu também tenho uma oficina, onde eu faço umas
coisas em madeira. Antes de ser gravador, sou artesão e marceneiro.
Alguns móveis da minha casa foram feitos por mim.
JC – Mas,
então, também é trabalho...
SAMICO –
Considero, mas não é de artista, com letra maiúscula, aquele peso, eu
vou improvisando. Para mim, o que é importante é que um bom trabalho
feito por um marceneiro é tão bom quanto uma gravura.
JC – Com
quem aprendeu a mexer com a madeira?
SAMICO –
Fui de uma época em que famílias com menos posse como a minha não tinham
como comprar brinquedos para os filhos. Eram vindos de fora e caros...
Então, eu fazia, brincando, meus próprios brinquedos e já fazia de
madeira.
JC – Por
isso a xilogravura foi uma escolha natural?
SAMICO –
Nunca entendi por que faço xilogravura. Na verdade, a coisa começou no
Atelier Coletivo (de Abelardo da Hora, na década de 50). Estávamos
fazendo um álbum de gravuras, então eu fiz uma. Fizemos numa placa de
gesso, mas eu não gostei do resultado. Aí comecei a trabalhar em casa na
madeira. Por acaso me deram um prêmio num salão da época e a coisa foi
tomando corpo...
JC –
Dizem que você é o maior xilogravador do Brasil.
SAMICO –
Quem diz? Eu não acredito, se dizem muitas coisas nesse mundo de crítica
de arte. Umas coisas que são, e outras que não são. Às vezes, o elogio é
até gratuito, porque tem que ser... Mas não sou eu que tenho que dizer
nada, são as pessoas credenciadas.
JC –
Então não há vaidade nenhuma?
SAMICO –
Não sei, no fundo eu talvez seja até mais vaidoso que muito artista por
aí. Mas é que, se eu digo isso, parece falsa modéstia de eu estar
achando ruim essa história de 80 anos. Não é o caso, eu não gosto de
comemoração. Devia até estar curtindo, mas não estou.
JC – A
serpente está sempre presente em seus quadros. Se fosse um animal, seria
uma serpente?
SAMICO –
Não tenho vontade de ser animal, ser bicho homem já é uma coisa
atrapalhada, mas até que ser serpente é uma boa pedida. Não é que nunca
tinha pensado nisso?
(©
JC Online)