Notícias
Rosa Passos vai além do rótulo de 'João Gilberto de saias'

28/06/2008

 

 

Divulgação

Rosa Passos
 

RIO - O rótulo de "João Gilberto de saias" sempre fez sentido e abriu muitas portas para Rosa Passos, principalmente fora do Brasil, onde sua carreira deslanchou na última década. Mas, como a própria cantora, violonista e compositora baiana vinha pontuando em entrevistas recentes, também era algo redutor, mesmo que ela nunca tenha negado a decisiva influência de seu conterrâneo. "Romance", CD produzido por Rosa para o selo americano Telarc, agora editado no Brasil pela Universal, mostra que ela não se limitou ao discurso: acompanhada por ótimos instrumentistas brasileiros, é seu trabalho mais jazzístico.

Nada muito radical, é claro. Estamos diante da intérprete perfeccionista de sempre, imprimindo sua digital em tudo o que escolhe para cantar. Agora são baladas, 12 canções românticas, que são meticulosamente reconstruídas por Rosa e os músicos Fábio Torres (piano), Paulo Pauleli (contrabaixo), Celso de Almeida (bateria), Lula Galvão (violão e guitarra), Vinicius Dorin (flauta, sax tenor, alto e soprano) e, alternando-se no trompete e no flugelhorn, Daniel D'Alcântara e Nahor Gomes. O clima é noturno, entrando na madrugada, e, à guisa de ilustração e guardadas as diferenças no estilo vocal, pode remeter a discos de artistas como Chet Baker e Billie Holiday (esta, em sua fase final, nos anos 1950).

Versões longas e arrastadas para repertório de baladas

Rosa imprime um andamento mais arrastado a canções que por natureza já são lentas, como os clássicos "Eu sei que vou te amar" (Tom e Vinicius), "Preciso aprender a ser só" (Paulo Sérgio e Marcos Valle) e "Álibi" (Djavan). Esta, com seus seis minutos de duração, e arranjo do pianista Fábio Torres, é exemplar do que se ouve em "Romance": o sax tenor de Dorin, que tem direito a belo solo na parte final, introduz o tema para em seguida Rosa saborear palavra a palavra a letra e a melodia de Djavan, atrasando sua entrada em alguns momentos, deixando em suspenso o caminho que seguirá. "Atrás da porta" (Francis Hime e Chico Buarque) tem tratamento similar, sendo que aqui o solo é do guitarrista Lula Galvão. É uma abordagem que, por ser algo tortuosa, talvez não desça bem num primeiro contato, ainda mais para quem estava acostumado ao formato de voz e violão - instrumento que Rosa não toca em "Romance". Mas, com seus detalhes, também é um álbum que cresce a cada nova audição.

As faixas citadas até agora são mais do que conhecidas por amantes da canção brasileira, mas Rosa também investe em material menos batido: do repertório pré-bossa nova, como os sambas-canções "Nem eu" (Dorival Caymmi), "Neste mesmo lugar" (Armando Cavalcanti e Klecius Caldas) e "Nossos momentos" (Luis Reis e Haroldo Barbosa), ao pós, incluindo "Doce presença" (Ivan Lins e Vitor Martins), "Altos e baixos" (Sueli Costa e Aldir Blanc) e "Cadê você?" (João Donato e Chico Buarque). E, para o público de Rosa fora do Brasil - que, por sinal, é bem maior do que o daqui -, essas são músicas praticamente virgens.

De volta ao personagem inicial dessa conversa, depois de assistir e se encantar com a voz e o violão de João Gilberto no Carnegie Hall, em show no princípio dos anos 1960, Miles Davis disse que o mestre baiano seria capaz de transformar em música até o catálogo telefônico de Nova York. Sem chegar a esse extremo, Rosa Passos faz outras belezas com as belas canções que escolhe para jazz-romancear.

(© O Globo)

Saiba+ sobre Rosa Passos


João, o tempo e o vento

Em primeiro show do ano do cinqüentenário da bossa nova, músico brinca com o andamento das músicas e lamenta o "ventinho" no Carnegie Hall

Michael Weintrob/Divulgação

João Gilberto durante apresentação no Carnegie Hall
 

SÉRGIO DÁVILA
ENVIADO ESPECIAL A NOVA YORK

João Gilberto desafiou o tempo e o vento em sua primeira apresentação do ano em que a bossa nova completa seu cinqüentenário. Aos 77 anos, completados no último dia 10, o baiano de Juazeiro tocou duas dezenas de versões clássicas do gênero que ajudou a inventar em apresentação para 2.000 pessoas, que lotavam a sala principal do Carnegie Hall, em Nova York, no domingo.

Se não ousou na sua lista de músicas, fez isso na interpretação delas e ao incluir na abertura do bis a versão que Braguinha (1907-2006) criou para a canção patriótica "God Bless America", que Irving Berlin (1888-1989) começou a compor em 1918 e que os norte-americanos adotaram como um de seus hinos não-oficiais -os EUA não têm um hino oficial.

De certa maneira, João Gilberto cantando "Deus salve a América" ("Verdes mares/ Florestas/ Lindos campos abertos em flor") no palco que o ajudou a consagrar em 1962 era sua maneira de dizer "obrigado" ao país. Modesto e tímido, ele disse que pedia "permissão" para fazê-lo e lembrou que cantava a música quando jovem no Brasil -ele e milhares de estudantes e pracinhas brasileiros nas décadas de 40 e 50.

Foi a primeira apresentação do músico na casa desde 2004, e o primeiro show que faz depois de ter se desligado de sua empresária de mais de uma década, Carmela Forsin. Perto dos 80, João passou o controle de sua carreira a Claudia Faissol, mãe de uma de suas filhas, Luísa -a outra, Bebel Gilberto, expoente de um gênero derivado do do pai, a "new bossa", apresentava-se naquela noite em outro lugar.

Agora, depois de cinco anos de ausência dos palcos brasileiros, o músico faz quatro shows no festival Itaúbrasil. Pela minitemporada em comemoração dos 50 anos da bossa nova, levará um cachê estimado em R$ 2 milhões.

Roupa nova

Mais calvo, um pouco rouco, com ritmo pouca coisa mais lento que nos últimos shows, João Gilberto ainda é João Gilberto. Ao desfilar o rosário de sambas, boleros e sambas-bossas que colocou na história da música popular brasileira apenas por tê-los tocado um dia, o músico apresentou uma roupagem nova de algumas canções que é o mais próximo a que chegaria de uma "regravação".

Foi assim, por exemplo, com a icônica "Chega de Saudade", em que esticou as pausas entre as frases -como em "Que... sem ela não pode ser", "Que... sem ela não há paz, não há beleza" ou "Que os beijinhos que eu darei... na sua boca"-, sussurrou "abraços e beijinhos" e cuja melodia tornou mais grave, o que conseguiu ao cantar "boooleza", em vez de "beleza", e "mooolancolia", em vez de "melancolia".

Ou com "Lígia", uma revolução que comprova a capacidade do músico de se reinventar e, com isso, reinventar o gênero. Ele cantou a música inteira de Tom Jobim depois modificada por Chico Buarque sem mencionar nenhuma vez o nome-título da musa. Sorriu triste na frase "as bobagens de amor que eu iria dizer", emocionando.

Nessas horas e em outras interpretações, como as de "O Pato", "Aos Pés da Santa Cruz" e "Samba de Uma Nota Só", em que mais sussurrou e chegou mesmo a fazer uma segunda voz, ficou mais evidente sua maneira de brincar com o tempo, o andamento das músicas, apressando e atrasando as frases e a melodia, que se encontram no fim.

Animado, ele ritmava as músicas com o pé esquerdo, não numa batida sincopada, mais em ondas que ensaiava com a perna inteira. Nas músicas em que gostava mais do resultado que ouvia pelos dois retornos à sua frente, balançava as duas pernas, afastando e aproximando os joelhos, o que em outros mortais parece ser o tédio na sala de espera do consultório, mas em "joãogilbertês" pode ser descrito como dança.

Momentos de tensão

A noite de quase duas horas e duas dezenas de músicas não foi livre de momentos de tensão. Por três vezes, João reclamou do "vento". "Desculpe falar uma coisa, tem um ventinho aqui na minha cabeça, me faz um pouco afônico", disse, depois de cantar a italiana "Estate". Voltaria após "Wave": "Please, esse ventinho".

A tensão na platéia era evidente. Numa mistura rara de histeria e evento psicossomático coletivos, muitos começaram a sentir eles próprios o vento, não uma brisa leve, mas rajadas de ar ártico congelante. É que, num dos shows na casa, há alguns anos, João chegou a se levantar a 15 minutos de espetáculo e deixar o palco por problemas técnicos.

Mas, na terceira vez em que reclamou do ar-condicionado, após o bolero "Eclipse de Luna", o fato já tinha entrando para o folclore. "Olha o meu ventinho outra vez, please", cantarolou. A platéia riu, aliviada.

O vento estava domado, e a noite, salva.

(© Folha de S. Paulo)

Erramos da Folha de S. Paulo: Diferentemente do que afirmou o texto "João, o tempo e o vento", apesar de não ter uma poesia e uma música feitas especificamente para ser seu hino nacional, os Estados Unidos adotaram a canção patriótica "The Star-Spangled Banner" como tal em 1931.

Com relação a este tema, saiba mais (arquivo NordesteWeb)


powered by FreeFind