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Filme com fome

29/06/2008

 

 

Alexandre Lima/Divulgação

A menina Alessandra, 6, mama garapa, mistura de água com açúcar
 

José Padilha, diretor de "Tropa de Elite", conclui "Garapa", documentário em que retrata a luta de três famílias do Ceará contra a miséria

SILVANA ARANTES
ENVIADA ESPECIAL AO RIO

"Em um país que é conduzido pelos princípios da razão, a miséria é motivo de vergonha. Em um país que não é conduzido pelos princípios da razão, a riqueza é motivo de vergonha."

Foi como se a frase no livro "Desobediência Civil" (Henry David Thoreau) saltasse da página, quando José Padilha a leu.

A citação de Thoreau soou ao diretor de "Tropa de Elite" -fenômeno popular no Brasil e vencedor do Festival de Berlim deste ano- como uma síntese do entorno moral de seu novo filme, "Garapa".

De volta ao documentário, gênero que o projetou no cinema, a partir de "Ônibus 174" (2002), sobre um sobrevivente da chacina da Candelária convertido em criminoso, Padilha desta vez registra a situação de quem passa fome no Brasil.

No lugar do leite

O título do filme remete à principal "refeição" servida às crianças de duas das três famílias cearenses sujeitas à fome, cuja rotina o diretor acompanhou durante 30 dias.
À falta de leite, as mamadeiras enchem-se de água com açúcar na casa de Robertina (11 filhos) e na de Rosa (três filhos), que vivem, respectivamente, nas cercanias da cidade de Choró e na zona rural em torno da Vila Olho d'Água.

No barraco de Lúcia (três filhas), na periferia de Fortaleza, a garapa não é comum, mas a situação não é em nada melhor.

São das crianças as primeiras imagens do filme, rodado em preto-e-branco. No chão de terra, dois irmãos correm nus. Eles brincam, enquanto sua mãe caminha mais de 12 km para buscar leite. Em vão.

Não se notam sinais de folia em Vila Olho d'Água, mas é Carnaval, e "a pessoa que entrega o leite não estava disponível", diz a funcionária do posto da prefeitura, onde pende um cartaz do partido à frente da gestão. Rosa faz meia-volta, e a câmera a segue, de longe.

"Minha idéia era fazer um filme que fosse cru, o mais básico possível em termos de cinema; um filme com fome, tão próximo do cinema verdade quanto eu conseguisse", diz Padilha.

É norma da corrente do cinema verdade que o diretor não interfira na realidade filmada. Isso Padilha não conseguiu. Numa cena do filme, Ronaldo, 4, chora, com dor de dentes, efeito do consumo de açúcar da garapa. Sem dinheiro, dentista nem remédio ao alcance, os pais nada podem fazer.

O espectador descobre que Padilha deu remédio ao garoto, quando o pai da criança menciona o fato, em cena seguinte.

"Algumas coisas não dava para não fazer. Não dava! Era impossível não dar um remédio para uma criança sofrendo. Eu dei. Tentei interferir o mínimo possível, mas às vezes era impossível. Deixei uma das minhas interferências no filme, para mostrar que é difícil ficar indiferente a isso", diz Padilha.

A reação que o diretor espera do espectador é que este abandone a indiferença em relação ao problema da fome no Brasil.

Citando o zoólogo inglês Desmond Morris, Padilha diz que "uma relação despersonalizada não é uma relação biologicamente humana. A maioria das pessoas não sente empatia, não se move emocionalmente para ajudar quem desconhece".

"Garapa" ambiciona, segundo Padilha, "resgatar a individualidade dessas pessoas que muitas vezes são olhadas só pela perspectiva macroscópica".

Nessa escala, "que também deve existir", o diretor estima que seus personagens vivam na mesma condição de, "no mínimo, 11 milhões de brasileiros".

Fundo do poço

A cifra é deduzida de recente pesquisa do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) com os usuários do programa Bolsa Família -11,1 milhões de famílias cadastradas, nas quais o Ibase estima 51 milhões de indivíduos.

"A pesquisa pega famílias em situações diferenciadas de pobreza, desde gente que não tem renda e apresenta outra série de vulnerabilidades até os que se enquadram no programa, mas têm uma certa renda regular. "Garapa" fala das famílias que estão no fundo do poço", diz Francisco Menezes, diretor do Ibase. Lá estão 11 milhões, segundo a pesquisa.

No filme de Padilha, eles se encarnam na família de Rosa, cadastrada no Bolsa Família, sua única fonte de renda.

Mas há famintos brasileiros que não aparecem nas estatísticas, como a Lúcia de "Garapa". Ela não possui documento de identidade, essencial ao cadastramento no Bolsa Família. Logo, Lúcia não entra na conta.

Padilha encontrou-a numa ONG suíça que se ocupa de crianças desnutridas em Fortaleza. Pediu autorização para filmá-la, e ela concedeu à câmera o testemunho de sua miséria financeira e emocional. Ela recebe esmolas de vizinhos e insultos recorrentes do marido.

No país em que os rótulos "estética da fome" e "cosmética da fome" são grudados por críticos de cinema, em sinal de aprovação ou desprezo, aos filmes em torno dos miseráveis, Padilha tratou Lúcia e os demais personagens de com um respeito sem comiseração.

"É um filme com uma visão de constatação. Não toca a tecla emocional. É mais racional, não no sentido de frio e distanciado, mas no que leva a pensar uma solução, ainda que o cinema não seja um instrumento de mobilização social", afirma o montador Felipe Lacerda.

Qualquer que seja a solução proposta para erradicar a fome no Brasil, Padilha tem seu axioma: "É eticamente inadmissível que alguém, no grupo dos beneficiados históricos deste país, olhe para os miseráveis que não têm o que comer e diga que os R$ 58 que o governo dá a ele são uma política errada".

"Garapa" atesta, porém, que o auxílio do Bolsa Família é insuficiente aos que o recebem, além de inacessível aos miseráveis sem documentados.

Em suma, o diretor de "Tropa de Elite" fez outro retrato de um país onde "o Estado é globalmente ineficiente -na segurança pública, na Justiça, na educação e também nos programas sociais", como ele diz.

(© Folha de S. Paulo)


1ª SESSÃO ESTÁ PREVISTA PARA 5 DE SETEMBRO

A primeira exibição pública de "Garapa" está prevista para 5 de setembro, em Recife, nas homenagens ao centenário de nascimento de Josué de Castro, autor de "Geografia da Fome" (1956) e da provocação: "Metade da humanidade não come, e a outra metade não dorme, com medo da que não come". A estréia do longa nos cinemas não tem data definida. Segundo o diretor José Padilha, "não é um parâmetro comercial" que deve comandar "o lançamento desse filme, mas sim o momento mais propício para colocar a questão [da fome] em voga de novo". Ele cogita que as eleições de outubro possam ser esse momento. "Garapa" foi feito com R$ 620 mil, com patrocínio das leis de renúncia fiscal.

Frase

Algumas coisas não dava para não fazer. Era impossível não dar um remédio para uma criança sofrendo. Eu dei. Tentei interferir o mínimo possível, mas às vezes era impossível. Deixei uma das minhas interferências no filme, para mostrar que é difícil ficar indiferente a isso (
JOSÉ PADILHA, diretor de "Garapa")

(© Folha de S. Paulo)


"Uso do açúcar é estratégia das famílias pobres"

DA ENVIADA AO RIO

O Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas entrevistou 5.000 usuários do cartão Bolsa Família, em 229 municípios brasileiros, entre setembro e outubro de 2007. O resultado da pesquisa foi divulgado na última sexta.

Francisco Menezes, diretor do Ibase, que colaborou com o projeto de "Garapa" dando informações ao diretor José Padilha, afirma que "o filme consegue mostrar como se concretizam as coisas vistas na pesquisa".

Sobre o uso da garapa como alimento primordial, conforme o filme registra, Menezes diz: "O açúcar é uma estratégia das famílias em extrema pobreza. Compram uma quantidade de alimentos que dura até determinado dia e uma quantidade maior de açúcar, para mantê-los de pé até receber de novo o Bolsa ou outro programa de governo".

As famílias do filme enquadram-se no perfil da "insegurança alimentar grave: o caso de pessoas em situação permanente de falta de comida". (SA)

(© Folha de S. Paulo)


Novo filme será drama em prisão

Ator norte-americano Don Cheadle terá o papel principal; produtora de Brad Pitt conduz projeto

Diretor escreve roteiro sobre história de traficante inglês preso na Bolívia e reserva "papel fenomenal" para o ator Wagner Moura

DA ENVIADA AO RIO

A prisão boliviana de San Pedro, à qual se reputa a produção de cocaína de alta qualidade, será a protagonista de um novo filme de ficção escrito e dirigido pelo cineasta José Padilha.

É lá que se desenrola a saga pela sobrevivência do traficante de drogas inglês Thomas McFadden, relatada no livro "Marching Powder", de Rusty Young, que Padilha adapta num roteiro para cinema.

"É uma prisão muito singular, cujo funcionamento é uma metáfora da vida", diz o diretor. O ator norte-americano Don Cheadle ("Hotel Ruanda"), aceitou o papel de McFadden.

Para o brasileiro Wagner Moura, o consagrado Capitão Nascimento de "Tropa de Elite", Padilha diz que reserva "um papel fenomenal".

Os produtores, entre os quais está a Plan B, do astro Brad Pitt, ainda não determinaram a data das filmagens. Além de "Marching Powder", Padilha deverá rodar outra produção internacional, com o estúdio Warner, cuja trama gira em torno dos mecanismos de financiamento do terrorismo.

No Brasil, o cineasta tem dois projetos em andamento. Ele produz "Paraísos Artificiais", longa de seu sócio, Marcos Prado ("Estamira"), a ser filmado no começo do ano que vem.

Com o sociólogo Luiz Eduardo Soares, escreve o roteiro de "Nunca Antes na História deste País", que, segundo ele, "relata a política na sua interação com os empresários, a mídia, os artistas, a segurança pública".

Considerando que o cineasta Fernando Meirelles anunciou, no ano passado, a intenção de fazer um documentário sobre o Congresso Nacional, e que o montador Felipe Lacerda ("Ônibus 174", "Central do Brasil") finaliza o documentário "Fazendo Política", sobre os meandros da atividade, Padilha avalia que o Brasil tem "uma safra de filmes a respeito da elite vindo aí".

Na opinião do cineasta, "o cinema brasileiro está pronto para começar a discutir essas coisas outras [que a miséria]".

Meirelles reafirma sua intenção de abordar a política brasileira num filme, mas diz que o projeto ainda não tem data para sair do papel.

"Quero fazer o documentário, mas, com o lançamento de "Ensaio sobre a Cegueira" [previsto para o dia 12/9] e a minissérie ["Som e Fúria", que dirigirá para ser exibida na TV Globo], parei de pensar nisso. Mas vai sair. Sei lá quando", afirma. (SILVANA ARANTES)

(© Folha de S. Paulo)

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