Alexandre Lima/Divulgação
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A menina Alessandra, 6, mama garapa, mistura de água com açúcar
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José Padilha, diretor de "Tropa de Elite", conclui "Garapa",
documentário em que retrata a luta de três famílias do Ceará contra a
miséria
SILVANA ARANTES
ENVIADA ESPECIAL AO RIO
"Em um país que é conduzido pelos princípios da razão, a miséria é motivo de
vergonha. Em um país que não é conduzido pelos princípios da razão, a
riqueza é motivo de vergonha."Foi como se a frase no livro "Desobediência
Civil" (Henry David Thoreau) saltasse da página, quando José Padilha a leu.
A citação de Thoreau soou ao diretor de "Tropa de Elite" -fenômeno
popular no Brasil e vencedor do Festival de Berlim deste ano- como uma
síntese do entorno moral de seu novo filme, "Garapa".
De volta ao documentário, gênero que o projetou no cinema, a partir de
"Ônibus 174" (2002), sobre um sobrevivente da chacina da Candelária
convertido em criminoso, Padilha desta vez registra a situação de quem passa
fome no Brasil.
No lugar do leite
O título do filme remete à principal "refeição" servida às crianças de
duas das três famílias cearenses sujeitas à fome, cuja rotina o diretor
acompanhou durante 30 dias.
À falta de leite, as mamadeiras enchem-se de água com açúcar na casa de
Robertina (11 filhos) e na de Rosa (três filhos), que vivem,
respectivamente, nas cercanias da cidade de Choró e na zona rural em torno
da Vila Olho d'Água.
No barraco de Lúcia (três filhas), na periferia de Fortaleza, a garapa
não é comum, mas a situação não é em nada melhor.
São das crianças as primeiras imagens do filme, rodado em preto-e-branco.
No chão de terra, dois irmãos correm nus. Eles brincam, enquanto sua mãe
caminha mais de 12 km para buscar leite. Em vão.
Não se notam sinais de folia em Vila Olho d'Água, mas é Carnaval, e "a
pessoa que entrega o leite não estava disponível", diz a funcionária do
posto da prefeitura, onde pende um cartaz do partido à frente da gestão.
Rosa faz meia-volta, e a câmera a segue, de longe.
"Minha idéia era fazer um filme que fosse cru, o mais básico possível em
termos de cinema; um filme com fome, tão próximo do cinema verdade quanto eu
conseguisse", diz Padilha.
É norma da corrente do cinema verdade que o diretor não interfira na
realidade filmada. Isso Padilha não conseguiu. Numa cena do filme, Ronaldo,
4, chora, com dor de dentes, efeito do consumo de açúcar da garapa. Sem
dinheiro, dentista nem remédio ao alcance, os pais nada podem fazer.
O espectador descobre que Padilha deu remédio ao garoto, quando o pai da
criança menciona o fato, em cena seguinte.
"Algumas coisas não dava para não fazer. Não dava! Era impossível não dar
um remédio para uma criança sofrendo. Eu dei. Tentei interferir o mínimo
possível, mas às vezes era impossível. Deixei uma das minhas interferências
no filme, para mostrar que é difícil ficar indiferente a isso", diz Padilha.
A reação que o diretor espera do espectador é que este abandone a
indiferença em relação ao problema da fome no Brasil.
Citando o zoólogo inglês Desmond Morris, Padilha diz que "uma relação
despersonalizada não é uma relação biologicamente humana. A maioria das
pessoas não sente empatia, não se move emocionalmente para ajudar quem
desconhece".
"Garapa" ambiciona, segundo Padilha, "resgatar a individualidade dessas
pessoas que muitas vezes são olhadas só pela perspectiva macroscópica".
Nessa escala, "que também deve existir", o diretor estima que seus
personagens vivam na mesma condição de, "no mínimo, 11 milhões de
brasileiros".
Fundo do poço
A cifra é deduzida de recente pesquisa do Instituto Brasileiro de
Análises Sociais e Econômicas (Ibase) com os usuários do programa Bolsa
Família -11,1 milhões de famílias cadastradas, nas quais o Ibase estima 51
milhões de indivíduos.
"A pesquisa pega famílias em situações diferenciadas de pobreza, desde
gente que não tem renda e apresenta outra série de vulnerabilidades até os
que se enquadram no programa, mas têm uma certa renda regular. "Garapa" fala
das famílias que estão no fundo do poço", diz Francisco Menezes, diretor do
Ibase. Lá estão 11 milhões, segundo a pesquisa.
No filme de Padilha, eles se encarnam na família de Rosa, cadastrada no
Bolsa Família, sua única fonte de renda.
Mas há famintos brasileiros que não aparecem nas estatísticas, como a
Lúcia de "Garapa". Ela não possui documento de identidade, essencial ao
cadastramento no Bolsa Família. Logo, Lúcia não entra na conta.
Padilha encontrou-a numa ONG suíça que se ocupa de crianças desnutridas
em Fortaleza. Pediu autorização para filmá-la, e ela concedeu à câmera o
testemunho de sua miséria financeira e emocional. Ela recebe esmolas de
vizinhos e insultos recorrentes do marido.
No país em que os rótulos "estética da fome" e "cosmética da fome" são
grudados por críticos de cinema, em sinal de aprovação ou desprezo, aos
filmes em torno dos miseráveis, Padilha tratou Lúcia e os demais personagens
de com um respeito sem comiseração.
"É um filme com uma visão de constatação. Não toca a tecla emocional. É
mais racional, não no sentido de frio e distanciado, mas no que leva a
pensar uma solução, ainda que o cinema não seja um instrumento de
mobilização social", afirma o montador Felipe Lacerda.
Qualquer que seja a solução proposta para erradicar a fome no Brasil,
Padilha tem seu axioma: "É eticamente inadmissível que alguém, no grupo dos
beneficiados históricos deste país, olhe para os miseráveis que não têm o
que comer e diga que os R$ 58 que o governo dá a ele são uma política
errada".
"Garapa" atesta, porém, que o auxílio do Bolsa Família é insuficiente aos
que o recebem, além de inacessível aos miseráveis sem documentados.
Em suma, o diretor de "Tropa de Elite" fez outro retrato de um país onde
"o Estado é globalmente ineficiente -na segurança pública, na Justiça, na
educação e também nos programas sociais", como ele diz.
(©
Folha de S. Paulo)
1ª SESSÃO ESTÁ PREVISTA PARA 5 DE SETEMBRO
A primeira exibição pública de "Garapa" está prevista para 5 de
setembro, em Recife, nas homenagens ao centenário de nascimento de Josué
de Castro, autor de "Geografia da Fome" (1956) e da provocação: "Metade
da humanidade não come, e a outra metade não dorme, com medo da que não
come". A estréia do longa nos cinemas não tem data definida. Segundo o
diretor José Padilha, "não é um parâmetro comercial" que deve comandar
"o lançamento desse filme, mas sim o momento mais propício para colocar
a questão [da fome] em voga de novo". Ele cogita que as eleições de
outubro possam ser esse momento. "Garapa" foi feito com R$ 620 mil, com
patrocínio das leis de renúncia fiscal.
Frase
Algumas coisas não dava para não fazer. Era impossível não dar um
remédio para uma criança sofrendo. Eu dei. Tentei interferir o mínimo
possível, mas às vezes era impossível. Deixei uma das minhas
interferências no filme, para mostrar que é difícil ficar indiferente a
isso (JOSÉ
PADILHA, diretor de "Garapa")
(©
Folha de S. Paulo)
"Uso do açúcar é estratégia das famílias pobres"
DA ENVIADA AO RIO
O Instituto Brasileiro de Análises Sociais e
Econômicas entrevistou 5.000 usuários do cartão Bolsa Família, em 229
municípios brasileiros, entre setembro e outubro de 2007. O resultado da
pesquisa foi divulgado na última sexta.
Francisco Menezes, diretor do Ibase, que colaborou com o projeto de
"Garapa" dando informações ao diretor José Padilha, afirma que "o filme
consegue mostrar como se concretizam as coisas vistas na pesquisa".
Sobre o uso da garapa como alimento primordial, conforme o filme
registra, Menezes diz: "O açúcar é uma estratégia das famílias em
extrema pobreza. Compram uma quantidade de alimentos que dura até
determinado dia e uma quantidade maior de açúcar, para mantê-los de pé
até receber de novo o Bolsa ou outro programa de governo".
As famílias do filme enquadram-se no perfil da "insegurança alimentar
grave: o caso de pessoas em situação permanente de falta de comida".
(SA)
(©
Folha de S. Paulo)
Novo filme será drama em prisão
Ator norte-americano Don Cheadle terá o papel
principal; produtora de Brad Pitt conduz projeto
Diretor escreve roteiro sobre história de
traficante inglês preso na Bolívia e reserva "papel fenomenal" para o
ator Wagner Moura
DA ENVIADA AO RIO
A prisão boliviana de San Pedro, à qual se reputa a
produção de cocaína de alta qualidade, será a protagonista de um novo
filme de ficção escrito e dirigido pelo cineasta José Padilha.
É lá que se desenrola a saga pela sobrevivência do traficante de
drogas inglês Thomas McFadden, relatada no livro "Marching Powder", de
Rusty Young, que Padilha adapta num roteiro para cinema.
"É uma prisão muito singular, cujo funcionamento é uma metáfora da
vida", diz o diretor. O ator norte-americano Don Cheadle ("Hotel
Ruanda"), aceitou o papel de McFadden.
Para o brasileiro Wagner Moura, o consagrado Capitão Nascimento de
"Tropa de Elite", Padilha diz que reserva "um papel fenomenal".
Os produtores, entre os quais está a Plan B, do astro Brad Pitt,
ainda não determinaram a data das filmagens. Além de "Marching Powder",
Padilha deverá rodar outra produção internacional, com o estúdio Warner,
cuja trama gira em torno dos mecanismos de financiamento do terrorismo.
No Brasil, o cineasta tem dois projetos em andamento. Ele produz
"Paraísos Artificiais", longa de seu sócio, Marcos Prado ("Estamira"), a
ser filmado no começo do ano que vem.
Com o sociólogo Luiz Eduardo Soares, escreve o roteiro de "Nunca
Antes na História deste País", que, segundo ele, "relata a política na
sua interação com os empresários, a mídia, os artistas, a segurança
pública".
Considerando que o cineasta Fernando Meirelles anunciou, no ano
passado, a intenção de fazer um documentário sobre o Congresso Nacional,
e que o montador Felipe Lacerda ("Ônibus 174", "Central do Brasil")
finaliza o documentário "Fazendo Política", sobre os meandros da
atividade, Padilha avalia que o Brasil tem "uma safra de filmes a
respeito da elite vindo aí".
Na opinião do cineasta, "o cinema brasileiro está pronto para começar
a discutir essas coisas outras [que a miséria]".
Meirelles reafirma sua intenção de abordar a política brasileira num
filme, mas diz que o projeto ainda não tem data para sair do papel.
"Quero fazer o documentário, mas, com o lançamento de "Ensaio sobre a
Cegueira" [previsto para o dia 12/9] e a minissérie ["Som e Fúria", que
dirigirá para ser exibida na TV Globo], parei de pensar nisso. Mas vai
sair. Sei lá quando", afirma.
(SILVANA ARANTES)
(©
Folha de S. Paulo)