Cantora tem discos da década de 70 reunidos em caixa de 11 CDs, com
faixas bônus e um título nunca lançado no Brasil
Lauro Lisboa Garcia
No auge da popularidade - e da pasteurização sonora, como se dizia na
época -, Simone se arvorava a vender 1 milhão de discos. Conseguiu
ultrapassar essa marca à custa de concessões ao mais comercial, com
produtos que o tempo se encarregou de jogar no limbo. No começo, porém,
não era assim. Para quem quiser comprovar, estão aí seus melhores
álbuns, reunidos na caixa O Canto da Cigarra nos Anos 70 (EMI), com 11
CDs (R$ 185), que a princípio não serão vendidos separadamente.
O projeto é do pesquisador Rodrigo Faour, que também assina os textos
dos encartes. "Esse trabalho foi fruto da minha insistência junto à EMI.
Acho que Simone tem uma importância fundamental para a evolução e a
modernização da MPB e essa história nunca tinha sido contada", diz
Faour.
Com exceção de um título, Festa Brasil, inédito em qualquer formato no
País (leia no quadro abaixo), os demais já tinham saído em CD. Outra
novidade é que três desses álbuns - Quatro Paredes (1974), Gotas d?Água
(1975) e Simone (1980) - voltam com faixas-bônus. De acordo com a época
em que surgiu, magnética e incisiva, os interesses de Simone eram
diferentes dos da segunda década de sua carreira, bem como da estética
sonora de seus (piores) discos. "Também acho a sonoridade dos anos 80
bem datada, não só no Brasil, mas no mundo todo", concorda hoje a
cantora. Ela, que completa 60 anos no próximo Natal, está começando a
escolher repertório para um CD que vai gravar a partir de junho pela
Biscoito Fino.
Incensada pela mesma crítica que a desprezaria na década seguinte, a
Simone dos anos 70 se estabeleceu com ousadia, originalidade e
convicção, seja no aspecto político, musical ou feminino. "Não sei que
discos são considerados os mais importantes da minha carreira nem por
que motivos", diz a cantora. "Acho que a década de 70 foi uma grande
década da música brasileira, importantíssima para a minha geração em
geral."
No primeiro disco, Simone (1973), ela gravou Joyce, Ivan Lins, três de
um certo Daltõ, Taiguara, a marcha-rancho Bandeira Branca (Max
Nunes/Laércio Alves) e Maior Que o Meu Amor (R. Barros), do repertório
de Roberto Carlos.
Apesar de ser um disco um tanto irregular, era notável o timbre da voz e
a personalidade que já se delineava. Simone cantava com uma naturalidade
sedutora e deu um passo significativo com Quatro Paredes, que teve
direção musical do maestro Gaya, orquestrações de Luiz Eça e Hermínio
Bello de Carvalho (figura fundamental em sua carreira no período) como
assistente de produção.
Gravou novamente uma canção do repertório de Roberto (Proposta) e
equilibrou novatos (João Bosco e Aldir Blanc, Aquino, Hermínio, Thereza
Tinoco) e consagrados (Luiz Gonzaga, João de Barro, Caetano Veloso,
Roberto e Erasmo). Esse disco veio na sequência de três outros que
Simone dividiu com Roberto Ribeiro e João de Aquino (À Bruxelles),
Aquino e Hermínio (Festa Brasil) Marcia, Leny Andrade e Ari Vilela
(Expo-Som), este ao vivo.
Naqueles anos, Simone contou com a colaboração de produtores e grandes
músicos com ideias ousadas. Gotas d?Água, produzido por Hermínio e
Milton Nascimento, reúne os mineiros do Clube da Esquina. Além de Milton
(que ela aponta como sua principal referência de intérprete), participam
do disco Wagner Tiso, Toninho Horta, Nivaldo Ornellas, Novelli, Pascoal
Meirelles. O fabuloso elenco de instrumentistas contou também com o
Tamba Trio (Luiz Eça, Bebeto Castilho e Elcio Milito), Paulo Moura,
Wilson das Neves, Chico Batera, Dino 7 Cordas, entre outros.
João Bosco, que toca violão em sua Latin Lover (letra de Aldir Blanc),
foi um dos compositores modernos em que ela apostou no período. Nos anos
contemplados pela caixa, ela lançou ou reforçou a potência do
cancioneiro de Milton, Chico Buarque, Ivan Lins, Sueli Costa, Paulo
Cesar Pinheiro e Gonzaguinha. Simone diz que se identificava com eles em
"literalmente tudo".
A melhor sequência de discos na carreira de Simone tem Face a Face
(1977), Cigarra (1978) e Pedaços (1979). A canção Cigarra, feita
especialmente para ela por Milton Nascimento e Ronaldo Bastos, abria
outro bom álbum, recheado de novidades de Milton, Gonzaguinha, Gilberto
Gil, Sueli Costa e regravações de Fagner e Abel Silva, Lupicínio
Rodrigues e de novo Roberto e Erasmo.
Ao mesmo tempo em que cantava com maior desenvoltura, ela gravou Face a
Face (que talvez tenha ficado melhor com o tempo) sob uma certa pressão,
como disse na época, porque trabalharia sem Hermínio. "Foi o disco que
eu tomei as rédeas e me produzi, junto com Renato Corrêa", lembra a
cantora hoje. "Mas fiquei muito feliz com o disco."
Pedaços é considerado o melhor álbum da carreira de
Simone por vários motivos. Um deles é o contagiante samba Tô Voltando
(Maurício Tapajós/P.C. Pinheiro), que funde com maestria sensualidade e
intenção política, como metáfora do retorno dos exilados, depois de
extinto o AI-5. Virou uma espécie de hino da abertura, como O Bêbado e a
Equilibrista (João Bosco/Aldir Blanc) foi o da anistia, na voz de Elis
Regina.
Respirava-se, então, ares menos carregados depois de anos de chumbo. Não
por acaso, o disco abre com Começar de Novo (Ivan Lins/Vitor Martins).
Para além de mais metáfora política, é um manifesto de liberação
feminista, adequadamente utilizado como tema de abertura (sem
trocadilho) do programa Malu Mulher, que fez história na televisão. Além
dessas, há várias outras pedradas de Ivan e Martins, Sueli Costa com
Pinheiro e Abel Silva, Fátima Guedes, Milton e Fernando Brant, Chico
Buarque, além de mais uma do repertório do "Rei", Outra Vez, de Isolda.
Em Ao Vivo (1980), Simone ressuscitou a panfletária Pra Não Dizer Que
Não Falei das Flores (Geraldo Vandré). Bastante criticado, no entanto, o
disco não deixa de ter sua importância na história da cantora, porque
foi o registro de um show de enorme sucesso no Canecão, a arrancada para
a consagração nacional. O último CD da caixa, da virada para a década
seguinte, leva apenas seu nome e marcou sua saída da EMI para a Sony.
Cantando como nunca, ela contou mais uma vez com um time invejável de
músicos e os mesmos compositores com quem se identificava - como Ivan e
Martins, autores de Atrevida, um dos hits dentre as inéditas do disco.
Aí vieram de fato os penosos anos 80 e muito de sua música desencantou
na assepsia demasiada em tons de branco e azul, com um acerto ou outro.
Como Roberto...