Em seu retorno ao documentário, o diretor e roteirista José Padilha
("Tropa de Elite") desenvolve investigação de método muito distinto do
utilizado em "Ônibus 174" (2002), que recriava os acontecimentos de uma
tarde no Rio de Janeiro e reconstituía a trajetória de um morto,
recorrendo a imagens de arquivo e a depoimentos.
"Garapa" busca abordagem mais antropológica, ao fazer o registro das
condições de vida de três famílias no interior do Ceará.
Imagens em preto e branco captadas por uma equipe reduzida apresentam o
cotidiano dessas pessoas, dentro de suas casas e nas cercanias -no bar, no
centro de assistência social, na rua.
A estratégia tem o objetivo de aproximar o espectador do que representa
concretamente a fome para cerca de 15 % da população do planeta (920 milhões
de pessoas, segundo a ONU). Os letreiros iniciais apresentam os números; as
imagens que se seguem os traduzem em capital humano.
O "hiper-realismo" de "Garapa" cumpre esse objetivo, mas expõe
brutalmente a intimidade daquelas famílias, trazendo à baila informações
(sobre descontrole de natalidade, por exemplo) que, a pretexto de iluminar
certas circunstâncias educacionais, políticas e assistenciais, talvez
caracterizem um certo voyeurismo social.
Padilha foi autorizado por elas a fazer isso, como informam os créditos
finais. É o bastante para justificar o sentido que "Garapa" produz com suas
imagens? Era para ser um documentário sobre a fome, mas acabou se tornando
também um bom objeto para o debate da ética do audiovisual.
Em Berlim, logo após a
exibição de Garapa no Forum, houve um debate. A imensa maioria das 300
pessoas que compunham a plateia ficou para discutir o filme com o
diretor José Padilha, vencedor do Urso de Ouro, no ano passado, por
Tropa de Elite. Um jovem alemão perguntou a Padilha qual o seu objetivo
com o filme que passa hoje no É Tudo Verdade e que trata da fome,
mostrando pessoas que enganam o estômago tomando um caldo de água com
açúcar. Padilha queria dinheiro para criar algum fundo de combate ao
problema? Visivelmente emocionado, o garoto acrescentou que, se fosse
isso, lhe daria, naquele momento, todo o dinheiro que tinha. Padilha foi
incisivo. A fome se combate por meio de vontade política, de
planejamento de Estado - e é preciso colocar no plural, de Estados, pois
se trata de um problema universal. Em todo o mundo, são 810 milhões de
pessoas famintas.
Por que o filme? "Para que você veja" - para que todo o mundo veja o que
não quer ver, a fome crônica, que debilita o indivíduo, consome suas
forças, embota seu cérebro e transforma as pessoas em farrapos humanos.
José Padilha estará hoje em São Paulo para a exibição de Garapa no 14º
Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade. No ano passado,
o filme chegou a ser uma das promessas anunciadas da Mostra, mas
terminou não integrando a programação. Na sequência do É Tudo Verdade,
Garapa vai a Nova York, para seis exibições no Tribeca Festival, de
Robert De Niro, entre 24 deste mês e 2 de maio.
Desde Berlim, e antes disso, claro, Padilha tem refletido muito. Para
ele, Garapa é seu filme mais universal. Ônibus 174 e Tropa de Elite
propõem diferentes enfoques de uma realidade que pode ser próxima à de
outros países, mas são profundamente encravados na paisagem brasileira
e, mais do que isso, carioca. Sandro, o menino de rua, e o Capitão
Nascimento, o policial militar, mergulham intensamente na violência e o
filme tenta entender, ou expor, o que os leva a essas viagens. Já o
problema de Garapa ultrapassa, e muito, as fronteiras do País. Padilha
filma três famílias. Em todo o Brasil, são cerca de três milhões, pois
as estatísticas contam 11 milhões de famintos. Eles compõem uma fatia
mínima, pouco mais de 1%, dos 810 milhões nas mesmas condições,
espalhados pelo planeta.
São filmes em tudo diferentes, mas próximos na cabeça do diretor.
Padilha cita o inglês Desmond Morris, que analisou os comportamentos
humanos e animais com base na zoologia. Por mais importantes, e
necessárias, que sejam as estatísticas, Padilha, com base em Morris, diz
que elas não sensibilizam as pessoas. "O que você vê sente. Se a pessoa
é próxima de você, o efeito é outro, seu comprometimento é maior." Por
isso, Padilha filma com tanta intensidade - para aproximar o público de
Sandro, do Capitão Nascimento, de suas famílias de famélicos.
Embora Garapa esteja chegando ao público somente agora, foi feito com
Tropa de Elite. Padilha tem um temperamento que o leva a fazer várias
coisas ao mesmo tempo. Na verdade - é tudo verdade - Padilha interrompeu
a montagem de Garapa para concluir Tropa e, depois, o fenômeno em que o
outro filme se transformou o impediu de voltar imediatamente ao filme,
que pertence à linha de documentários sociais que o diretor e seu sócio,
Marcos Prado, vêm realizando. Estamira, que Prado dirigiu, nasceu como
ensaio fotográfico sobre o lixo, na tradição do fotojornalisamo de
Roberto Capa e Sebastião Salgado. Estamira, Ônibus e, agora, Garapa
expressam o engajamento social da dupla.
A foto em preto e branco não é para homenagear o Cinema Novo, mas porque
a cor pode dar uma falsa sensação de alegria. Padilha é capaz de falar
horas sobre como, em arte, ser fidedigno nem sempre é eficaz. Cita
Edward Munch e sua representação ?distorcida? da angústia no quadro O
Grito. Em Garapa, quis ser seco, despojado, nenhuma firula. Em busca de
subsídios, o diretor bateu na porta de Chico Menezes, do Ibase, um
instituto de pesquisas. "Chico me sugeriu que pegasse três famílias, uma
da cidade grande, outra bem do interiorzão e a terceira de beira da
estrada, numa cidade menor. Seriam três amostragens representativas." No
primeiro centro de nutrição que visitou, no Ceará, Padilha encontrou uma
de suas personagens. Como documentarista, tentou não interferir, mas,
como diz, o dogma não é absoluto e pode ser revogado diante do problema
humano. Ele não entrevistou - exceto algumas perguntas, em casos
especiais -, mas comprou remédio e levou ao dentista o menino que, só
consumindo açúcar, tem dor de dentes. Não comprou comida nem impediu que
aqueles pobres homens usassem seus últimos trocados para comprar
cachaça, em vez de alimentos.
Quem espera do diretor uma crítica ao governo Lula vai se decepcionar. O
programa Fome Zero deu resultado, embora não resolva o problema. É por
isso que Padilha pede ao repórter que não publique o que você vai ler
agora. A quebra de compromisso é para revelar o homem, não o artista.
Padilha e seu sócio, Marcos Prado, doaram o filme às famílias enfocadas,
mas ele não acredita na caridade, e menos ainda na caridade anunciada,
como solução. Só que a história ilustra, melhor do que qualquer outra
coisa, o tipo de compromisso que estabelece com seus personagens (e
espera que o público estabeleça também). Padilha tem consciência de que
pode estar resolvendo o problema de três famílias. Existem três milhões
delas no Brasil. Seus problemas, só a vontade política poderá resolver.
De importância social inegável, Garapa vai
levantar antigas questões. A principal: qual a maneira "correta" de
representar a pobreza, sem explorá-la ou - pior - estetizá-la. A objeção
virá, sem dúvida, de algumas opções de José Padilha, em particular
aquela pela fotografia em preto e branco, muitas vezes granulada, que
sugere uma estética aparentada à do Cinema Novo. Seria, por assim dizer,
um cacoete de filme de arte, ou pior, de obra de denúncia social.
Essas discussões têm lá sua razão de ser, mesmo porque a abordagem de
uma obra a partir do seu tema, ou dos propósitos bons ou maus do
realizador, parece sempre bastante limitada. Impregnada de psicologismo,
obriga o crítico a fazer uma hipotética visita à consciência do
realizador para nela escavar suas intenções mais profundas. Não
funciona. Temos o filme. O "texto" do filme, se o termo cabe. E esse é
que tem de dizer a sua "verdade", passar o seu recado ou suas
contradições. O resto são as interpretações possíveis, do crítico ou do
público.
Já as impressões causadas por Garapa são inequívocas. Salta desse
documentário uma profunda sensação de mal-estar, e mesmo de indignação
social. Como é possível que, em pleno século 21, tenhamos pessoas
vivendo em tal condição? E aqui cabe um parêntese: estranho é o cinema.
Porque cada um de nós, se não for muito alienado, sabe que não existem
apenas as três famílias mostradas no filme vivendo em condições de
subnutrição. Há milhares delas, incontáveis, milhões, aqui mesmo no
Brasil. Aliás, bem contabilizadas pela ONU: são cerca de 12 milhões de
brasileiros vivendo sob "risco nutricional", ou qualquer coisa que o
valha, eufemismos para a fome pura e simples. Então, sabemos
perfeitamente de tudo. Sabemos e não sabemos porque se trata de uma
realidade mantida distante dos nossos olhos.
Tem o cinema essa capacidade de aproximação, tanto em relação a um
objeto do desejo quanto a algo indesejável, aquilo que não queremos
saber ou ver. Cenas fortes e desagradáveis temos diariamente pela
televisão. Mas a persistência dessas cenas, sua duração, no tempo (com
perdão da redundância), é coisa de cinema. E é isso o que mais incomoda.
Nessa dimensão, da linguagem, da duração, e mesmo do tamanho da tela, é
que o cinema pode se tornar uma arma política.