João Miguel volta à cena e se confirma como um ator raro
13/04/2009
Foto: Divulgação
O baiano João Miguel
Espetáculo de autoria da italiana Letizia Russo expõe fluxo de
consciência de um personagem anônimo
LUIZ FERNANDO RAMOS
CRÍTICO DA FOLHA
Alguns romances e espetáculos contemporâneos compartilham uma recusa ao
diálogo e uma vocação monológica. A encenação de "Só", primeiro monólogo da
jovem e promissora dramaturga italiana Letizia Russo, confirma essa
tendência, ao mesmo tempo em que se caracteriza por uma teatralidade
autônoma da dimensão literária.
O texto de Russo apresenta-se pelo fluxo de consciência de um personagem
anônimo e não localizado. Não é preciso saber quem ele é nem onde está,
porque suas palavras, encadeadas em ritmo calmo e sincopado, não são
palavras ao vento. Elas são claras palavras de um homem que as fala sem
peias, e com elas conta sua história a seu modo.
Não é um modo direto, tampouco prolixo. Peca mais pela economia do que
pelo excesso e serve-se da repetição para enfatizar certas passagens e
demarcar momentos cruciais. Ao final, estará claro que ele é um homem que
retorna ao lugar onde, quando tinha 15 anos, amou pela primeira vez.
Mas esse relato, que no final se fecha, não é tão importante quanto o
caminho que os artistas envolvidos na encenação percorrem. Em "Só", vale
menos o "que" e mais o "como". A começar pela cenografia, que combina a
densidade de um vasto chão de mármore branco e a singularidade de uma única
cadeira. O espaço está vazio, mas preenchido em cada centímetro por
significações relevantes.
A claridade e lisura do extenso piso não escondem as áreas rebaixadas, em
que a materialidade cênica comparecerá com seu quinhão na narrativa. Por
exemplo, quando o personagem revela o momento crítico em que sua relação
proibida é flagrada e se derrete como neve, o piso literalmente faz água e é
sutilmente inundado diante do público.
A participação mais contundente das matérias cênicas é a da luz, quase
protagonista neste espetáculo mágico. A começar pelo uso das lâmpadas
externas dos postes da avenida Paulista, que banham o espaço nos momentos em
que a cena fica totalmente escura, passando pelas diversas fontes que
esquadrinham todo o mapa da representação, pode-se dizer que a luz é também
narradora. A imaginação do espectador acompanha o relato oral da volta ao
lugar de origem, mas, com a luz, vê a estrada, o banheiro, o banho no sol da
juventude, o bar onde se reencontra o velho amigo, a recordação do trauma e
o estilhaçar do sonho, que finalmente libertará a memória represada.
Para compor esse mosaico de luzes e espaços, a inspirada direção de
Alvise Camozzi contou, principalmente, com a cenografia de Laura Vinci, em
si um objeto de arte, e com a luz de Alessandra Domingues, verdadeira
dramaturgia em contraponto ao texto de Russo. Mas nenhum desses efeitos
faria qualquer sentido se a cena não estivesse animada pela presença de um
ator raro. João Miguel, de volta à cena, traz uma tranquilidade e uma
paciência no seu atuar que calham perfeitamente com texto e encenação, ou
melhor, que os conformam e justificam. É o seu talento que amarra tudo e nos
certifica de que o assistido era mesmo teatro, narrativa do corpo e da
matéria.
SÓ
Quando: sex. a dom., às 20h30; até 17/5 (ingressos esgotados até
19/4) Onde: Sesc Av. Paulista (av. Paulista, 119, 5º andar, tel. 3179-3700)
Quanto: de R$ 5 a R$ 20 Classificação: não indicado a menores de 16 anos Avaliação: ótimo
João
Miguel é baiano e recebeu os prêmios de melhor ator no Festival do Rio e na
Mostra de Cinema de São Paulo, interpretando Ranulpho no longa 'Cinema,
Aspirinas e Urubus', confirmando a força da Bahia no cinema nacional. Ele
esteve em Salvador e falou ao iBahia sobre o começo da carreira de ator e
sobre Ranulpho, o papel que interpreta no filme.
iBahia- Qual a história de 'Cinema, Aspirinas e Urubus'?
João Miguel - É a história de um sertanejo fugindo da seca e um
alemão fugindo da guerra, e ele exibe filmes de 16mm vendendo aspirina no
Brasil. O encontro dessas duas pessoas representa uma grande oportunidade.
iBahia- Como você começou a sua carreira de Ator?
João Miguel - Comecei com nove anos de idade, em um programa de TV
onde eu era apresentador. Cheguei a entrevistar Glauber Rocha. Falei pra ele
assim: 'Glauber, vou te perguntar uma pergunta'. E ele disse: 'E eu vou te
responder uma resposta' (risos). Depois daí eu não parei mais, sempre
trabalhei com teatro, fui trabalhar na Paraíba e depois voltei para a Bahia,
trabalhei com Los Catedrásticos, com atores maravilhosos. Fiz 'Bispo', que é
um personagem de virada na minha vida, eu fiquei 4 anos e meio trabalhando
pelo Brasil e foi o 'Bispo', que fez com que o Marcelo Gomes me chamasse pra
trabalhar com ele.
iBahia- Você disputou o papel de Ranulpho com 300 atores. Como
foi?
João Miguel - A gente faz 'aquele teste' e o diretor é quem vai
decidir. O Marcelo foi ver o monólogo 'Bispo', um espetáculo que eu estava
fazendo em São Paulo, sobre o artista plástico Arthur Bispo do Rosário, um
esquizofrênico que ficou 50 anos internado na Colônia Juliano Moreira, e me
convidou para fazer o teste. Foi muito bom ser escolhido no meio de tanta
gente, é um privilégio.
iBahia- O Ranulpho real é o tio-avô do diretor Marcelo Gomes.
Como foi interpretar com essa responsabilidade?
João Miguel - Foi maravilhoso porque apesar de vir da memória do
diretor, o personagem tocou muito a minha memória também. Eu morei na
Paraíba durante dois anos e eu tenho uma relação muito forte com o Sertão.
No cinema você está ali imprimindo muito do que você é também. De uma certa
forma é a mistura da história dele com a minha é bonito isso.
iBahia- Marcelo Gomes é nordestino, assim como você e o seu
personagem. Você acha que o Nordeste foi mostrado direito através do filme?
João Miguel - Com certeza, o Nordeste que é mostrado no 'Cinema,
Aspirinas e Urubus' não é caricato, aquele nordeste de cartão postal. É mais
uma história de um nordestino dentro do nordeste.
iBahia- Você quer dizer que existem pessoas como Ranulpho hoje em
dia?
João Miguel - Sem dúvida. Minha inspiração para compor o personagem
foi baseada em histórias de amigos meus, pessoas que são ao mesmo tempo
amorosas e sagazes, que querem ir pra frente, vencer na vida. E o fato de eu
ser nordestino e ter vivido experiências no sertão me ajudou bastante e faz
com que isso esteja na minha lembrança e no meu coração.
iBahia- Você já gravou três longa metragens, mas 'Cinema,
Aspirinas e Urubus' é o seu primeiro como protagonista, e você já foi
premiado. Como você explica isso?
João Miguel- É maravilhoso, eu acho que isso aconteceu pela
felicidade de ter uma equipe muito especial e um diretor muito especial que
me deu liberdade total de criar, improvisar e sugerir coisas. O que me
orgulha mais é que esse filme representa um grande trabalho de equipe.
Porque é o meu primeiro longa protagonizando, é o primeiro longa do Marcelo
Gomes, o primeiro do Mauro Pinheiro, então tem um tesão e uma vontade muito
grande e isso é visível.
iBahia- Você fazia a peça 'Bispo' e começou a fazer o filme
praticamente ao mesmo tempo, sendo que um personagem é jovem e outro é
velho. Como você se dividiu entre dois papeis completamente diferentes?
João Miguel - Eu tive que passar por uma transição do Bispo para o
Ranulpho, porque eu estava fazendo 'Bispo' a três anos e meio e, de repente
me encontrei com o Ranulpho, que é jovem, tem um espírito diferente, é um
outro corpo, mas eu acho que esses dois personagens estão presentes em mim.
Eu tenho um amigo africano que diz que nós somos muitos, mas o que a gente
tem que fazer é trazer esses muitos para perto.
iBahia- Depois do trabalho e das premiações o que você tem a
dizer?
João Miguel - Que vale a pena fazer trabalhos autorais, coletivos,
seguir o seu caminho, porque você nunca está só.