"A canção não morre"
Marco Antonio Barbosa e Ricardo Schott
Caetano Veloso gosta de se expressar. Desde o ano passado, exerce
esse direito além das entrevistas pontuais – no palco, salpicando de
comentários as apresentações do espetáculo Obra em progresso, ou no blog
homônimo, no qual documentou o processo de criação de seu mais novo
disco, Zii e zie, gravado com os mesmos músicos da banda Cê (Pedro Sá,
guitarra; Ricardo Dias Gomes, baixo e teclados; Marcelo Callado,
bateria), com quem trabalha desde 2005. Ao tragar-se para mais uma
sessão de ideias e reflexões ao Jornal do Brasil a respeito da decantada
obra (a inspiração de suas letras, repletas de referências sexuais e ao
Rio, a convivência com instrumentistas até quatro décadas mais jovens e
o suposto "fim da canção" anunciado por alguns luminares da MPB),
sentiu-se no seu púlpito particular. Trajando camisa polo verde e calça
cáqui, relaxado e bem-humorado, ele recebeu a reportagem num hotel no
Leblon.
Como foi manter um blog? É algo natural para você, que é um artista
que gosta de dar opiniões, não é?
No começo eu não havia pensado em blog, só nos shows semanais do Obra
em progresso. Mas o Hermano Vianna, que adora internet, me propôs
fazê-lo e eu topei. Terminou que ficamos discutindo quaisquer assuntos,
fiquei gostando das pessoas que escreviam lá. E blog é um veículo
natural pra isso. Eu não vou manter o blog após o lançamento do CD. Mas
para a feitura do disco eu curti falar sobre todas as coisas, com muita
gente e publicamente. Conversava com fãs no blog, mas eram pessoas que
já vinham com perguntas desenvolvidas.
Na estreia de ‘Obra em progresso’, no Oi Casa Grande, você leu para o
público trechos da entrevista de Lobão na capa do ‘Caderno B’, antes de
cantar ‘Lobão tem razão‘. Como a entrevista o impactou? Ainda concorda
com o nome de sua própria letra?
Tinha feito a música e ia cantá-la pela primeira vez. Quando estava
com tudo engatilhado, deparei com a entrevista e resolvi que tinha que
ler para o público. Na verdade, falo que ele tem razão na letra da
música, mas não é que eu leia qualquer coisa que ele fala e diga que ele
está sempre certo. O que ele fala sobre João Gilberto em entrevistas
está totalmente errado. Mas não faz mal. Quando ele fala "chega de
verdade" em Para o mano Caetano, por exemplo, ele tem razão. É uma frase
que eu sempre repito.
Você declarou no blog que em ‘Zii e zie’ compôs pensando na banda.
Foi assim mesmo?
Sim. Houve essa diferença básica, de que no Cê criamos uma banda para
fazer o disco, e no CD novo, já havia a banda pronta, todos reunidos. Do
disco anterior para cá, gravamos, fizemos excursão e depois é que
partimos para fazer um novo álbum. Nosso trabalho acabou ficando não só
mais maduro como também mais maleável.
Os músicos trazem muita informação nova para o som?
Algumas coisas, sim. O Ricardo (Dias Gomes), por exemplo, me gravou
um CD com coisas que ele gosta de ouvir. Mas também apresento a eles
coisas novas. Inclusive eu é que levei Animal Collective para eles,
porque foi uma banda que vi ao vivo em Nova York. Também apresentei
Arctic Monkeys e TV On The Radio.
Sendo você o mais velho da turma, como funciona a troca dentro da
banda? Você diria que em relação às suas formações anteriores a banda Cê
é a que tem a maior curiosidade em relação às coisas novas?
É engraçado porque ele mostram muita coisa antiga, como gravações do
Edison Machado das quais eu nem me lembrava. A diferença é que eles não
têm especialização ao selecionar o que vai compor a bagagem. Os músicos
com os quais eu toquei tendiam muito para o jazz. Os músicos da banda Cê
ouvem mais rock do que qualquer outra coisa. Mas nem por isso tocam mais
rock.
O que ficou em você do contato tão próximo com esses músicos?
Muita coisa. Mas nem estava atento com relação à questão da idade. O
interesse que me uniu a Pedro, que criou a banda para mim, foi musical e
de gosto. Ele já trabalhava comigo antes. Quando esbocei o Cê, mostrei a
ele o que tinha feito e perguntei quem tocaria com a gente. Não sabia se
ele iria me sugerir alguém de 50 anos ou de 27. Ele me disse que
escolhera os outros músicos porque achou que, pelo material que eu
mostrara, seriam os mais indicados. Que tudo o que eu falasse eles
sabiam a referência. E de fato isso aconteceu.
Não surge um gap, então?
Não, porque cria-se uma união muito grande na feitura da música. A
diferença de idade é real. Mas, por outro lado, posso contar a eles
histórias de minhas conversas com Tom Jobim. E eles têm essa
desenvoltura de andar em várias áreas, que é tropicalista, mas não
tínhamos nos anos 60 o ambiente que eles têm.
O Pedro Sá também está presente nas fotos do disco, que foram feitas
com uma câmera de lomografia por ele. Você conhecia essa técnica?
Não, conheci através do Pedro. Ele apareceu no estúdio com uma câmera
soviética de plástico, de um verde cafona. Fez uma série de fotos em que
usou um filme vencido. Depois, olhei para a que está na capa e falei:
"Isso é tudo o que eu quero". Essa foto do final do Leblon chuvoso, de
tarde... Era tão forte que vi que não daria mais para fazer o disco com
fotos normais. E tem uma coisa de transe, que vem das fotos em dupla
exposição.
Por sinal é um disco carioquíssimo nas letras. A ideia foi refletir o
clima do Rio?
Ele é carioca de nascença e de formação porque decidi ficar o ano
passado inteiro no Rio. Fui vendo que o disco ficava praticamente ligado
às coisas e aos lugares do Rio. Tinha um espírito de crônica.
O sexo também está muito presente nas letras, não é?
Nunca foi um assunto ausente das minhas canções, mas o Cê foi um
pouco mais explícito nisso e restou para o disco novo. Isso aconteceu no
Cê por ser um disco mais individual e por ter uma aproximação com o
rock, que tem uma conotação sexual. O que também motivou assuntos como
sexo, assuntos mais quentes, mais violentos aparecessem.
Você definiu a música ‘A cor amarela’ como um axé light. Como é lidar
com um gênero tão desprezado pela dita crítica especializada?
Olha, quem me dera fazer uma música propriamente axé. Eu adoro o axé
music, e todo o fenômeno e a massa de composição através das décadas. A
quantidade estupenda e a qualidade, a força. Sou fã, aliás sou um
admirador da música de carnaval brasileira. Depois que isso esmoreceu no
Rio de Janeiro, a Bahia pegou a tocha e arrebentou nessas últimas
décadas. E isso não foi reconhecido.
O disco tem um som que é mais roqueiro, é mais intenso. Ele foi
gravado numa mesa de estúdio antiga, não foi?
Sim, em parte o disco foi feito numa máquina dos anos 60 da EMI que
estava guardada no estúdio AR, na Barra. Ela foi feita na Inglaterra e
tem uns oito canais, nada mais do que isso. Serviu para dar um som mais
quente.
Você compartilha das recentes teses de que a canção acabou?
Concordo que chegamos ao fim da canção gravada em disco, como era no
século 20. É um tipo de canção que está no fim do ciclo. Mas a canção,
como um conceito geral, não morre, porque vai achar outras fórmulas. A
maneira como ela chega ao público é que está mudando.
Nelson Gobbi
Como um desdobramento natural de Cê, Caetano Veloso colhe mais frutos
do entrosamento com Pedro Sá, Ricardo Dias Gomes e Marcelo Callado,
deixando as referências de sua banda mais presentes nas 13 faixas de Zii
e zie. O vigor demonstrado no disco anterior é responsável por uma
salutar reinvenção na produção mais recente do cantor e compositor
baiano.
É evidente a sensação de músicas compostas na estrada e nos
bastidores, como demonstradas no show Obra em progresso. O
"descompromisso" com um conceito fechado – inclusive com a dualidade
"Transambas/Transrock" inscrita no encarte – cria temas livres, quase
que como improvisos. Os caminhos da nova turma de Caetano, descritos na
letra de Lapa, dão também os rumos das canções – como o bairro, o disco
é capaz de acolher o samba, o rock, o choro.
A simplicidade dos arranjos complementa a despretensão das letras,
que, por vezes, derivam apenas da força do ritmo – o mantra de A Base de
Gantánamo é o exemplo mais bem acabado dessa desproporção de forças nas
canções. (A repetição de palavras em Tarado, por sua vez, resulta num
efeito mais pueril.) A nova versão de Incompatibilidade de gênios, de
João Bosco e Aldir Blanc, desvela, através de sua desconstrução em
guitarra/baixo/bateria, o sentido da busca de Caetano por um som que, ao
mesmo tempo, o aproxime e o distingua da produção atual. Algo "Cool e
popular", como diz o verso de Lapa. A investigação musical serve bem à
proposta das canções feitas na velocidade dos comentários transpostos às
letras, caso de Lobão tem razão. Quando abandona o minimalismo sonoro, o
grupo o faz para abarcar a exuberância da morena descrita em A cor
amarela, que é, via sensual, a celebração da própria cidade.
Falta a Zii e zie a coesão do disco anterior e uma música com o vigor
de Rocks, a força-motriz de Cê. Mas a urgência que permeia as faixas do
CD sobrepõe-se à lógica do álbum fechado. Está mais para a forma livre
como a geração iPod aprendeu a ouvir música. O cantor e compositor
demonstra que a conexão com este público se dá para além do blog mantido
enquanto o disco era gestado. O que vem daqui para frente é a grande
incógnita de Zii e zie.
(©
JB Online)
Naturalidade é a transgressão
Mario Marques
Não se pode tirar de Caetano, sob pena de leviandade máxima, a
identidade musical e conceitual de seus discos. Característica
reafirmada em Zii e zie, extensão natural de Cê (2006). Com a mesma
banda de seu antecessor, o compositor põe no saco, como habitualmente,
seus compromissos estéticos com a MPB morna de todas as estirpes e refaz
a própria existência como artista. De forma compacta, conduz 13 canções
em embalagens tão distintas e ao mesmo tempo com tantos elos com a
centelha dos arranjos que o instrumental se sobressai aos versos.
Em Lobão tem razão, por exemplo, quando não mais se esperava nada
além de um mantra rítmico do carretel de Odeio, despede-se com notas de
guitarra setentistas, manipuladas progressivamente; A cor amarela, de
tons percussivos deliciosamente baianos, encontra-se equilibrada em
guitarra jorgebenjorniana; A Base de Guantánamo é déjà vu: remete ao
clima cru e reto de Haiti (de 1993); Perdeu tem groove de guitarra que
dialoga com a bateria, linguagem que domina a banda de Caetano (Pedro
Sá, guitarra; Marcelo Callado, bateria; Ricardo Dias Gomes, baixo e
rhodes) em faixas que se pretendem experimentais.
Caetano empurra a caretice MPBpop que vislumbra um bocadinho de
público a mais na plateia. Despreocupa-se com ligações, coligações,
montagens e colagens. É fundamental no processo de construção de Zii e
zie a formulação orgânica. Soa como se ele e sua banda migrassem do
primeiro ensaio direto ao estúdio. Tem cheiro de inacabado e recheio de
frescor. Que não se julgue um disco sem corrimento de melodias, daquelas
talhadas na bagagem de ouvido de zilhões de artistas do cancioneiro
mundial, dominado como poucos por Caetano. Por isso, ao emprestar seu
violão caetanesco em Por quem, pontuado com guitarra quase minimalista e
rhodes digno dos melhores préstimos legítimos de Björk, conclui-se que a
reta não é, definitivamente, o melhor caminho de Zii e zie.
É também uma coleção de crônicas cariocas. De Falso Leblon, com
quatro pedais de efeitos de guitarra distintos e percepções urbanas, a
Menina da Ria, espécie de resposta galhofeira ao clássico Menino do Rio,
em nada se aparece com sua matriz, mas igualmente praieira; até a Lapa,
belíssima homenagem ao bairro (com distinção em letra a Guinga,
compositor com o qual não tem contato e que não sobrevoa o lugar, e
Pedro Sá), faz confrontos longínquos ("‘Água de Kassin’ lava a Nova
Capela/eu amo a Puc e a gíria dos bandidos/ Fundição Progresso: eis a
Lapa/ Lapa/Lula e FH/Amo nosso tempo/em ti").
No melhor dos mundos, Caetano rebusca a bossa nova
pós-bossa-explorável no adeus com Diferentemente. Sucumbindo à levada
joãogilbertiana, resoluciona-se entre um novo mundo e aquele que o pôs
no mundo, o do universo ininteligível para a época de seu mestre maior.
O disco de Caetano, aliás, é, mesmo por viés distorcido em todos os
sentidos, uma obra joãogilbertiana. Cuja transgressão está exatamente na
naturalidade da execução das canções.
(©
JB Online)