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Experiências que não estão em progresso

17/04/2009

 

 

Fotos: X.Rey/Efe
 

Márvio dos Anjos

Zii e Zie é a segunda parte desse comentário que Caetano Veloso faz a respeito do rock do século 21 e, principalmente, do que o Brasil elegeu como alto padrão de rock. Nessa antropofagia, as guitarras soavam em Cê e ainda soam magras, a bateria não é tonitruante, a música não se pretende além da vida, e os sentimentos raramente fluem. Caetano Veloso aprendeu com Los Hermanos que o rock em português não pode se derramar em grandes emoções.

O negócio é raciocinar sobre o rock, sentado sobre o banquinho, numa postura emprestada do Pensador de Rodin, e permitir que a música ganhe espaços vazios – mandam a voz e o verbo, a guitarra se esconde tímida. O dito "transrock" que sai, o samba filtrado por uma banda de rock, é exatamente um antirrock: adulto, hiperprocessado, à prova de empolgação, com canções longuíssimas.

Será necessário que o autor de Haiti e o compositor da melodia riquíssima de Minha formação, do abolicionista Joaquim Nabuco, precisa realmente perder seu tempo com bobagens como A base de Guantánamo?

Sob a égide de experimentalismo e poesia concreta, muita coisa de Zii e zie pode encontrar sua defesa. Se o genial letrista e compositor tem momentos deliciosos como A cor amarela, uma belíssima cantada praieira, também há espaços para o maior condutor da linha evolutiva da MPB despejar autoindulgência. O resultado musical busca tanto essa contemporaneidade fixada por Radiohead que chega a ser até previsível.

A guitarra de timbres extremamente pessoais de Pedro Sá busca frases irregulares para adornar as músicas. Mas soa como decisão marota em vez de inspiração: "Ah, faz um barulho aí", grita alguém no estúdio, e a canção ganha ruídos e minutos extremamente discutíveis.

Esse é o problema: a "obra progredida" não parece bem costurada musicalmente. Soa mais como um conjunto de esboços, que levantam cenas cariocas em boas letras (Perdeu, sobre a população das favelas, e Falso Leblon, sobre uso de drogas), mas sem alçar grandes voos melódicos – exatamente como em Cê.

A tentativa de experimentar novos caminhos é elogiável num país onde artistas repetem fórmulas surradas para agradar ao público e captar dinheiro para suas egotrips. Caetano Veloso tem o monumental mérito de ser um homem que ama correr riscos em prol do alargamento de sua obra e influência, e sua trajetória o confirma como um bom químico no laboratório da MPB. Mas, neste tubo de ensaio, a experiência parece levar mais à diluição que ao progresso.

(© JB Online)


"A canção não morre"

Marco Antonio Barbosa e Ricardo Schott

Caetano Veloso gosta de se expressar. Desde o ano passado, exerce esse direito além das entrevistas pontuais – no palco, salpicando de comentários as apresentações do espetáculo Obra em progresso, ou no blog homônimo, no qual documentou o processo de criação de seu mais novo disco, Zii e zie, gravado com os mesmos músicos da banda Cê (Pedro Sá, guitarra; Ricardo Dias Gomes, baixo e teclados; Marcelo Callado, bateria), com quem trabalha desde 2005. Ao tragar-se para mais uma sessão de ideias e reflexões ao Jornal do Brasil a respeito da decantada obra (a inspiração de suas letras, repletas de referências sexuais e ao Rio, a convivência com instrumentistas até quatro décadas mais jovens e o suposto "fim da canção" anunciado por alguns luminares da MPB), sentiu-se no seu púlpito particular. Trajando camisa polo verde e calça cáqui, relaxado e bem-humorado, ele recebeu a reportagem num hotel no Leblon.

Como foi manter um blog? É algo natural para você, que é um artista que gosta de dar opiniões, não é?

No começo eu não havia pensado em blog, só nos shows semanais do Obra em progresso. Mas o Hermano Vianna, que adora internet, me propôs fazê-lo e eu topei. Terminou que ficamos discutindo quaisquer assuntos, fiquei gostando das pessoas que escreviam lá. E blog é um veículo natural pra isso. Eu não vou manter o blog após o lançamento do CD. Mas para a feitura do disco eu curti falar sobre todas as coisas, com muita gente e publicamente. Conversava com fãs no blog, mas eram pessoas que já vinham com perguntas desenvolvidas.

Na estreia de ‘Obra em progresso’, no Oi Casa Grande, você leu para o público trechos da entrevista de Lobão na capa do ‘Caderno B’, antes de cantar ‘Lobão tem razão‘. Como a entrevista o impactou? Ainda concorda com o nome de sua própria letra?

Tinha feito a música e ia cantá-la pela primeira vez. Quando estava com tudo engatilhado, deparei com a entrevista e resolvi que tinha que ler para o público. Na verdade, falo que ele tem razão na letra da música, mas não é que eu leia qualquer coisa que ele fala e diga que ele está sempre certo. O que ele fala sobre João Gilberto em entrevistas está totalmente errado. Mas não faz mal. Quando ele fala "chega de verdade" em Para o mano Caetano, por exemplo, ele tem razão. É uma frase que eu sempre repito.

Você declarou no blog que em ‘Zii e zie’ compôs pensando na banda. Foi assim mesmo?

Sim. Houve essa diferença básica, de que no Cê criamos uma banda para fazer o disco, e no CD novo, já havia a banda pronta, todos reunidos. Do disco anterior para cá, gravamos, fizemos excursão e depois é que partimos para fazer um novo álbum. Nosso trabalho acabou ficando não só mais maduro como também mais maleável.

Os músicos trazem muita informação nova para o som?

Algumas coisas, sim. O Ricardo (Dias Gomes), por exemplo, me gravou um CD com coisas que ele gosta de ouvir. Mas também apresento a eles coisas novas. Inclusive eu é que levei Animal Collective para eles, porque foi uma banda que vi ao vivo em Nova York. Também apresentei Arctic Monkeys e TV On The Radio.

Sendo você o mais velho da turma, como funciona a troca dentro da banda? Você diria que em relação às suas formações anteriores a banda Cê é a que tem a maior curiosidade em relação às coisas novas?

É engraçado porque ele mostram muita coisa antiga, como gravações do Edison Machado das quais eu nem me lembrava. A diferença é que eles não têm especialização ao selecionar o que vai compor a bagagem. Os músicos com os quais eu toquei tendiam muito para o jazz. Os músicos da banda Cê ouvem mais rock do que qualquer outra coisa. Mas nem por isso tocam mais rock.

O que ficou em você do contato tão próximo com esses músicos?

Muita coisa. Mas nem estava atento com relação à questão da idade. O interesse que me uniu a Pedro, que criou a banda para mim, foi musical e de gosto. Ele já trabalhava comigo antes. Quando esbocei o Cê, mostrei a ele o que tinha feito e perguntei quem tocaria com a gente. Não sabia se ele iria me sugerir alguém de 50 anos ou de 27. Ele me disse que escolhera os outros músicos porque achou que, pelo material que eu mostrara, seriam os mais indicados. Que tudo o que eu falasse eles sabiam a referência. E de fato isso aconteceu.

Não surge um gap, então?

Não, porque cria-se uma união muito grande na feitura da música. A diferença de idade é real. Mas, por outro lado, posso contar a eles histórias de minhas conversas com Tom Jobim. E eles têm essa desenvoltura de andar em várias áreas, que é tropicalista, mas não tínhamos nos anos 60 o ambiente que eles têm.

O Pedro Sá também está presente nas fotos do disco, que foram feitas com uma câmera de lomografia por ele. Você conhecia essa técnica?

Não, conheci através do Pedro. Ele apareceu no estúdio com uma câmera soviética de plástico, de um verde cafona. Fez uma série de fotos em que usou um filme vencido. Depois, olhei para a que está na capa e falei: "Isso é tudo o que eu quero". Essa foto do final do Leblon chuvoso, de tarde... Era tão forte que vi que não daria mais para fazer o disco com fotos normais. E tem uma coisa de transe, que vem das fotos em dupla exposição.

Por sinal é um disco carioquíssimo nas letras. A ideia foi refletir o clima do Rio?

Ele é carioca de nascença e de formação porque decidi ficar o ano passado inteiro no Rio. Fui vendo que o disco ficava praticamente ligado às coisas e aos lugares do Rio. Tinha um espírito de crônica.

O sexo também está muito presente nas letras, não é?

Nunca foi um assunto ausente das minhas canções, mas o Cê foi um pouco mais explícito nisso e restou para o disco novo. Isso aconteceu no Cê por ser um disco mais individual e por ter uma aproximação com o rock, que tem uma conotação sexual. O que também motivou assuntos como sexo, assuntos mais quentes, mais violentos aparecessem.

Você definiu a música ‘A cor amarela’ como um axé light. Como é lidar com um gênero tão desprezado pela dita crítica especializada?

Olha, quem me dera fazer uma música propriamente axé. Eu adoro o axé music, e todo o fenômeno e a massa de composição através das décadas. A quantidade estupenda e a qualidade, a força. Sou fã, aliás sou um admirador da música de carnaval brasileira. Depois que isso esmoreceu no Rio de Janeiro, a Bahia pegou a tocha e arrebentou nessas últimas décadas. E isso não foi reconhecido.

O disco tem um som que é mais roqueiro, é mais intenso. Ele foi gravado numa mesa de estúdio antiga, não foi?

Sim, em parte o disco foi feito numa máquina dos anos 60 da EMI que estava guardada no estúdio AR, na Barra. Ela foi feita na Inglaterra e tem uns oito canais, nada mais do que isso. Serviu para dar um som mais quente.

Você compartilha das recentes teses de que a canção acabou?

Concordo que chegamos ao fim da canção gravada em disco, como era no século 20. É um tipo de canção que está no fim do ciclo. Mas a canção, como um conceito geral, não morre, porque vai achar outras fórmulas. A maneira como ela chega ao público é que está mudando.

(© JB Online)


Livre como a geração iPod

Nelson Gobbi

Como um desdobramento natural de Cê, Caetano Veloso colhe mais frutos do entrosamento com Pedro Sá, Ricardo Dias Gomes e Marcelo Callado, deixando as referências de sua banda mais presentes nas 13 faixas de Zii e zie. O vigor demonstrado no disco anterior é responsável por uma salutar reinvenção na produção mais recente do cantor e compositor baiano.

É evidente a sensação de músicas compostas na estrada e nos bastidores, como demonstradas no show Obra em progresso. O "descompromisso" com um conceito fechado – inclusive com a dualidade "Transambas/Transrock" inscrita no encarte – cria temas livres, quase que como improvisos. Os caminhos da nova turma de Caetano, descritos na letra de Lapa, dão também os rumos das canções – como o bairro, o disco é capaz de acolher o samba, o rock, o choro.

A simplicidade dos arranjos complementa a despretensão das letras, que, por vezes, derivam apenas da força do ritmo – o mantra de A Base de Gantánamo é o exemplo mais bem acabado dessa desproporção de forças nas canções. (A repetição de palavras em Tarado, por sua vez, resulta num efeito mais pueril.) A nova versão de Incompatibilidade de gênios, de João Bosco e Aldir Blanc, desvela, através de sua desconstrução em guitarra/baixo/bateria, o sentido da busca de Caetano por um som que, ao mesmo tempo, o aproxime e o distingua da produção atual. Algo "Cool e popular", como diz o verso de Lapa. A investigação musical serve bem à proposta das canções feitas na velocidade dos comentários transpostos às letras, caso de Lobão tem razão. Quando abandona o minimalismo sonoro, o grupo o faz para abarcar a exuberância da morena descrita em A cor amarela, que é, via sensual, a celebração da própria cidade.

Falta a Zii e zie a coesão do disco anterior e uma música com o vigor de Rocks, a força-motriz de Cê. Mas a urgência que permeia as faixas do CD sobrepõe-se à lógica do álbum fechado. Está mais para a forma livre como a geração iPod aprendeu a ouvir música. O cantor e compositor demonstra que a conexão com este público se dá para além do blog mantido enquanto o disco era gestado. O que vem daqui para frente é a grande incógnita de Zii e zie.

(© JB Online)


Naturalidade é a transgressão

Mario Marques

Não se pode tirar de Caetano, sob pena de leviandade máxima, a identidade musical e conceitual de seus discos. Característica reafirmada em Zii e zie, extensão natural de Cê (2006). Com a mesma banda de seu antecessor, o compositor põe no saco, como habitualmente, seus compromissos estéticos com a MPB morna de todas as estirpes e refaz a própria existência como artista. De forma compacta, conduz 13 canções em embalagens tão distintas e ao mesmo tempo com tantos elos com a centelha dos arranjos que o instrumental se sobressai aos versos.

Em Lobão tem razão, por exemplo, quando não mais se esperava nada além de um mantra rítmico do carretel de Odeio, despede-se com notas de guitarra setentistas, manipuladas progressivamente; A cor amarela, de tons percussivos deliciosamente baianos, encontra-se equilibrada em guitarra jorgebenjorniana; A Base de Guantánamo é déjà vu: remete ao clima cru e reto de Haiti (de 1993); Perdeu tem groove de guitarra que dialoga com a bateria, linguagem que domina a banda de Caetano (Pedro Sá, guitarra; Marcelo Callado, bateria; Ricardo Dias Gomes, baixo e rhodes) em faixas que se pretendem experimentais.

Caetano empurra a caretice MPBpop que vislumbra um bocadinho de público a mais na plateia. Despreocupa-se com ligações, coligações, montagens e colagens. É fundamental no processo de construção de Zii e zie a formulação orgânica. Soa como se ele e sua banda migrassem do primeiro ensaio direto ao estúdio. Tem cheiro de inacabado e recheio de frescor. Que não se julgue um disco sem corrimento de melodias, daquelas talhadas na bagagem de ouvido de zilhões de artistas do cancioneiro mundial, dominado como poucos por Caetano. Por isso, ao emprestar seu violão caetanesco em Por quem, pontuado com guitarra quase minimalista e rhodes digno dos melhores préstimos legítimos de Björk, conclui-se que a reta não é, definitivamente, o melhor caminho de Zii e zie.

É também uma coleção de crônicas cariocas. De Falso Leblon, com quatro pedais de efeitos de guitarra distintos e percepções urbanas, a Menina da Ria, espécie de resposta galhofeira ao clássico Menino do Rio, em nada se aparece com sua matriz, mas igualmente praieira; até a Lapa, belíssima homenagem ao bairro (com distinção em letra a Guinga, compositor com o qual não tem contato e que não sobrevoa o lugar, e Pedro Sá), faz confrontos longínquos ("‘Água de Kassin’ lava a Nova Capela/eu amo a Puc e a gíria dos bandidos/ Fundição Progresso: eis a Lapa/ Lapa/Lula e FH/Amo nosso tempo/em ti").

No melhor dos mundos, Caetano rebusca a bossa nova pós-bossa-explorável no adeus com Diferentemente. Sucumbindo à levada joãogilbertiana, resoluciona-se entre um novo mundo e aquele que o pôs no mundo, o do universo ininteligível para a época de seu mestre maior. O disco de Caetano, aliás, é, mesmo por viés distorcido em todos os sentidos, uma obra joãogilbertiana. Cuja transgressão está exatamente na naturalidade da execução das canções.

(© JB Online)


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