Montagem de João das Neves integra com fluidez a cultura regional
à linguagem cênica
Macksen Luiz
Na tradição medieval, intermediada por autores ibéricos do século 16,
Ariano Suassuna estrutura a sua Farsa da boa preguiça, em cartaz no Sesc
Ginástico, no Centro, através do fabulário nordestino, recorrendo aos
elementos clássicos do gênero, introduzindo bonecos e o imaginário regional.
A "sabedoria" preguiçosa e a riqueza avara são manipuladas por forças
encantatórias, divindades do bem e do mal que assistem, participando, ao
destino de mortais tão cheios de virtudes e defeitos na sua humanidade.
O cordelista-cantador Joaquim Simão, cobiçado pela fogosa Clarabela,
mulher do passivo traído Aderaldo Catacão, que deseja Nevinha, a enamorada
esposa de Simão, tem sua vida contada pelo trio Manuel Carpinteiro, aliás
Jesus, Simão Pedro, o detentor das chaves do céu, e Miguel Arcanjo, o anjo
anunciador. Na contramão da história, três demônios atuantes – Cancahorra,
Cão Coxo e Cão Caolho – se desdobram em vilanias para tentar estimular as
fraquezas individuais. Neste texto de 1960, Suassuna mantém a característica
da farsa com seu sentido moralizante e contornos populares. Em versos,
utilizando os recursos cômicos da tradição, o autor construiu texto com
inegáveis atrativos de comunicabilidade, através das artimanhas ingênuas e a
esperteza da sobrevivência de tipos que se parecem a brincantes de suas
próprias vidas.
Em Farsa da boa preguiça, Suassuna expande essas origens e meios até ao
esgotamento da trama, provocando relativo esgarçamento da ação, que por
algumas cenas recorrentes, quebram a estabilidade do ritmo narrativo. Mas a
solidez com que domina o universo farsesco, e os efeitos cômicos que o
envolvem, mantêm o texto como bom exemplar da obra de Ariano Suassuna.
Os cuidados com a montagem, que usa música original de Alexandre Elias,
explorando ritmos nordestinos com oportunidade sonora e perfeita integração
na cena, se estendem à cenografia de Ney Madeira e aos figurinos de Rodrigo
Cohen. Com painéis de tecido, reproduzindo o colorido das festas sertanejas
e gravuras da literatura de cordel, o cenário empresta ambientação de feira,
com um teatrinho de bonecos no fundo do palco. As roupas, muito bem
executadas, além de reforçarem o aspecto festivo, traçam leve tom crítico,
como no chapéu campestre de Clarabela e no anel chocalhante de Andressa.
A iluminação de Paulo César Medeiros completa o quadro de festa-feira.
João das Neves coordenou o pano de fundo desta montagem atraente, cheia de
colorido nordestino sem folclorismos, integrando com fluidez a cultura
regional à linguagem cênica. Mesmo quando o texto cai de ritmo, o diretor
mantém a voltagem do espetáculo, recorrendo à boa disponibilidade do elenco
para sustentar o espírito ameno da encenação.
Francisco Salgado, Leandro Castilho e Flávio Pardal compõem em seus
papéis duplos e, na função de músicos, o bom trio que conduz a história.
Vilma Melo se destaca pelo uso de diferentes vozes para cada um dos tipos
que interpreta, como também pelos sinuosos movimentos corporais,
destacando-se pela ótima figura da cabra. Daniela Fontan empresta mais
brejeirice do que sensualidade à Nevinha. Ernani Moraes traduz bem a
truculência mansa de Aderaldo. Guilherme Piva, em que pese a tentativa de
traduzir em gestos e corpo maneiroso a figura de Joaquim Simão, parece-se
mais com um Jeca Tatu, na versão de Mazarropi, do que um sertanejo
nordestino de Suassuna. Bianca Byington, divertida e bela presença,
transmite com humor e pinceladas de crítica o furor da mulher do coronel e o
seu interesse por variadas manifestações das artes populares.