Foto: Murillo Meirelles
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Chico Buarque e Caetano Veloso no Rio de
Janeiro. Um encontrou a voz na literatura e o outro nos blogs,
shows, CDs...
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Caetano Veloso fala de suas letras cheias
de nomes, do futuro de seu “boteco virtual”, o blog obraemprogresso, pagode
baiano, Lobão e seu gosto por shows. Confira a íntegra da entrevista que o
artista, que lança Zii e Zie, concedeu a BRAVO! por e-mail ao editor de
música José Flávio Junior
José Flávio Junior
Bravo! - Por que você
decidiu mudar o nome do disco de Transamba para Zii e
Zie (ainda que o primeiro estivesse mais para um nome de trabalho
provisório)?
Caetano
- O título nunca foi Transamba. Lancei a palavra como uma
sugestão de definição do que estávamos fazendo. Descobri depois que havia o
disco de Marcos Moran e Samba Som Sete chamado Transamba. Achei
legal. Mas sempre pensei em pôr um título em italiano, possivelmente com uma
expressão em que um som se repetisse em duas palavras. Lembrei de "pian,
piano", coisas assim, embora soubesse que não seria uma dessas. Fiquei
maravilhado ao ler "zii e zie" em meio a uma frase de Istambul, de Orhan
Pamuk, na tradução italiana (uma moça me deu o livro na Itália). Não tem
nada a ver com Pamuk ou com Istambul. Era a língua italiana. A repetição do
som "zi" condizia com o que eu buscava - e ser "tios e tias" tornava ainda
mais profundo o sentido íntimo de saudade de São Paulo que venho sentindo na
feitura de disco tão carioca.
Bravo! - Tenho notado que
você se dedica bastante ao blog ordemeprogresso, a ponto de ler todos os
muitos comentários que cada novo post seu desperta. Mas a experiência
fascinante de ter um canto seu na web não pode se tornar prejudicial,
principalmente agora que você lançará um disco? Se alguns jornais falarem
mal do trabalho (como Folha e Estado falaram do show com o Roberto,
iniciando uma das primeiras polêmicas do blog) você usará o espaço para se
defender e/ou analisar as críticas?
Caetano - Como assim prejudicial?
Não entendi. O show com Roberto não precisava de defesa. Eu, tendo um blog
dedicado a este outro disco, não ia deixar de fazer o que sempre fiz.
Antigamente eu comentava as críticas no palco do show. Era superengraçado.
Mas o obraemprogresso foi criado para acabar quando o disco saísse. E assim
será. Pode virar outra coisa ou simplesmente sumir. Depende do que Hermano
combinar comigo. Continuar sendo o boteco virtual onde a gente conversa e
discute é que não vai.
Bravo! - Você ficou
intrigado quando um crítico americano disse que as letras de Cê eram as
melhores que você havia concebido em muito tempo (opinião que compartilho).
Em Cê, apesar da música para Wally Salomão, você não
citava outros artistas nem soava como se estivesse mandando recados para
outras pessoas públicas. Por que abandonar tão rápido esse estilo de
composição, uma vez que Zii e Zie traz referências a Kassin,
Lobão, Madonna, Guinga, Pedro Sá, Seu Jorge, Los Hermanos, Condoleezza Rice
e tantos outros? Você chegou a declarar que havia se esforçado muito para
alcançar a simplicidade lírica de Cê. Não quis se esforçar de novo?
Caetano -
Tenho até um disco chamado Cores, Nomes. De Clever Boy Samba a
Lapa, passando por Alegria, Alegria, Ele me Deu um
Beijo na Boca, A Voz do Morto ou Fora da Ordem,
minhas canções estão sempre cheias de nomes de pessoas (célebres ou não), de
cidades, de países, de ruas, de filmes, de personagens. O importante na nova
safra de canções era ter matéria prima para desenvolver levadas de samba com
timbre elétrico forte. Em Cê havia a necessidade de soar
urgente, sem referências, direto ao ponto. Fiz um esforço e consegui algo
nesse sentido. Mas minha inclinação natural é assim: se eu não me proíbo de
antemão, as letras vêm naturalmente cheias de nomes. Isso não quer dizer que
eu desdenhe de Peter Gast ou de Lobão Tem Razão.
Achei curioso que Ben Ratliff, o crítico no New York Times, tenha percebido
a diferença mesmo sem saber português. Ressaltei essa ignorância dele,
brincando, quando nos falamos
em Nova Iorque. Mas sei que, de um certo ponto de vista,
ele está certo. Mas Zii e Zie não precisa dessa característica.
Bravo! - Para Pedro Sá,
Zii e Zie talvez seja até superior a Cê por ter um
lado experimental mais nítido. Como você enxerga esse disco na sua
discografia e no momento artístico que você está atravessando?
Caetano
- Cê foi concebido quase como um disco de
heterônimo. Foi pensado e realizado com o fito de criar uma banda de rock
com som e repertório originais. É um lance só, de ponta a ponta. Agora o que
aconteceu foi que fizemos um disco com essa banda já existente e
amadurecida. Aí a banda vem com mais inventividade e soltura. A nova
abordagem de aspectos do samba é sempre em torno do óbvio mas é radical.
Experimento. Mas não tenho uma visão de conjunto tão nítida, já que fui
escrevendo as canções e mostrando-as em shows semanais e pela internet.
Bravo! - Você escreveu,
até como forma de provocação, que não há nada melhor do que pagode baiano.
Ver o Psirico em cena reforça sua vontade de tirar do campo das idéias a tal
antologia da axé music? Esse pode ser seu próximo álbum? Ricardo Dias Gomes
e Marcelo Callado, que passeiam pelos ritmos urbanos da Bahia no Do
Amor, estariam dentro do projeto?
Caetano
- Tenho esse sonho. Mas não sei se chegou o tempo. Sim, eu tocaria com
Ricardo e Marcelo. E com Pedro Sá, Moreno (Veloso) e Davi Moraes. Além de Du
e Jó, os irmãos gêmeos percussionistas geniais de Salvador. Talvez também
fizesse sozinho com meu violão.
Bravo! - Esse encontro
com Chico para a capa de Bravo! levou você a pensar de alguma forma nos
caminhos distintos que ambos seguiram? Por que o seu interesse na canção não
morre, sua vontade de ir a shows não diminui e seu prazer por tocar com
músicos novos não acaba, enquanto muitos artistas chegam aos sessenta
desestimulados com a música pop ou mais empolgados com outras formas de
arte?
Caetano
- A tendência a ouvir menos música na velhice eu já registrei
em texto. Mas
gosto de canção sempre. E de ir a shows. Shows me deixam excitado e sempre
idéias vêm à minha cabeça quando estou na platéia de um show de Bethânia,
dos Racionais ou do Radiohead. Não sei se Frank Sinatra ou Louis Armstrong,
Roberto Silva ou Riachão tinham menos prazer em tocar quando chegaram aos
60: todos esses passaram dos 70 tocando com entusiasmo. Mesmo em minha
geração há muitos. Gosto de tocar com esses músicos com quem toco porque
todo o projeto nasceu de minhas conversas com Pedro Sá quando fazíamos (os
discos) Noites do Norte e A Foreign Sound. Nossas
inteligências convergem. Ele sugeriu Ricardo e Marcelo. Vi que não podia ter
feito escolha melhor.
Bravo! - Após Lobão
lançar Para o Mano Caetano, sua obra coincidentemente passou a
ficar mais interessante para muita gente. Você gravou o disco com Jorge
Mautner, soltou o quase unânime Cê e mostrou as canções de
Zii e Zie antes que elas ficassem prontas na turnê Obra em
Progresso, premiada por Bravo!. Exercitou até seu lado stand-up comedy (ou
sit-down comedy) nessa temporada de shows, inclusive comentando uma
entrevista de Lobão para o Jornal do Brasil. Você acha que deu um tempo com
as verdades e viveu alguns enganos nesse período, como diz a música de
Lobão?
Caetano - Amo a
frase de Lobão para mim: "Chega de verdade". Toda hora me vejo precisando
repeti-la para mim mesmo. Em Jeito de Corpo (do álbum Outras Palavras, que,
aliás tem os nomes de todos os Trapalhões) eu digo: "Falta aprender a
mentir/ Entro até numas por ti". Continuo tentando.
(©
Bravo Online)
O novo romance de Chico Buarque, o novo CD de Caetano Veloso e as
trajetórias parelelas dos dois grandes artistas brasileiros
Por Heitor Ferraz, José
Flávio Júnior e João Gabriel de Lima
Numa cena do filme
Invasões Bárbaras, um dos clássicos da primeira década do século 21, um
grupo de professores de história elabora a teoria da "quantidade de
inteligência". Segundo eles, por razões aleatórias, existem determinados
momentos e lugares com alta concentração de gente talentosa, e essas pessoas
fazem a diferença em suas épocas. São citadas no filme a Florença de Dante e
Boccaccio e a Filadélfia dos "pais fundadores" da revolução americana.
Aplicando a teoria à vida cultural brasileira, pode-se dizer que o país
viveu uma espécie de auge nos anos 60 e 70, explosão criativa da música
popular (e, por mais que se cunhem teorias pretensamente sociológicas — a
mais famosa e absurda diz que a arte floresce em períodos de ditadura —,
nada explica isso além da sorte). Primeiro veio a bossa nova de Tom Jobim e
João Gilberto. Depois, a MPB surgida nos festivais, com Chico Buarque,
Caetano Veloso, Milton Nascimento, Tom Zé e Gilberto Gil. Esses músicos têm
em comum, além do talento, a carreira extremamente longa, que dura até os
dias de hoje. Numa coincidência digna da teoria da inteligência aleatória de
Invasões Bárbaras, dois desses artistas darão à luz novas criações
neste mês de abril. Saem o novo CD de Caetano Veloso, Zii e Zie, e o
novo romance de Chico Buarque, Leite Derramado. Disco e livro são
pontos de chegada de trajetórias paralelas — e o lançamento simultâneo
provoca reflexões sobre a cultura brasileira e sobre o caminho que ambos
percorreram para chegar até aqui.
Não existem mais artistas
como Chico Buarque e Caetano Veloso — os ícones de geração, os compositores
que são chamados a opinar sobre todos os assuntos. Nos anos 90, o poeta
carioca Bruno Tolentino (1940-2007) observou, numa entrevista famosa, que no
Brasil eram os cantores populares, e não os escritores ou intelectuais da
academia, que pautavam o debate cultural. Tolentino emitiu sua observação em
tom de crítica — ele via isso como um sintoma de decadência. O que faltou em
seu raciocínio foi observar que acontecia o mesmo no resto do mundo. Se os
anos 40 e 50 foram dos escritores e filósofos, em que nomes como Norman
Mailer e Jean-Paul Sartre pontificavam sobre todos os assuntos, os 60 e 70
foram dos astros da música pop. Artistas como John Lennon, Paul McCartney,
Bob Dylan e David Bowie, entre outros, eram considerados as "antenas" de um
período de intensa mudança cultural e de costumes. É um pouco espírito de
época, mas também mérito de uma geração excepcionalmente talentosa — é só
pensar que apenas no ano de 1966 foram lançados pelo menos três álbuns
clássicos da música de todos os tempos, Blonde on Blonde (Bob Dylan),
Pet Sounds (Beach Boys) e Revolver (Beatles). Cantores como
Chico Buarque e Caetano Veloso eram as versões brasileiras desse fenômeno. É
uma simplificação, no entanto, entender tudo isso apenas como marca de um
tempo, ignorando as peculiaridades e contribuições particulares de cada
artista.
Numa comparação redutora
porém ilustrativa, Chico e Caetano estão para a MPB assim como Bob Dylan e
David Bowie para o pop internacional. Dylan e Chico se destacam mais pela
qualidade de suas letras do que por suas performances, em geral discretas,
em shows. Mais do que bons compositores, letristas e intérpretes
fulgurantes, Bowie e Caetano são famosos pelas diversas reviravoltas que
deram em suas carreiras, captando diferentes espíritos de época. Bowie usou
sintetizadores para falar de viagens espaciais nos anos 60, foi andrógino
nos 70 (era o principal nome do glitter, o velho e colorido
rock-lantejoula) e voltou a ser roqueiro nos 80. Caetano surgiu no
tropicalismo dos anos 60, escreveu o "hino do desbunde" nos anos 70 (a
música Odara), foi pioneiro na utilização de sonoridades do pop na
MPB da década de 1980 (o marco é o memorável álbum Velô) e ainda
promoveu o relançamento de clássicos da música latina nos 90. Tudo isso
enquanto Chico Buarque lapidava seu estilo de composição calcado nas raízes
da MPB — e Bob Dylan se aprimorava cada vez mais em sua peculiar fusão de
blues e música country engajada.
Neste mês em que Caetano e
Chico lançam seus novos CD e romance, é interessante comparar os pontos de
chegada das duas trajetórias. Chico, o compositor que fazia incursões no
teatro e criava personagens em suas letras (Pedro Pedreiro, Ana de
Amsterdam, Bárbara), se tornou escritor. Continuou fazendo música
embora tenha declarado, em entrevistas, que considerava a canção uma "arte
de juventude", em contraposição à literatura, que seria uma forma de criação
mais madura (leia texto ao lado). Enquanto isso, Caetano dava nova
reviravolta em sua carreira ao se aproximar de músicos jovens e lançar um
álbum antológico, Cê. Não parou por aí: criou um blog, lançou músicas
na internet, testou-as no show e as reuniu no novo álbum, Zii e Zie,
tornando-se talvez o artista brasileiro da área musical que melhor entendeu
a interatividade dos novos tempos (leia texto a partir da página 32).
Tempos estes em que a multiplicidade de criadores de todas as áreas explode
na internet. Em que não existe mais o que se chamava antigamente de
mainstream. Em que, no Brasil ou lá fora, se observa o fim dos ícones de
geração — e não se espera mais que cantores sejam "antenas da raça" ou falem
sobre todos os assuntos. Nestes tempos de cauda longa, Caetano Veloso e
Chico Buarque encontraram, cada um a seu modo, suas vozes. Chico na
literatura. Caetano nos sites de música, no blog, no show, no CD...
João Gabriel de Lima
O parto de Eulálio
d'Assumpção, protagonista de Leite Derramado, foi mais tranquilo do
que o de José Costa, o personagem principal de Budapeste. Na feitura
de seu romance anterior, Chico Buarque chegou a descartar uma versão
inteira, na qual o protagonista era um arquiteto. Foram três anos de
elaboração. Já o novo livro nasceu em menos de um ano. Houve apenas uma
hesitação, como lembra o editor Luiz Schwarcz, com quem Chico sempre se
comunica quando começa a escrever um novo trabalho. "Ele ficou na dúvida,
achou que podia ter se enganado", conta Luiz. Mas com a dúvida veio também o
aviso: "Se estiver enganado, pode me dizer. Eu jogo tudo fora e começo
outro, pois estou com a mão boa", disse Chico a Schwarcz. Não houve engano.
Leite Derramado chegou ao mercado com uma tiragem inicial de 70 mil
exemplares — o padrão do mercado é de 3 mil —, duas versões de capas, um
site especial (www.leitederramado.com.br) e campanha publicitária da
AlmapBBDO.
Chico faz 65 anos em junho.
Quando se iniciou na literatura, em 1993, com o romance Estorvo,
estava realizando um sonho de juventude. "Meu pai, historiador e crítico
literário, não me pressionou a escrever, mas apreciava quando eu escrevia.
Aos 21 anos, comecei a compor canções, e isso foi o que me sequestrou",
disse em 2005 numa mesa-redonda em Nova York, da qual participou também o
autor americano Paul Auster.
Desde esse sequestro, Chico
procura sempre manter separado o escritor do compositor, num esquema que ele
mesmo chamou de "esquizofrênico". Quando se dedica à literatura, deixa o
violão no estojo e evita ouvir música. Quando termina o livro e passa a
temporada de lançamento e de traduções, volta a procurar os acordes e as
linhas melódicas de suas canções, com um frescor de quem estivesse começando
do zero. Quando lançou Carioca, há dois anos, ele deu uma série de
entrevistas, comentando o disco — que é um dos mais brilhantes de sua
carreira e tem como destaque a faixa Subúrbio, com uma linha melódica
que sobe e desce como se galgasse os morros que dividem a zona sul e a zona
norte do Rio de Janeiro. Mas, quando o assunto é livro novo, Chico se
retrai. Pelo menos durante um tempo. Depois, acaba fatalmente comentando sua
literatura e suas leituras.
Para o escritor e
jornalista Humberto Werneck, autor de Tantas Palavras, o artista tem
uma espécie de "monogamia criativa", alternando os momentos de autor com os
de compositor. A única coisa que se mantém tanto no músico como no escritor
é a caminhada — além do futebol, o principal esporte de Chico é andar pelo
calçadão do Rio de Janeiro. Seguindo o ritmo de um passo paulista, mais
apressado, Chico aproveita para ir resolvendo o enredo ou a letra da canção.
Não são apenas passeios e exercício físico, mas horas de trabalho mental.
Como diz Werneck, no livro, "compor e escrever são solicitações diversas de
sua criatividade, cada uma a seu tempo". Numa conversa com o cineasta
Roberto de Oliveira (que resultou posteriormente em uma caixa com 12 DVDs),
Chico Buarque comentou: "Não há um parentesco próximo entre romance e
música. Mas existe uma música na estrutura dos meus livros. E também há
sempre uma música no fundo da minha cabeça quando escrevo, quase uma trilha
sonora, um assovio, um cantarolar que dita o ritmo".
A carreira literária de
Chico, assim como a de músico, atravessou o oceano. Seu primeiro romance,
Estorvo, logo ganhou tradução no estrangeiro. Saiu na França, na Itália,
na Espanha, nos Estados Unidos e em outros países. O mesmo destino tiveram
seus dois romances posteriores, Benjamim e Budapeste. Lá como
cá, o nome do escritor sempre vem acompanhado do do compositor. "Um dos mais
importantes músicos do Brasil", dizia o francês L'Express, na
abertura de uma entrevista, em 1998. Vale lembrar que na França o músico é
muito conhecido, principalmente por causa da música Essa Moça Tá
Diferente, que virou jingle de um comercial (bem ridículo, diga-se de
passagem) de uma marca de refrigerantes.
A crítica fora do Brasil
sabe separar, no entanto, o músico do escritor. "Ninguém espere encontrar na
literatura de Chico Buarque elementos parecidos com as suas canções, pois
estamos diante de uma narração pouco colorida, de ritmo escasso e com
nenhuma mudança de tempo", dizia o autor espanhol Mariano Antolín Rato,
sobre o lançamento, na Espanha, de Estorvo. Apesar de dizer que o
livro era um tanto decepcionante, o crítico também dava a mão à palmatória
dizendo que pouco sabia sobre o Brasil e talvez isso lhe impedisse de
entender melhor a obra. Já sua conterrânea, a crítica e poeta Beatriz
Hernanz, lembrando a atividade de compositor e cantor de Chico, fazia uma
leitura mais atenta do romance — principalmente para o impasse moderno do
mundo sem saída apontado pela narrativa — e lembrava que a obra certamente
surpreenderia o leitor espanhol.
Nos Estados Unidos, onde
ele é conhecido, mas não é um nome popular, o New York Times publicou
uma reportagem, em 1999, dando conta de toda a sua carreira, destacando as
letras de suas canções e apresentando o autor de Turbulence, como foi
batizado lá o livro Estorvo, lançado pela Pantheon, em 1993. O livro
também saiu na Inglaterra, onde teve críticas positivas. Os artigos sempre
lembram a faceta do músico, mas logo se voltam para o enredo criado pelo
escritor e destacam sua condição de brasileiro e o seu tema, o Brasil. Por
aqui, a obra de Chico Buarque em geral rende resenhas positivas — claro que
alguns comentários dissonantes não faltaram, nem faltarão, por conta do
livre exercício da crítica. Ele começa também a ser tema de teses
acadêmicas. Numa primeira fase, relacionando sua obra com o momento político
do país. Mais recentemente, e sobretudo a partir de Budapeste, elas
começam a se voltar para o trabalho de linguagem do escritor.
O novo romance, Leite
Derramado, dá margem aos dois tipos de análise. Há pouco tempo, Chico
Buarque comentava o que ele chamou de nova mania: a publicação de livros com
genealogias de famílias tradicionais brasileiras. Ele se divertia um pouco
com esse tipo de empreitada, pois lá pelas tantas sumiam uns nomes da
árvore. Como se um galho tivesse sido arrancado. "As pessoas no Brasil
pensam que são brancas, que eu sou branco", dizia. "Impossível imaginar uma
família que esteja aqui desde o século 16 e não tenha se misturado com
índios e pretos. Não tem como." O comentário — feito num dos 12 programas
que ele gravou com Roberto de Oliveira, em 2007 — parece ter frutificado na
cabeça do escritor. Ele procurou, em seu romance, dar conta dessa mania
nacional de nobiliarquia, de bater orgulhoso no peito dizendo "sou
descendente de barão".
O narrador de seu novo
livro é um velho gagá, para lá de 100 anos, com fumos de nobreza, relatando,
de um leito de hospital — não se sabe bem para quem, ora para uma
enfermeira, ora para a filha, ora para uns sequestradores —, a esgarçada
história de sua vida. Eulálio d'Assumpção — a se fiar no que ele narra
("lembrança de velho não é confiável", diz) — é daqueles que carregam, por
toda parte, sua árvore genealógica na cabeça, com galhos por todos os lados.
O trisavô teria desembarcado no Brasil com a corte portuguesa, o bisavô
seria um tal "barão de Arcos", o avô, "um figurão do Império", o pai foi
senador da República (íntimo de vários presidentes) e armeiro. A brincadeira
de Chico Buarque, inventando uma família de filhos únicos, lembra o ditado
"pai rico, filho nobre, neto pobre". No entanto, a decadência familiar
desemboca no "comércio de entorpecentes". O Brasil vai pautando essas
gerações, indo da corrupção dos antepassados (o pai que se utilizava do
título de "senador" para abrir aqui uma filial de uma empresa francesa de
armas) até a mixórdia do presente.
Há um humor desabusado que
perpassa o livro inteiro. Um humor calcado numa espécie de supremacia de
classe — ou melhor, de casta, pois Eulálio já está no fim da linha, já teve
de morar no subúrbio, em casinhas pequenas, na velhice, levando apenas a
cama e uma escrivaninha barroca como bens de família; a ascensão dos
Assumpção agora vem por meio do novo descendente, que namora uma menina com
piercing no umbigo e tem atividades ilegais — se for crível o que diz o
vai-e-vem da memória do velho Eulálio. Chico Buarque procurou refazer assim
uma história do Brasil vista por um sujeito da elite e já decadente, ainda
obcecado pela mulher, retratada por ele apenas como objeto de um desejo
físico. Aos poucos, vai emergindo como vítima do ciúme e dos próprios
preconceitos. Ao ler o livro, é inevitável pensar no Machado de Assis de
Dom Casmurro e de Memórias Póstumas de Brás Cubas — este último
por conta do enredo em que aparentemente não acontece nada e nenhuma
narrativa se estabelece como determinante. O diálogo eficiente com o maior
escritor brasileiro dá a medida do triunfo literário que é este novo romance
de Chico Buarque.
Heitor Ferraz
Há exatamente um ano,
Caetano Veloso disse para Hermano Vianna que estava com vontade de fazer uma
série de shows em que pudesse mostrar para a plateia composições novas, à
medida que fossem sendo compostas. O antropólogo achou a ideia genial e
sugeriu que Caetano tivesse um blog para mostrar a evolução dessas canções
ao longo dos shows. O blog poderia hospedar os vídeos das músicas sendo
executadas, para que não apenas os que estivessem presentes nos espetáculos
pudessem ouvi-las. Caetano também poderia pedir sugestões sobre o material
novo e postar textos que ajudassem o público a entrar na onda. Seria algo
inédito, que nem artistas de gerações mais novas teriam tentado. Para sorte
da música brasileira, a loucura saiu do papel. Virou a temporada Obra em
Progresso, vencedora do último Prêmio Bravo! como grande espetáculo de
música popular de 2008, gerou o blog obraemprogresso.com.br e
desemboca este mês no álbum Zii e Zie, resumo do que foi essa
aventura que mesclou palco com internet, mundo real com mundo digital.
"Fico impressionado com o
tempo que ele dedica ao espaço, lendo e respondendo diretamente a qualquer
pessoa que se manifeste. Poucos artistas têm essa disposição e esse
interesse", afirma Hermano Vianna, que, além de filmar entrevistas com
Caetano, sugerir tópicos e moderar os comentários dos frequentadores do
blog, atuava publicando as mensagens que recebia do músico baiano. Mas o
cantor, que tem 66 anos, logo aprendeu a mexer nas ferramentas do site e
dispensou o auxílio do amigo para isso. Rapidamente também começou a
diversificar os assuntos. Em vez de focar as músicas novas, passou a
discutir política (respondeu a uma análise equivocada que Fidel Castro fez
da música Base de Guantánamo, destaque de Zii e Zie),
jornalismo cultural (rebateu as críticas dos jornais de São Paulo ao show em
homenagem a Tom Jobim que dividiu com Roberto Carlos), reforma ortográfica
(criticou linguistas e atraiu um enxame deles para a discussão) e até
futebol (elogiou a humildade dos jogadores do time pelo qual torce, o Bahia,
por eles terem "se recusado" a golear o time do Poções numa partida válida
pelo Campeonato Baiano). "Eu, tendo um blog dedicado a esse disco, não ia
deixar de fazer o que sempre fiz", disse Caetano em entrevista a BRAVO!.
"Antigamente, comentava as críticas que recebia no palco do show. Era
superengraçado. Mas o blog foi criado para acabar quando o disco saísse. E
assim será. Pode virar outra coisa ou simplesmente sumir. Continuar sendo o
boteco virtual onde a gente conversa e discute é que não vai."
Por enquanto são raros os
dias em que o cantor não surge no espaço reservado aos comentários para
falar com a turma assídua do obraemprogresso.com.br. Em princípio, os
músicos que formam a banda Cê — que começaram a trabalhar com Caetano no
álbum de mesmo nome e seguem com ele em Zii e Zie — também deveriam
usar o blog para escrever sobre o processo de confecção do álbum. Mas isso
nunca ocorreu. O baixista e tecladista Ricardo Dias Gomes, de 28 anos (o
mais jovem da Cê), confessa que a timidez o impediu de postar no blog, mas
diz acompanhar as discussões e admirar o diálogo que se estabeleceu ali. "O
Caetano é um brasileiro que vive a história do país intensamente. Viu muitas
coisas se transformarem, e sua memória apurada faz com que suas análises
tenham relevância acima da média e despertem outras mentes pensantes, o que
faz o blog seguir em frente", opina.
Completam o time musical de
Caetano o baterista Marcelo Callado, de 29 anos, e o guitarrista Pedro Sá,
de 34. Por ser íntimo de Moreno Veloso, filho mais velho de Caetano, Pedro
frequentava a casa do baiano desde a adolescência. Não tardou muito até ser
convidado para entrar na banda de Caetano. Hoje, o guitarrista é visto como
um dos principais responsáveis pela guinada artística dada pelo cantor a
partir do disco Eu não Peço Desculpa, de 2002, gravado em parceira
com Jorge Mautner. Pedro Sá é fã de bandas americanas como Pavement e
Pixies, expoentes do que se convencionou chamar de rock alternativo ou indie
rock, estilo em que as guitarras ruidosas são muito valorizadas. Ele soube
adicionar essas influências tanto em Cê quanto no novo álbum, sem que
isso soasse forçado ou desconectado das intenções de Caetano. "O Pedro faz o
papel que o Lanny Gordin fazia nos anos 60", compara Kassin, músico da
Orquestra Imperial e produtor de Eu não Peço Desculpa, citando o
guitarrista símbolo da tropicália, responsável por injetar rock nas obras de
Caetano, Gal Costa, Gilberto Gil e tantos outros.
"Caetano sempre teve como
característica essa sede, essa antena em riste, uma relação libidinosa com
as coisas que acontecem a todo instante no mundo", interpreta Jonas Sá,
irmão de Pedro e dono da voz cavernosa que encerra o álbum Cê. Apesar
de reafirmar a boa fase, Zii e Zie talvez não receba a aprovação
quase unânime de Cê — que, mais do que um disco de rock, é um disco
simples, sem grandes pretensões e povoado por letras concisas. O novo CD
nasce de uma vontade que Caetano tinha de "tratar levadas de samba com
timbre elétrico forte". Seriam os "transambas", sambas com DNA modificado,
executados por músicos de rock, com guitarra no lugar do cavaquinho. Ou
seja, é um disco, a priori, de caráter experimental, ainda que
Tarado ni Você, Sem Cais, A Cor Amarela e outras faixas
tenham estrutura de canção pop. "A nova abordagem de aspectos do samba é
sempre em torno do óbvio, mas é radical", classifica Caetano. De qualquer
forma, não resta dúvida de que ele fez mais um trabalho que vai brigar por
vaga no top 10 de grandes álbuns de sua carreira.
José Flávio Júnior
O Livro
Leite Derramado, de Chico Buarque. Companhia das
Letras, 200 págs., R$ 36.
O CD
Zii e Zie (Universal), de Caetano Veloso. Produtores: Moreno
Veloso e Pedro Sá. Preço médio: R$ 30.
(©
Bravo Online) |