O violoncelista Antonio Meneses aventura-se no repertório
barroco e grava com Rosana Lanzelotte disco dedicado a autores que
reinventaram o instrumento
João Luiz Sampaio, RIO
O cravo chegou com a chuva que caiu no Rio no fim da
tarde de segunda-feira. Precisou ser levado às pressas para o corredor
que dá acesso ao estúdio... A porta é pequena demais. De pé, de lado,
deitado, na transversal. Nada. "É por isso que eu toco violoncelo",
brinca Antonio Meneses, enquanto Rosana Lanzelotte estuda, preocupada, a
melhor maneira de resolver o problema. Talvez, saindo do corredor e
voltando em outra posição... Pronto, o cravo entrou. Será colocado onde?
Um dos apoios parece firme; o outro, meio bambo. Rosana hesita. "Quanto
pesa?", pergunta Meneses. Algo em torno de cem quilos. Ele pensa um
pouco. "E se a gente tentasse?" A resposta: "O problema de tentar é que,
se não der certo, o cravo já era", diz Rosana. Um outro apoio é
providenciado. Agora, sim. O afinador entra em cena. Os músicos vão
lanchar.
Enquanto eles lancham, a gente volta um dia no tempo. Nossa história
poderia começar na tarde de domingo, na Igreja Nossa Senhora do
Bonsucesso, onde Meneses e Rosana, acompanhados do violoncelista Alberto
Kanji, interpretaram debaixo de um calor desumano uma seleção de sonatas
de Bocherini, Haydn, Graziani e Bréval, o mesmo repertório que eles
gravaram no início desta semana para o selo Biscoito Fino. Parte da
série Música nas Igrejas, criada há 16 anos por Rosana no Rio, o recital
promoveu a reunião do violoncelista com a cravista, duas figuras de proa
da música brasileira.
E nossa história poderia então começar 16 anos atrás, quando eles
trabalharam juntos pela primeira vez. "Gravamos no início dos anos 90 um
disco com as sonatas de Graziani", conta Meneses. "Nos últimos anos, com
a dedicação ao Trio Beaux Arts, não tinha tempo para me dedicar ao
repertório barroco. Agora, ficou mais fácil. E é bom ter a Rosana ao meu
lado, essa é a sua praia, aprendo muito com ela", completa. "Gosto muito
da maneira como ele se aproxima dessa música, de um jeito todo dele,
inspirado, caloroso", diz Rosana.
E que repertório é esse? Nossa história poderia então começar na segunda
metade do século 18, quando Bocherini, Graziani e Bréval, todos
violoncelistas, começaram a tratar o instrumento como solista, tirando
ele do mero acompanhamento a que se reduzia anteriormente. Haydn já vem
um pouco depois, mas entrou no programa com uma sonata raríssima,
escrita originalmente para violino e viola, que está sendo gravada pela
primeira vez. Em comum, as peças exigem grande apuro técnico. Antes do
concerto, no domingo, Rosana explicou que essas são obras pouco
executadas simplesmente porque são muito difíceis. Daí o nome do
concerto: Violoncelo Virtuose. "Nunca estudei especificamente as
técnicas barrocas de execução. E perto deste time (que tem, além de
Rosana e Alberto, o flautista e especialista em música barroca Ricardo
Kanji, como produtor), eu me sinto como um amador, sempre aprendendo um
pouco mais", diz Meneses. E como Rosana sente que ele mudou ao longo dos
últimos 16 anos de parceria? O próprio Meneses responde: "Fiquei mais
bonito, charmoso, simpático." Ricardo Kanji entra na roda: "A única
coisa que o afastava da perfeição era o orgulho. Mas, agora que ele
ficou modesto, não há mais o que mudar." O riso é geral. E Kanji
completa. "Você às vezes pega um violoncelista moderno e ele transforma
os barrocos em românticos. O Antonio não, tem uma intuição especial para
essa música, empresta a ela sua paixão, sua intensidade, e faz isso sem
ir contra o estilo."
De volta à tarde de segunda-feira, o afinador segue trabalhando no
cravo, enquanto a equipe técnica começa a posicionar os microfones no
estúdio. Meneses, então, fala um pouco mais da maneira como encara a
música barroca. "O que acontece entre nós é que o diálogo musical é
sempre estimulante. As pessoas esquecem que de certa forma o barroco é
como o jazz, você tem uma linha melódica estabelecida, mas ela não
exclui a improvisação. Nesse sentido, trabalhar com a Rosana é
sensacional, ela tem sempre ideias musicais interessantes. E vamos
trocando nossas experiências." Eles preferem tocar ao vivo antes de
gravar, como ocorreu desta vez, ou o contrário seria o ideal? "O
importante é tocarmos o maior número de vezes possível antes de gravar",
diz Meneses. E por falar em gravar, o cravo já está afinado. Os músicos
voltam ao estúdio. Showtime.
Frases
"As pessoas esquecem que de certa forma o barroco é como o jazz, você
tem uma linha melódica estabelecida, mas ela não exclui a improvisação."
ANTONIO MENESES
"O Antonio tem uma intuição especial para essa música, empresta a ela
sua paixão, sua intensidade, e faz isso sem ir contra o estilo."